21 de abr. de 2010

"Melinda e Melinda" e os mil ângulos de observação da vida

Qual gênero melhor representa a vida: a comédia ou a tragédia? Partindo dessa pergunta inquietante, Woody Allen nos apresenta "Melinda e Melinda", seu 35º longa-metragem, pertencente a uma filmografia que já atravessou quatro décadas. Ao contrário do que muitos gostam de propalar, sua produção não está em decadência. Cada novo filme apresentado por ele traz uma nova chance de se observar a vida, e tentar traduzi-la sob uma nova ótica. Ainda que pareça mais do mesmo, e que o diretor introduza sempre certos elementos, há que se prestar mais atenção para se descobrir um prisma diferente em seus filmes. Até porque ninguém consegue continuar rigorosamente igual depois de 44 anos fazendo cinema. E, desde "O que há, tigresa" (1966) até hoje, muita coisa mudou no mundo e em sua própria vida.

A discussão que abre "Melinda e Melinda" se dá em uma cafeteria, e é protagonizada por dois autores teatrais que são muito amigos. Cada um deles defende que a vida é melhor simbolizada por um gênero. Um elege a tragédia, enquanto o outro prefere pensar que é a comédia a tradução perfeita do sentido da vida. No fundo, trata-se de uma questão de gosto pessoal dos dois, mas a máxima "Gosto não se discute" é desonsiderada por ambos. Para ilustrar suas teses, eles se utilizam de uma mesma figura, a misteriosa Melinda (Radha Mitchell), que serve de fio condutor para uma narrativa que se bifurca. Enquanto os amigos vão discutindo, o espectador começa a acompanhar duas tramas protagonizadas pela mesma Melinda, uma cômica e outra trágica. O tempo todo elas vão se alternando na tela, exigindo que o público se mantenha atento, para não perder o foco em nenhuma das duas narrativas. Ambas começam em um jantar de amigos, mas os desdobramentos que surgem a partir dessa ocasião vão diferenciando uma história da outra.

Enquanto na trama cômica Melinda aparece no jantar bêbada e dizendo muitas besteiras, na versão trágica ela está afundada em problemas e não consegue esboçar um sorriso. As diferenças entre cada faceta da vida da personagem idealizada pelos dois amigos ora são bem marcadas, ora são mais sutis. O discurso dos autores, que embasa todo o filme, acaba se aproximando em muitas partes, o que, de alguma maneira, evidencia que ambos os gêneros não são tão estanques assim, podendo se interpenetrar a qualquer momento. Para diferençar uma história da outra, Allen recorre a um recurso um pouco clichê na caracterização da personagem: seu penteado. A Melinda cômica tem fios lisos e muito bem arrumados, ao passo que a Melinda trágica aparece em cena sempre desgrenhada. É um senão do filme que acaba tendo um bom efeito prático. O uso dessa estratégia pantomímica permite que se identifique de qual trama se trata so simples surgimento da personagem. Tal como no teatro grego, a aparência dos atores já denuncia muito do caráter e do estado de espírito das personagens que estão representando, antes mesmo que falem qualquer frase.

Na verdade, a discussão proposta por Woody Allen em "Melinda e Melinda" não é uma novidade. Desde a Grécia Antiga a busca por estabelecer as diferenças entre a comédia e a tragédia está presente entre os homens. Aristóteles dedica páginas e páginas de sua "Poética" ao estabelecimento de características próprias de cada gênero, encarando-os como antagônicos. Por extensão, procura eleger um deles como o mais representativo da vida humana, atribuindo à tragédia a excelência. Na obra do próprio Allen essa questão aparece frequentemente, sendo possível separar sua produção em dois grandes grupos: de um lado estão os dramas mais existencialistas, que tentam investigar o ser humano de uma perspectiva mais séria, e do outro estão as comédias que, longe de se mostrarem escrachadas, trazem o homem rindo de si mesmo.
Como não poderia deixar de ser, os diálogos escritos por Allen estão mais uma vez afiados em "Melinda e Melinda", revelando opiniões divergentes de cada personagem sobre a vida e sua quase completa falta de sentido. O charme de Nova York também está mais uma vez presente, o que torna o filme reconhecível de longe como sendo de quem é. Isso, aliás, desde sua abertura. Outra grande qualidade do filme é sua direção de atores. O elenco está muito bem em cena sob a batuta de Allen, tendo sido muito bem escolhido pelo diretor. A começar por Radha Mitchell, que conduz o enredo, cada um se sai muito bem em seu papel. Um destaque especial é Chlöe Sevigny, que irradia beleza e competência na pele de Laurel, personagem do lado dramático do longa, que enfrente problemas em seu relacionamento. E vale lembrar que, na ausência de Allen como ator, alguém ocupa o posto de alter ego do cineasta. Aqui, o papel foi confiado a Will Ferrell, que incorpora alguns de seus cacoetes.
A conclusão a que se chega perto do final de "Melinda e Melinda" é a de que tanto a comédia como a tragédia representam muito bem a vida. Durante nossas existências, elas se revezam o tempo todo, mostrando-se num encontro casual de antigos amigos que relembram bobagens, e também quando estamos vivendo uma série de desventuras. O que ocorre é que, no segundo caso, só conseguimos enxergar a comicidade depois que passamos pelas situações que parecem trágicas. É comum que se diga em meio a um acontecimento desesperador: "Ainda vamos rir disso tudo". Isso é um indicador de que um mesmo fato pode ser enxergado sob uma perspectiva triste e, tempos depois, de um ângulo alegre. A vida não é estanque, o quente também pode ser frio, e o amargo também pode se revelar doce se provado mais uma vez, ou com um pouco mais de boa vontade. Dito em outras palavras, um mesmo acontecimento pode ser encarado como uma tragédia de tintas cômicas ou como uma comédia de nuances trágicas.

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