24 de abr. de 2010

A luta diária pela sobrevivência em "O silêncio de Lorna"

Os irmãos Jean-Pierre e Luc Dardenne são conhecidos por seu cinema engajado e realista, sempre voltado para dramas que se inserem em cotidianos de pessoas ordinárias, daquelas que se vê aos montes em qualquer lugar. Estão para a França como Ken Loach está para a Inglaterra. Depois de faturarem sua segunda Palma de Ouro em Cannes por "A criança", em 2005, eles voltaram so páreo com "O silêncio de Lorna", dessa vez disputando na categoria de melhor roteiro. Estrelado pela atriz Arta Dobroshi, o filme é mais uma oportunidade de se assistir ao desfile de certos elementos que já se tornaram tão característicos de sua obra.

O filme conta a história de Lorna, uma imigrante albanesa que sonha em obter cidadania belga, já que vive atualmente na Bélgica. Todavia, seu desejo não é muito fácil de se realizar, já que a burocracia torna tudo mais lento. Disposta a atingir rapidamente seu objetivo e, com isso, abrir uma lanchonete com o namorado Sokol (Alban Ukaj) e levar uma vida digna, ela concorda com um plano idealizado pelo rapaz. Lorna terá de se casar com Claudy Moreau (Jérémie Renier), um jovem viciado em drogas. Esse casamento de fachada é sugerido pelo criminoso Fabio (Fabrizio Rongione), que diz que, assim, logo ela terá sua tão sonhada cidadania belga. Mas casar Lorna com Claudy é apenas a primeira parte do plano, que inclui uma outra jogada importante. Lorna precisa ficar viúva, para que esteja livre para secasar novamente, dessa vez com um mafioso russo, que oferece muito dinheiro pela união farsesca. Para que Lorna fique viúva o quanto antes, a intenção de Fabio é assassinar Claudy, decisão que conta com a anuência da jovem.
Aquilo que parecia a solução perfeita para os problemas de todos os envolvidos, entretanto, logo se revela uma causa de novos imbróglios, já que Lorna acaba se apegando a Claudy. Mesmo tendo pouco tempo de conviver, eles logo desenvolvem uma estranha relação de dependência mútua. É nessa entrelinhas que o cinema humanista dos Dardenne ganha impulso, já que o foco dos irmãos é espiar o nascimento de uma afeição em meio a um cenário de completo caos e adversidade. Além de humanistas, os filmes da dupla de cineastas são feitos de revoluções internas aos seus personagens, que têm instantes de revelação quando se encontram imersos em ambientes de desespero. Os jovens Bruno e Sonia, de "A criança", eram confrontados com a necessidade de amadurecimento a partir do nascimento de um filho que não haviam planejado. Cada um lidou, à sua maneira, com o fato inesperado. Já em "O silêncio de Lorna", a protagonista se vê diante de sua própria ambição, a qual pode ser o motivo da ceifa de uma vida que ela aprendeu a querer bem. Seu silêncio vale a fim da existência de alguém?

Também depõe a favor do filme a atmosfera naturalista que o envolve, expressa não somente pela paisagem ao redor, e pela fotografia em cores frias e secas, mas também pelas atuações contidas de Renier e Dobroshi. A atriz, aliás, teve que passar pelo desafio de aprender francês em poucas semanas, para dar conta de interpretar a personagem principal. Nos extras do DVD do filme, Jean-Pierre e Luc elogiam o empenho dela, que se sai realmente muito bem no papel, que parece ter sido escrito especialmente para que ela o interpretasse. Nota-se bem a economia de seus gestos ao longo de toda a projeção, num equilíbrio que se vai rompendo paulatinamente, até resultar num tipo de pânico lá para perto do final do filme. O simples olhar da atriz já transmite toda a intensidade dramática da vicissitude pela qual a personagem está passando.
Renier, por sua vez, repete a perceria com os irmãos Dardenne, depois de ter vivido o jovem Bruno de "A criança". Novamente é uma escolha acertada da dupla, já que o ator imprime vitalidade a cada cena na qual aparece, e é lamentável que ele esteja por tão pouco tempo no filme. Se no longa anterior seu personagem era o retrato do abandono e da imaturidade, aqui seu Claudy não é menos desamparado e digno de compaixão, pelas atitudes impensadas que toma. O curto tempo em cena de Renier acaba sendo suficiente para que ele exercite seu talento para tipos deslocados, e seu fim trágico serve de alerta para muitos que enveredam pelo mesmo caminho que ele. E Jean-Pierre e Luc demonstram essa certeza não de forma moralista, mas de um modo seco e direto. "O silêncio de Lorna" não abre concessões para melodramas, mas sim para uma narrativa densa, que se aprofunda naquilo que se passa internamente com cada personagem. Cada um está precupado consigo mesmo, tentando sobreviver num mundo cão, que dá poucas chances de escolha a muitos, ainda que sempra haja escolha.
É um filme que se presta a elocubrações de ordem sociológica, levantando a questão polêmica de que o homem pode ou não ser fruto do meio em que está inserido. Quando seus interesses estão em jogo, é relevante poupar a vida de quem está por perto? Longe de fazer julgamentos, os cineastas não se preocupam em afirmar ou negar a tese, mas sim em espiar dramas humanos que aparecem todos os dias nas páginas dos jornais. São personagens de uma realidade que a maioria insiste em refutar, mas que compõem o traçado social da população do mundo. Com os Dardenne, os marginalizados têm vez, e podem se reconhecer em muitas cenas. Em seus descaminhos, Lorna, Claudy, Fabio e Sokol possuem muito mais de nós do que podemos imaginar.

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