30 de abr. de 2010

"Zelig", um eficiente estudo da mutabilidade do homem

A personalidade humana é o foco de Woody Allen em "Zelig", longa dirigido pelo novaiorquino em 1983. Até hoje, é uma de suas produções mais celebradas, e méritos não lhe faltam para isso. Envolvente como poucos de seu tempo, o filme é um interesante painel das inseguranças do homem diante da sociedade, e de como ele pode levar ao extremo seu desejo de se adequar a um grupo ou contexto social. E, para personificar esse ser em busca de pertencimento, não há ninguém mais emblemático do que o próprio Allen em sua porção ator. Ciente disso, ele assume a função de interpretar Leonard Zelig.

O filme foi concebido na forma de um pseudocumentário, partindo do princípio de que a figura do protagonista existe de verdade. Allen voltaria a usar essa recurso 16 anos mais tarde, ao recrutar Sean Penn para estrelar "Poucas e boas". No caso de "Zelig", fica uma sensação maior de ineditismo no espectador. Mas qual seria a grande atração na vida desse homem, que o faz digno de um filme só seu? A resposta é tão simples quanto insólita: ele é um camaleão, no sentido mais estrito da palavra. Em cada situação na qual se encontra, ele adquire a forma exata das pessoas que os rodeiam. Essa literariedade de sua transformação ganha contornos bizarros em vários momentos do filme. Quando está reunido com judeus, Zelig ganha barba espessa e cachos nos cabelos. Se se encontra com negros, logo adquire sua cor também. Se está em meio a físicos muito inteligentes, também lhes absorve as características mais marcantes. No fundo, trata-se de um movimento deseperado de enquadramento por uma forte necessidade de adequação.
O caso tão curioso acaba despertando o interesse da doutora Eudora Fletcher (Mia Farrow, numa de suas várias colaborações com o diretor), que decide estudá-lo a fim de identificar sua disfunção. Eles logo se aproximam demais, a ponto de se apaixonarem um pelo outro. Dá-se início, a partir daí, a uma história de amor longe do convencional, que cativa pelo que tem de absurda. Para comentar os eventos que se desenrolam na vida do protagonista, há um narrador, que deixa tudo mais divertido com seu senso de humor sagaz, reforçado pelo texto sempre bem escrito de Allen. A maneira como ele alinhava sua discussão sobre a questão da personalidade, já na década de 80, é magistral. "Zelig" é um filme inovador tanto em sua forma quanto em seu conteúdo. Pela temática que elegeu para abordar, o cineasta pode ser considerado um visionário. Ainda nos dias de hoje a despersonalização está presente. Na verdade, em níveis ainda maiores que os de duas décadas atrás.

Mais uma vez, Allen abre mão das cores, como já fizera nos anteriores "Manhattan" e "Memórias", o que traduz um recorte do real para levar o público a um redimensionamento de sua percepção do mundo. A estratégia adotada por ele também tem um efeito estilístico, já que sublinha a importância da história, e não tanto dos cenários em que ela está ambientada. As atuações preciosas de Mia Farrow, de Allen e dos vários coadjuvantes ganha muita força com isso. Porque esse é também um filme de atores, cada qual perfeito em sua caracterização para seu respectivo papel. De propósito ou não, ele traz uma reflexão interessantíssima sobre a coerção social sobre todos que são diferentes. Leonard Zelig não suporta a ideia de ser descartado por sua aparência destoante, o que o leva a se mimetizar em qualquer espaço aonde vá. E o aspecto de documentário impresso à contação da trajetória desse homem é intensificado pelos depoimentos que supostos amigos próximos dele dão ao longo da projeção. Está engendrado o divertido e inteligente jogo cênico de Woody Allen, que brinca de embaralhar a verdade como é conhecida e dar a ela um novo signifcado, a fim de explicitar suas convicções sobre o assunto da personalidade do homem.
Ao longo da narrativa, Allen vai na contramão de vários clichês, preferindo nem sempre agradar ao seu espectador na condução do enredo. É claro que muitas das gags visuais a que seus seguidores estão acostumados não deixam de se fazer presentes, e nem é preciso se ter muito trabalho para identificá-las. Verborrágico como sempre, o diretor mostra que o ser humano pode se adaptar a qualquer circunstância, de forma a não ser notado quando deseja. Mas até que ponto vale o sacrifício de renunciar à própria essência por uma ânsia de pertencimento. Por que tem de ser visto com tanta negatividade quem busca romper o status quo? A opinião alheia, que rege totalmente a vida de Zelig, não deveria ter tanto poder sobre ele. E essa consideração vale para qualquer um que põe o que os outros esperam na frente de qualquer atitude que pense em tomar. O filme está longe de ser didático, e de passar uma mensagem edificante a respeito da natureza humana, o que não seria mal. Contudo, essa não é uma das funções primárias do cinema. Aliás, o cinema não tem função alguma, a não ser aquela que atribuimos a ele, ao sabor de nossas vontades e intenções.

28 de abr. de 2010

"Casamento silencioso" e o uso do surreal para falar de política

O cinema romeno tem recebido muita atenção da crítica nos últimos anos, sobretudo pela dita qualidade de seus filmes, que têm ganho mais espaço no circuito comercial. De 2007 até 2009, chegaram pelo menos três filmes daquele país: "A leste de Bucareste", "Como eu festejei o fim do mundo" e "Casamento silencioso". É sobre este último que a crítica em questão se debruça. Com direção de Horatiu Malaele, é mais um longa a usar como pano de fundo de suas ações a queda do regime comunista, do qual Josef Stálin era o símbolo maior.

O diretor busca examinar os reflexos dessa derrocada num contexto rural, apontado suas lentes para a Romênia de 1953, ano da morte do ditador russo, e da consequente expiração de regime tão autoritário e punitivo. Tudo começa, porém, nos dias atuais, quando uma equipe de televisão local decide investigar os rumores de supostos eventos paranormais ocorridos em uma pequena cidade do interior do país. Na procura por pistas que comprovem os fenômenos, os repórteres abordam moradores da região, que não são nenhum modelo de gente educada, diga-se de passagem. Até que uma das entrevistadas conta de um casamento que ocorrera exatamente cinco décadas e meia antes, e que ficou marcado por ter sido uma cerimônia um tanto quanto atípica.
A partir desse gancho, a narrativa retrocede até o período citado, permitindo que o espectador entre em contato com a história propriamente dita. Então são apresentados os jovens Iancu (Alexandru Potocean) e Mara (Meda Victor), que estão em pelo ato sexual. Eles vivem um amor tão intenso quanto desagradável para alguns habitantes da pequena aldeia em que vivem, mas pouco se importam com essa repercussão negativa do que sentem um pelo outro. Prestes a se casar, eles nem podem esperar pela consumação do desejo, adotando um comportamento ousado para os padrões da época. Durante o tempo em que mostra os preparativos para a festa de casamento, Malaele flagra alguns costumes observados naquela década num país que, como o Brasil, tem como língua oficial uma derivação do latim.

Mas o filme fica mais interessante mesmo quando surge a ocasião da festa dos noivos apaixonados. Tudo começa na mais perfeita ordem e felicidade, até que surgem funcionários do governo para informá-los da má(?) notícia: Josef Stálin está morto. Por essa razão, foi decretado luto nacional por um período de uma semana, o que impede a realização de festas de qualquer natureza, desde casamentos a aniversários, passando por reuniões para a comemoração de qualquer conquista. Enfático, o oficial afirma que todo o aparato com que o casamento de Iancu e Mara estavam se casando precisa ser interrompido, por honra à memória daquele que era até então o chefe maior do dito mundo comunista. Surpresos com a exigência, aqueles homens e mulheres simplórios decidem acatar o que lhes foi ordenado. Porém, eles não admitem perder a chance de comemorar com muitos comes e bebes as bodas dos jovens.
Com isso, "Casamento silencioso" ganha tintas de comédia, e seu título começa finalmente a fazer sentido. Na tentativa de não desperdiçar tudo o que foi gasto para a preparação da festa, os pais dos noivos decidem manter a comemoração, mas fazendo tudo no mais absoluto silêncio, o que gera uma série de situações hilárias, justamente por seu toque de surreal. Malaele não deixa de fazer cinema político, mas não chega a se demonstrar tão engajado quanto outros diretores, como é o caso do inglês Ken Loach. Sua dosagem nessa aspecto é sutil, revelando no diretor um desejo de simplesmente mostrar consequências de um fato histórico no cotidiano de uma pequena comunidade. Fica nítido para o espectador mais atento os contornos mambembe que os personagens apresentam, como se estivessem em um espetáculo teatral. Os protagonistas, por exemplo, agem de forma pantomímica em muitas passagens, revelando uma faceta muito divertida de suas personalidades.
No geral, o filme acerta por sua maneira simples de narrar acontecimentos de ordem mundial repercutindo numa esfera menos ampla. OS desdobramentos da desobediência daqueles cidadãos não são dos mais positivos, fazendo com que a população masculina dali acabe sendo bastante reduzida, fato que traz a narrativa de volta para o presente. É quando os repórteres começam a entender o que levou a certas situações que presenciam no momento atual. "Casamento silencioso" consegue êxito na junção de elementos teatrais com certa parcela de entretenimento, sem tender exageradamente para um lado ou para o outro. E essa é uma qualidade que jamais pode ser desprezada. Os cinéfilos de certo juízo podem discordar da afirmação, mas não deveriam deixar passar a oportunidade de conferir a proposta de Horatiu Malaele.

26 de abr. de 2010

Diálogos sobre a frivolidade da vida em "O declínio do império americano"

Na década de 80, mais especificamente no ano de 1986, um diretor chamou a atenção do público e da crítica para si com "O declínio do império americano". Seu nome, Denys Arcand. Sua "arma", por assim dizer, eram os bons diálogos, travados em meio a um roteiro bem alinhavado, por personagens críveis e fascinantes em suas imperfeições. Com isso, fez grande sucesso, tanto que 17 anos depois produziu uma continuação, "As invasões bárbaras". Voltando ao primeiro filme, entretanto, contar do que ele se trata requer poucas linhas. As consequências de sua abordagem é que rendem discussões de horas.

Oito pessoas, sendo quatro homens e quatro mulheres, vão passar alguns dias em uma casa de campo para relaxar e se distrair dos problemas práticos do cotidiano. Eles se dividem de acordo com o sexo: enquanto os homens preparam o almoço e conversam sobre muitos assuntos, as mulheres ficam numa academia se exercitando, tanto física quanto verbalmente. E o filme se baseia praticamente só nessa divisão de grupos. Ao longo de pouco mais de uma hora e meia de projeção, o espectador tem contato com muito falatório, que parece não ter fim nunca. Para fãs de Eric Rohmer, que foi um amante das pelavras por excelência, essa característica intrínseca à história pode ser bastante agradável. Mas para um público um pouco menos contemplativo o resultado pode ser enfadonho. Mas Arcand está mesmo pouco preocupado em desenvolver ações. Seu cinema é muito mais prolixo que ativo.
Reunidos num cenário paradisíaco nos lagos canadenses, os amigos, e também amantes, comentam tudo e todos com uma desenvoltura impressionante. Com homens em um ambiente e mulheres em outro, o diretor acaba oferecendo um estudo contrastivo entre os objetos de análise preferidos de cada sexo, confrontando-os o tempo todo na tela. Na ala feminina estão Dominique (Dominique Michel), Louise (Dorothée Berryman), Diane, (Louise Portal) e Danielle (Geneviève Rioux). Em meio a séries de esteiras, bicicletas ergométricas e supinos, as amigas divagam sobre o comportamento dos homens, falam dos defeitos de si mesmas que mais as incomodam, e comentam sobre outros assuntos tão banais quanto interessantes. Os homens são Rémy (Rémy Girard), Pierre (Pierre Curzi), Alain (Daniel Brière) e Mario (Gabriel Arcand), todos professores universitários. Entre os os muitos temas que pautam sua longa conversa também está o sexo oposto, além de debates acalorados sobre a significância do amor para o ser humano, as transformações surgidas no contexto histórico ao longo dos séculos e o peso do passar dos anos para cada um deles.

Essencialmente, "O declínio do império americano" é um filme de diálogos. As conversas que os personagens mantêm uns com os outros é que servem de força motriz para seu desdobramento. Quem espera grandes reviravoltas na narrativa, é bom que esteja avisado: elas não acontecem. Isso porque Arcand faz uma outra caminhada, preferindo investigar os meandros das relações humanas, indo o mais fundo possível nessa procura. O canadense é bastante meticuloso, e causa a sensação de reconhecimento no outro em muitas cenas. Não é um filme com o qual se deva concordar o tempo inteiro, já que trata-se de uma espécie de debate em que o espectador adiciona suas opiniões pessoais, extraindo ou não ideias que estão previamente inseridas no contexto do longa. Seu título não foi dado em vão, já que um dos assuntos que os oito discutem é a decadência dessa superestrutura que foi a América de outrora, tomando de empréstimo um termo marxista que se encaixa muito bem aqui.
Alguns tópicos abordados por Arcand podem soar um tanto datados, afinal já se passaram 24 anos desde as filmagens do longa. Mas nada que chegue a ser um demérito, pois muitos dos fóruns propostos pelo roteiro acabam se revelando atemporais. Os homens e as mulheres, cada um com suas inseguranças, estão retratados ali, tentando negá-las, mas também reconhecendo-as. As pequenas frustrações que se vão acumulando também encontram guarida no cenário pintado por Arcand, auxiliado por uma fotografia colorida, na estética oitentista que o filme pede. Os figurinos acompanham essa tendência, sendo manifestos em roupas de ginástica meio constrangedoras para as mulheres de hoje, mas que não saltam tanto aos olhos do bom gosto no caso dos homens, que já aparentavam a sobriedade atual. Portanto, "O declínio do império americano" também é um filme belo aos olhos que o veem. É a reunião da argúcia de se comentar sobre temas pertinentes com imagens que enchem a tela, embevecendo seus contempladores.
No fundo, é o ser humano desnudado através das palavras, em conversas que, para além da simples distração, estão permeadas de reflexões interessantes sobre a fragilidade de nossas vidas e da falta de sentido que muitos acontecimentos têm sobre cada um de nós. A vida muitas vezes causa perplexidade, por seus descaminhos quase insondáveis. Existencialismo, silogismos e outras palavras-chave da filosofia aparecem sob uma capa de papo de esquina, tornando-se muito mais palatáveis, sem parecer tão inacessíveis, como querem muitos academicistas. Ali estão sonhos e ideais de uma geração, que pode não ser a minha nem a sua, mas apresenta muitos pontos em comum com desejos que se manifestam também hoje. Porque é cotidiano, porque é o que eu e você vivemos diariamente, porque é o pulsar de nossas inquietações, essa história não se destitui um só momento de relevância.

24 de abr. de 2010

A luta diária pela sobrevivência em "O silêncio de Lorna"

Os irmãos Jean-Pierre e Luc Dardenne são conhecidos por seu cinema engajado e realista, sempre voltado para dramas que se inserem em cotidianos de pessoas ordinárias, daquelas que se vê aos montes em qualquer lugar. Estão para a França como Ken Loach está para a Inglaterra. Depois de faturarem sua segunda Palma de Ouro em Cannes por "A criança", em 2005, eles voltaram so páreo com "O silêncio de Lorna", dessa vez disputando na categoria de melhor roteiro. Estrelado pela atriz Arta Dobroshi, o filme é mais uma oportunidade de se assistir ao desfile de certos elementos que já se tornaram tão característicos de sua obra.

O filme conta a história de Lorna, uma imigrante albanesa que sonha em obter cidadania belga, já que vive atualmente na Bélgica. Todavia, seu desejo não é muito fácil de se realizar, já que a burocracia torna tudo mais lento. Disposta a atingir rapidamente seu objetivo e, com isso, abrir uma lanchonete com o namorado Sokol (Alban Ukaj) e levar uma vida digna, ela concorda com um plano idealizado pelo rapaz. Lorna terá de se casar com Claudy Moreau (Jérémie Renier), um jovem viciado em drogas. Esse casamento de fachada é sugerido pelo criminoso Fabio (Fabrizio Rongione), que diz que, assim, logo ela terá sua tão sonhada cidadania belga. Mas casar Lorna com Claudy é apenas a primeira parte do plano, que inclui uma outra jogada importante. Lorna precisa ficar viúva, para que esteja livre para secasar novamente, dessa vez com um mafioso russo, que oferece muito dinheiro pela união farsesca. Para que Lorna fique viúva o quanto antes, a intenção de Fabio é assassinar Claudy, decisão que conta com a anuência da jovem.
Aquilo que parecia a solução perfeita para os problemas de todos os envolvidos, entretanto, logo se revela uma causa de novos imbróglios, já que Lorna acaba se apegando a Claudy. Mesmo tendo pouco tempo de conviver, eles logo desenvolvem uma estranha relação de dependência mútua. É nessa entrelinhas que o cinema humanista dos Dardenne ganha impulso, já que o foco dos irmãos é espiar o nascimento de uma afeição em meio a um cenário de completo caos e adversidade. Além de humanistas, os filmes da dupla de cineastas são feitos de revoluções internas aos seus personagens, que têm instantes de revelação quando se encontram imersos em ambientes de desespero. Os jovens Bruno e Sonia, de "A criança", eram confrontados com a necessidade de amadurecimento a partir do nascimento de um filho que não haviam planejado. Cada um lidou, à sua maneira, com o fato inesperado. Já em "O silêncio de Lorna", a protagonista se vê diante de sua própria ambição, a qual pode ser o motivo da ceifa de uma vida que ela aprendeu a querer bem. Seu silêncio vale a fim da existência de alguém?

Também depõe a favor do filme a atmosfera naturalista que o envolve, expressa não somente pela paisagem ao redor, e pela fotografia em cores frias e secas, mas também pelas atuações contidas de Renier e Dobroshi. A atriz, aliás, teve que passar pelo desafio de aprender francês em poucas semanas, para dar conta de interpretar a personagem principal. Nos extras do DVD do filme, Jean-Pierre e Luc elogiam o empenho dela, que se sai realmente muito bem no papel, que parece ter sido escrito especialmente para que ela o interpretasse. Nota-se bem a economia de seus gestos ao longo de toda a projeção, num equilíbrio que se vai rompendo paulatinamente, até resultar num tipo de pânico lá para perto do final do filme. O simples olhar da atriz já transmite toda a intensidade dramática da vicissitude pela qual a personagem está passando.
Renier, por sua vez, repete a perceria com os irmãos Dardenne, depois de ter vivido o jovem Bruno de "A criança". Novamente é uma escolha acertada da dupla, já que o ator imprime vitalidade a cada cena na qual aparece, e é lamentável que ele esteja por tão pouco tempo no filme. Se no longa anterior seu personagem era o retrato do abandono e da imaturidade, aqui seu Claudy não é menos desamparado e digno de compaixão, pelas atitudes impensadas que toma. O curto tempo em cena de Renier acaba sendo suficiente para que ele exercite seu talento para tipos deslocados, e seu fim trágico serve de alerta para muitos que enveredam pelo mesmo caminho que ele. E Jean-Pierre e Luc demonstram essa certeza não de forma moralista, mas de um modo seco e direto. "O silêncio de Lorna" não abre concessões para melodramas, mas sim para uma narrativa densa, que se aprofunda naquilo que se passa internamente com cada personagem. Cada um está precupado consigo mesmo, tentando sobreviver num mundo cão, que dá poucas chances de escolha a muitos, ainda que sempra haja escolha.
É um filme que se presta a elocubrações de ordem sociológica, levantando a questão polêmica de que o homem pode ou não ser fruto do meio em que está inserido. Quando seus interesses estão em jogo, é relevante poupar a vida de quem está por perto? Longe de fazer julgamentos, os cineastas não se preocupam em afirmar ou negar a tese, mas sim em espiar dramas humanos que aparecem todos os dias nas páginas dos jornais. São personagens de uma realidade que a maioria insiste em refutar, mas que compõem o traçado social da população do mundo. Com os Dardenne, os marginalizados têm vez, e podem se reconhecer em muitas cenas. Em seus descaminhos, Lorna, Claudy, Fabio e Sokol possuem muito mais de nós do que podemos imaginar.

23 de abr. de 2010

"Rebobine, por favor": um mergulho na alma do cinema

Os filmes de Michel Gondry definitivamente não têm um compromisso fiel com a realidade a que estamos acostumados. Longe de parecer convencional, sua obra se apoia em viagens delirantes protagonizadas por personagens que cativam ao primeiro olhar. Depois do celebrado "Brilho eterno de uma mente sem lembranças", ele filmou "Sonhando acordado", mas quase ninguém viu, principalmente os cariocas, já que o filme simplesmente não foi exibido no circuito comercial do Rio de Janeiro. Seu trabalho seguinte foi "Rebobine, por favor", até agora seu filme mais recente. Mas que também demorou uma eternidade para ganhar um espaço nos cinemas, fato que não encontra explicação plausível, principalmente depois que o espectador entra em contato com essa deliciosa história.

Desde o começo, fica claro que trata-se de uma fábula cômica sobre a arte de se fazer cinema, um tema que sempre rende ótimas produções, de gêneros, diretores e nacionalidades diversas. E essa fábula tem como protagonistas dois amigos muito atrapalhados: Jerry (Jack Black) e Mike(Mos Def). O segundo trabalha numa locadora de VHS, algo que já é bastante retrógrado para esses tempos de download ao alcance de todos. Até aí, porém, não há grande surpresa. O patrão de Mike é Elroy Fletcher (Danny Glover), um simpático senhor que lhe confia a missão de tomar conta de seu negócio enquanto tem de fazer uma viagem. Ciente de que tem uma importante responsabilidade nas mãos, Mike se promete não decepcionar o chefe. Mas com um amigo tresloucado como Jerry por perto, a missão se torna quase impossível. E o problema começa exatamente por conta de uma das atitudes destrambelhadas de Jerry.
Sem querer, ele passa por um processo de magnetização ao tentar invadir uma usina de energia elétrica, numa sequência hilária, em que Jack Black se utiliza de suas caras e bocas para provocar o riso. Depois disso, ele vai até a locadora onde Mike trabalha, e causa um grande problema para o amigo. Ele desmagnetiza todos os vídeos do acervo do lugar, devido à carga de energia do seu corpo. Diante da situação, os dois pensam numa alternativa no mínimo inusitada: refilmar cada produção ali presente, de modo que nenhum cliente perceba a mudança nos filmes. A partir dessa decisão tomada pelos dois é que o filme, que já vinha se mostrando divertido, dá uma grande guinada, para funcionar como uma homenagem muito original ao cinema. Logo, Jerry e Mike estarão refilmando clássicos de diferentes épocas, como "Conduzindo Miss Daisy", "Robocop", "Os caça-fantasmas", "King Kong" e alguns outros. À época do lançamento do filme, Gondry disse que elegeu muitas referências óbvias para que todos pudessem compartilhar dessa grande brincadeira por ele proposta. Essa estratégie funciona muito bem, pois fica quase impossível para o público não embarcar em seu saudável delírio. Para explicar aos clientes o motivo de os filmes estarem um pouco diferentes, os dois amigos dizem que as fitas foram "suecadas", ou seja, passaram por um tratamento de imagem e som na Suécia. É ou não uma saída extremamente corajosa e inventiva?

Mas essa "grande ideia" da dupla não vai muito longe, já que a farsa criada por eles não engana por muito tempo a população local. A única que não percebe que os filmes estão completamente alterados é Miss Falewicz, uma senhora cinéfila que simplesmente ama cada fita que aluga nessa locadora um tanto "diferente". O papel coube a Mia Farrow, há muito tempo longe de uma boa personagem, e que aqui faz aquilo que sabe melhor: encarnar uma pessao bondosa e que acredita plenamente na honestidade alheia. Ela logo ganha a simpatia do público, que sabe o tempo todo que ela está sendo enganada. A essa altura, Jerry e Mike já ganharam a ajuda de Alma, uma das primeiras a descobrir a loucura criada por eles. E enquanto o senhor Elroy não retorna, eles vão tentando contornar a confusão em que se colocaram. A situação, contudo, foge do controle dos amigos quando entra em cena uma representante da indústria cinematográfica, que exige o respeito aos direitos autorais. Ela é a senhorita Lawson, que surge interpretada por uma Sigourney Weaver bastante segura. Fica claro desde sua primeira aparição que ela está ali representando os grandes estúdios, muito mais interessandosem lucros a curto praz, sem qualquer preocupação com talento e conteúdo nos filmes, mas sim com o uso de fórmulas já atestadas como vendáveis, para acumular mais e mais divisas.
No fundo, essa é a grande qualidade de "Rebobine, por favor": contrapor o lado mambembe das produções modestas, que pouco espaço têm no circuito, com os arrasa quarteirões vindos de Hollywood, que tomam de assalto as salas de exibição e atraem multidões de espectadores ávidos de efeitos visuais grandiloquentes e ação ininterrupta, como carros explodindo, mocinhos invencíveis que dão o sangue para vencer vilões pavorosos. A esolha é sempre do público, que majoritariamente prefere a segunda opção, deixando sufocados os amantes de histórias simples e bem contadas, não por industriais, mas por artesãos da palavra e da imagem. Essa espécie está cada vez mais ameaçada de extinção, e com ela, seus entusiastas, que sabem apreciar joias que falam mais ao coração que ao bolso. Gondry parece já ter escolhido o seu lado há muito tempo, enquadrando-se perfeitamente na segunda categoria.

21 de abr. de 2010

"Adeus, Lênin" ou o lado cômico de um fato histórico

A derrocada do socialismo serve mais uma vez de matéria-prima para um filme. E esse filme se chama "Adeus, Lênin", dirigido pelo competente Wolfgang Becker. Ele traz para as telas uma produção que reúne várias boas características, fazendo com que assistir a ela seja aproveitar muito bem pouco mais de uma hora e meia do dia. O grande achado do enredo é abordar um tema considerado espinhoso com uma linguagem acessível e até divertida, o que não deixa o filme cansativo ou cercado de hermetismos. Protagonizada por Daniel Brühl, que dá vida a Alex, a trama conta a história de um jovem que acompanha o tratamento médico dispensado à sua mãe, que sofreu há pouco tempo um ataque cardíaco.

A razão do fato é que ela viu o filho participando de uma manifestação contra esss sistema, o que a desagradou profundamente, já que ela é uma entusiasta de tal regime. O problema de Alex, entretanto, só surge depois que sua mãe entra em coma. Enquanto ela permanece em estado quase vegetativo, o mundo ao redor sofre grandes transformações. A principal delas é a queda do Muro de Berlim, em novembro de 1989. Essa queda representa o fim do socialismo, e o começo de uma nova forma de vida na Alemanha, que volta a ser uma só. Quando sua Frau Schäfer desperta do sono profundo, já se tem uma nova realidade operando. E Alex teme pela reação que tamanha novidade possa causar nela, já que sabe que ela é uma pessoa extremamente conservadora. Some-se a isso sua condição de recém-operada, que lhe impede de sofrer grandes baques.
Para contornar a situação delicada, Alex pensa numa solução drástica: fazer com que sua mãe continue acreditando que tudo está exatamente igual a antes de seu ataque cardíaco, para que ela se mantenha sempre tranquila em relação a tudo. Mas essa não é uma tarefa nada fácil, já que obriga o jovem a ficar atento a qualquer detalhe ao seu redor, que pode denunciar a falência do socialismo. Até mesmo com os novos produtos que são incorporados ao cotidiano da família o cuidado deve ser redobrado. Por isso, Alex muda as embalagens de alimentos industrializados, que denunciariam imediatamente o surgimento de uma nova Alemanha. E, assim, vai vivendo na corda bamba, em parte também por seu peso na consciência, já que se sente responsável pelo infarto da mãe.

Como se vê, "Adeus, Lênin!" leva a uma reflexão divertida sobre um dos episódios mais marcantes da História recente, que gera sempre um filme, principalmente dramas densos e pirotécnicos. Mas esse não é o caso do filme, rodado numa Alemanha iluminadam simbolizando o surgimento de novos tempos, que trazem uma modernidade e uma calma que antes não era comum a todo o país. O humor de Becker não cai na vulgaridade, o que é qualidade de seu roteiro muito bem escrito, em parceria com Bernd Lichtenberg, que valoriza pequenas sequências, transformando-as em válvulas para o riso. Um riso não descompromissado, mas sim apoiado em situações algo bizarras em sua verossimilhança. Daniel Brühl ganhou muitos elogios por sua atuação no longa, sendo até hoje bastante lembrado por ela. A cada novo filme que lança, a primeira referência de trabalho anterior que vem é essa. De fato, ele dá a seu Alex uma grande humanidade, mostrando-o como um filho que, acima de tudo, quer o melhor para sua mãe, sendo capaz de sacrificar suas convicções políticas diante dela, se isso for importante para sua saúde.
O longa é recheado de diálogos pontuais sobre questões de ordem prática que advêm da implementação de um novo regime. Agora todos podem comer num fast food, podem comprar roupas de marcas reconhecidamente estadunidenses, já que tudo que vem de outras nações tem liberdade para circular de novo em território alemão. É interessante identificar a crítica social embutida no filme, que usa muitas vezes o humor como arma. Isso faz com a proposta feita por Wolfgang Becker ganhe densidade, já que não fica apenas na sucessão de acontecimentos engraçados ou de tiradas cômicas para reproduzir com os amigos. Ao mesmo tempo, o diretor não se esforça para fazer cinema político, o que é um escolha absolutamente legítima, já que o resultado não é uma produção panfletária, mas sim uma possibilidade de abertura para o debate de uma questão atual, que merece ser sempre revista sob novos ângulos. Grandes filmes têm essa característica dentro de si, entre tantas outras que poderiam aqui ser citadas e comentadas.
Em relação à fotografia, um dado interessante é que a palheta de cores remete quase imediatamente ao universo almodovariano, já que os tons fortes predominam nas cenas. Esse detalhe torna o filme descontraído, a despeito de certas passagens dramáticas que lhe atravessam. E também lhe conferem beleza, já que enchem os olhos com suas nuances bem demarcadas e atraentes. Resumindo, "Adeus, Lênin!" é um filme que convoca toda a família a pensar sobre vários assuntos ao mesmo tempo, sentados no sofá com um balde de pipoca, acompanhando os passos de uma transformação que se processa gradualmente nas vidas de seus personagens. Às belas imagens, Becker adicionou uma história bem contada, que preenche vazios narrativos e reforça a qualidade do cinema alemão atual.

"Melinda e Melinda" e os mil ângulos de observação da vida

Qual gênero melhor representa a vida: a comédia ou a tragédia? Partindo dessa pergunta inquietante, Woody Allen nos apresenta "Melinda e Melinda", seu 35º longa-metragem, pertencente a uma filmografia que já atravessou quatro décadas. Ao contrário do que muitos gostam de propalar, sua produção não está em decadência. Cada novo filme apresentado por ele traz uma nova chance de se observar a vida, e tentar traduzi-la sob uma nova ótica. Ainda que pareça mais do mesmo, e que o diretor introduza sempre certos elementos, há que se prestar mais atenção para se descobrir um prisma diferente em seus filmes. Até porque ninguém consegue continuar rigorosamente igual depois de 44 anos fazendo cinema. E, desde "O que há, tigresa" (1966) até hoje, muita coisa mudou no mundo e em sua própria vida.

A discussão que abre "Melinda e Melinda" se dá em uma cafeteria, e é protagonizada por dois autores teatrais que são muito amigos. Cada um deles defende que a vida é melhor simbolizada por um gênero. Um elege a tragédia, enquanto o outro prefere pensar que é a comédia a tradução perfeita do sentido da vida. No fundo, trata-se de uma questão de gosto pessoal dos dois, mas a máxima "Gosto não se discute" é desonsiderada por ambos. Para ilustrar suas teses, eles se utilizam de uma mesma figura, a misteriosa Melinda (Radha Mitchell), que serve de fio condutor para uma narrativa que se bifurca. Enquanto os amigos vão discutindo, o espectador começa a acompanhar duas tramas protagonizadas pela mesma Melinda, uma cômica e outra trágica. O tempo todo elas vão se alternando na tela, exigindo que o público se mantenha atento, para não perder o foco em nenhuma das duas narrativas. Ambas começam em um jantar de amigos, mas os desdobramentos que surgem a partir dessa ocasião vão diferenciando uma história da outra.

Enquanto na trama cômica Melinda aparece no jantar bêbada e dizendo muitas besteiras, na versão trágica ela está afundada em problemas e não consegue esboçar um sorriso. As diferenças entre cada faceta da vida da personagem idealizada pelos dois amigos ora são bem marcadas, ora são mais sutis. O discurso dos autores, que embasa todo o filme, acaba se aproximando em muitas partes, o que, de alguma maneira, evidencia que ambos os gêneros não são tão estanques assim, podendo se interpenetrar a qualquer momento. Para diferençar uma história da outra, Allen recorre a um recurso um pouco clichê na caracterização da personagem: seu penteado. A Melinda cômica tem fios lisos e muito bem arrumados, ao passo que a Melinda trágica aparece em cena sempre desgrenhada. É um senão do filme que acaba tendo um bom efeito prático. O uso dessa estratégia pantomímica permite que se identifique de qual trama se trata so simples surgimento da personagem. Tal como no teatro grego, a aparência dos atores já denuncia muito do caráter e do estado de espírito das personagens que estão representando, antes mesmo que falem qualquer frase.

Na verdade, a discussão proposta por Woody Allen em "Melinda e Melinda" não é uma novidade. Desde a Grécia Antiga a busca por estabelecer as diferenças entre a comédia e a tragédia está presente entre os homens. Aristóteles dedica páginas e páginas de sua "Poética" ao estabelecimento de características próprias de cada gênero, encarando-os como antagônicos. Por extensão, procura eleger um deles como o mais representativo da vida humana, atribuindo à tragédia a excelência. Na obra do próprio Allen essa questão aparece frequentemente, sendo possível separar sua produção em dois grandes grupos: de um lado estão os dramas mais existencialistas, que tentam investigar o ser humano de uma perspectiva mais séria, e do outro estão as comédias que, longe de se mostrarem escrachadas, trazem o homem rindo de si mesmo.
Como não poderia deixar de ser, os diálogos escritos por Allen estão mais uma vez afiados em "Melinda e Melinda", revelando opiniões divergentes de cada personagem sobre a vida e sua quase completa falta de sentido. O charme de Nova York também está mais uma vez presente, o que torna o filme reconhecível de longe como sendo de quem é. Isso, aliás, desde sua abertura. Outra grande qualidade do filme é sua direção de atores. O elenco está muito bem em cena sob a batuta de Allen, tendo sido muito bem escolhido pelo diretor. A começar por Radha Mitchell, que conduz o enredo, cada um se sai muito bem em seu papel. Um destaque especial é Chlöe Sevigny, que irradia beleza e competência na pele de Laurel, personagem do lado dramático do longa, que enfrente problemas em seu relacionamento. E vale lembrar que, na ausência de Allen como ator, alguém ocupa o posto de alter ego do cineasta. Aqui, o papel foi confiado a Will Ferrell, que incorpora alguns de seus cacoetes.
A conclusão a que se chega perto do final de "Melinda e Melinda" é a de que tanto a comédia como a tragédia representam muito bem a vida. Durante nossas existências, elas se revezam o tempo todo, mostrando-se num encontro casual de antigos amigos que relembram bobagens, e também quando estamos vivendo uma série de desventuras. O que ocorre é que, no segundo caso, só conseguimos enxergar a comicidade depois que passamos pelas situações que parecem trágicas. É comum que se diga em meio a um acontecimento desesperador: "Ainda vamos rir disso tudo". Isso é um indicador de que um mesmo fato pode ser enxergado sob uma perspectiva triste e, tempos depois, de um ângulo alegre. A vida não é estanque, o quente também pode ser frio, e o amargo também pode se revelar doce se provado mais uma vez, ou com um pouco mais de boa vontade. Dito em outras palavras, um mesmo acontecimento pode ser encarado como uma tragédia de tintas cômicas ou como uma comédia de nuances trágicas.

19 de abr. de 2010

A espionagem da essência juvenil de "Elefante"

Muitos diretores, ao longo de suas carreiras, desenvolvem afeição por temas específicos, e acabam por construir suas filmografias praticamente baseadas apenas em determinado assunto. Essa escolha não representa necessariamente um defeito, mas requer talento redobrado para se evitar a repetição. Quando consegue suplantar o mais do mesmo, um diretor se torna consagrado. E vai para uma galeria que já inclui Federico Fellini, com sua visão do vazio da vida, Ingmar Bergman, com sua busca por flagrar o abismo que mora entre os homens, Woody Allen, com sua paixão pelo universo do artista, e outros poucos e bons. Decerto Gus Van Sant merece figurar nesse "clube", já que vem demonstrando, filme após filme, uma grande capacidade de lançar novos olhares acerca do seu tema favorito: a juventude.

"Elefante", dirigido por ele em 2003, confirma perfeitamente essa máxima. O longa é um belo ensaio sobre os colapsos da adolescência retratado ao mesmo tempo com crueza e intimidade. Van Sant mostra que entende de quem está falando. Como se trata de um de seus trabalhos mais famosos, a sinopse já é conhecida por muitos. Trata-se de 24 horas na vida de dois amigos de escola, que dividem seu descontentamento com o mundo e as pessoas ao seu redor. Eles se consideram grandes injustiçados pelo destino, que lhes reservou uma rotina detestável, e colegas de turma que só lhe fazem mal. Por meio dessa simples ideia, o cineasta começa seu filme, no melhor estilo "câmera na mão". Suas lentes procuram captar o íntimo dos personagens, tão próximos do real que o rótulo de personagens parece quase incabível.
Aliado a uma filmagem que está pouco preocupada com o cenário, mas sim atenta ao estado de espírito de seus objetos de estudo, por assim dizer, Van Sant oferece vários pontos de vista para um mesmo acontecimento. Em determinado momento, dois jovens caminham pelos corredores da escola enquanto conversam, e são abordados por um outro amigo em comum, que vem na direção oposta. É uma sequência simples, sem grandes sobressaltos, mas que ganha força pela apresentação, alguns minutos depois, de um novo ângulo. Essa quase repetição permite ao espectador detectar outros aspectos dos diálogos e do estado dos personagens, que podem ter escapado na primeira observação. Tal caracterítica também faz com que tudo o que se vê na tela seja relativizado. A perspectiva de Van Sant nunca é tandenciosa, já que ele se preocupa em desvendar vários lados de uma mesma moeda. Com isso, levanta a questão: quem está certo quando o olhar é sobre um mesmo objeto? Tudo é uma questão de ponto de vista, de vivências particulares e de gostos pessoais.

Para rodar o filme, o cineasta abriu mão de nomes conhecidos, preferindo contar com muitos não-atores, o que confere ainda mais veracidade às sequências vistas. Sabe-se de antemão que os eventos apresentados desencadearão um massacre naquele lugar, o estado do Oregon, no interior dos Estados Unidos. A barbaridade foi impetrada por jovens que se sentiam ridicularizados por seus companheiros de classe, o que alerta para o problema do bullying, uma prática comum a muitos adolescentes em várias partes do mundo. Nesse ponto o cinema de Van Sant também contribui para estender uma discussão para além das fronteiras de seu país. Seus personagens geram forte identificação, porquanto não estão circunscritos a um ambiente específico, ou a uma realidade financeira e de conhecimento restrita. E o mais importante de tudo é que Van Sant consegue construir seu convite ao debate sem soar panfletário, trazendo a consciência de que determinismos e generalizações não representam nenhuma ajuda para entender e procurar possíveis soluções para a inquietude que paira sobre os jovens dos dias atuais. Esse é o grande tema de "Elefante", que se revela através do retrato de uma realidade angustiante, que aturde pela urgência com que pede transformação.
Van Sant está longe de ser manipulador, porque não condena nem passa a mão sobre a cabeça daqueles de quem se ocupa. Interessa muito mais à sua câmera e, por extensão, a ele, espiar, investigar e deduzir possibilidades para o tédio que tomou conta das relações juvenis, e que também é um pouco de todos nós. Com sua maneira de acompanhar o cotidiano de pessoas tão próximas do real, ele abre margem para discussões existencialistas, que muitos adoram enxergar em seus filmes. Seja como for, acima de qualquer coisa o diretor fala de nossas agonias, da grande dificuldade que é existir e se entender. E o caminho escolhido por ele para essa questão é o da imagem, que quase sempre tem mais eficácia de comunicação que longos diálogos. Na falta de palavras, se apoia em silêncios e pequenos gestos, e a escolha pela contemplação tem sempre uma força descomunal.

16 de abr. de 2010

"A partida", um belo conto sobre o medo da morte

O cinema japonês deu o ar de sua graça na festa do Oscar em 2009 em grande estilo. Depois de concorrer ao maior prêmio da área, "A partida" saiu vitorioso, levando a estatueta para sua casa do outro lado do mundo. Importante é salientar que a vitória foi bastante justa, já que o filme tem muitos méritos que justifiquem sua apreciação. O cerne da trama é a história de vida de Daigo Kobayashi (Masahiro Motoki), um jovem que demonstra ser bastante calmo e sereno em relação à própria vida. No começo do filme, ele faz parte de uma simpática orquestra na qual atua como violoncelista. Aquele é o ofício sobre o qual ele tem certeza de que é o que tem talento para fazer.

Mas logo surge um revés, que será o elemento catalisador das transformações que sucederão ao personagem, tirando-o de sua zona de conforto. A orquestra da qual ele faz parte é dissolvida, devido a questões de ordem financeira. Isso o obriga à partida do título em português, já que ele decide retornar à sua cidade natal junto com a esposa Mika (Ryoko Hirosue). A volta ao lugar onde nasceu é também uma volta para o interior dele mesmo, já que a cidade na qual se cresce é sempre um reservatório de recordações, boas e ruins. Assim também o é para Daigo, que reencontra a família, mais especificamente seus pais, com quem sempre teve uma relação boa, mas um tanto diplomática. Esse retorno forçado leva Daigo a rever suas próprias expectativas, e a lidar com alguns de seus fantasmas.
Uma vez de volta à sua cidade, ele precisa encontrar um novo trabalho, e é quando o jovem finalmente encontra uma ocupação que o filme dá uma guinada importante. Ele chega a um pequeno estabelecimento através de um anúncio no jornal, que informa haver uma vaga para uma ocupação que não exige qualquer experiência, além de pagar muito bem ao funcionário. Interessado nessa combinação perfeita, Daigo encontra o local, e uma simpática atendente lhe explica com vaguidão do que se trata o emprego. Ela diz que ali eles ajudam as pessoas a fazer boas viagens. Com isso, Daigo pensa que irá trabalhar em uma agência de turismo, e se espanta com a dispensabilidade de seu currículo e de uma entrevista formal com o dono do negócio. É essa a ideia que ele passa para a esposa, que até gosta de saber do novo trabalho do marido.

Mas ele acaba descobrindo que não é exatamente viagem em seu sentido corriqueiro que a firma oferece aos seus clientes. Daigo se dá conta de que está trabalhando em uma espécie de escritório funerário, e terá de atuar como preparador de corpos. Cabe ao jovem ajudar seu patrão a arrumar cadáveres antes que eles sejam enterrados, para que tenham um velório digno e sejam transportados para uma outra vida com toda a dignidade. Esse novo trabalho acaba fazendo com que, aos poucos, sua relação com a morte seja modificada. Porém, não é nada fácil para Daigo assimilar logo a sua função. Sua primeira experiência é simplesmente desastrosa, já que ele não demonstra ter estômago para lidar com aquela situação tão surreal para a maioria como se fosse um ato comum. E acaba quase vomitando. Essa atitude quase põe seu emprego a perder, mas ele pede uma segunda chance, pois o salário que recebe por isso é alto, e dali dependerá seu sustento.
Enquanto isso, sua esposa nem faz ideia de que o marido está lidando com mortos. Quando o fato vem ao seu conhecimento, entretanto, sua reação é a pior possível, já que a atividade desempenhada por Daigo é cercada de todos os tipos de preconceitos. Mika exige que ele abandone o trabalho, se quiser continuar casado com ela. Daigo prometa atender seu pedido, mas recua diante da afeição que já adquiriu por seu chefe. De fato, o personagem é muito carismático, e demonstra muita sabedoria e resignação diante dos fatos da vida. Na verdade, é uma característica quase unânime do povo oriental. Além disso, com o passar do tempo em seu trabalho, Daigo percebe que encontrou naquilo que está fazendo sua verdadeira vocação, já que se torna um exímio preparador de corpos, surpreendendo inclusive seu patrão. Até se esquece do quanto amava tocar seu violoncelo. Diante de sua recusa em deixar o emprego, Mika decide sair de casa, abalando, assim, casamento dos dois. Daigo não sei deixa abater pela visão condenatória das pessoas à sua volta, o que evidencia que seu novo trabalho lhe deu mais coragem para encarar a vida.
Partindo desse argumento um tanto quanto dolorido, Yojiro Takita dirige um filme belo e delicado, de cores frias que traduzem um estado de espírito de contemplação e introspecção. É o modo contido, quase legendário, que tipifica muito bem japoneses e outros povos naturais do Oriente. "A partida" não é feito de sobressaltos, e exige de seu espectador uma certa calma, já que seus 144 minutos de duração transcorrem com a fluidez de um pequeno rio. Não significa que seja tedioso, apenas que passa com uma dose de vagarosidade que se encaixa perfeitamente em seu enredo. É um filme feito para mentes que se permitem inclinar para o aprendizado, já que, de certa forma, pode ajudar a rever a relação do público com a morte. O único senão fica por conta de parte da trajetória do protagonista. Colocar um homem diante de uma situação nova, com a qual ele não sabe lidar inicialmente, e depois torná-lo o melhor naquilo, é um pouco clichê. Mas nada que comprometa seriamente a estrutura e o acabamento de uma história pulsante, que sobrevive na memória muito tempo depois da subida de seus créditos.

15 de abr. de 2010

O óbvio ultrapassado pelo bizarro em "Embriagado de amor"

As comédias com inteligência e algo mais a dizer ganharam um grande reforço com o lançamento de "Embriagado de amor". O filme não é simplesmente uma coleção de situações inusitadas que vão sucedendo uma após a outra, mas sim um ótimo exercício de estilo de Paul Thomas Anderson. O jovem diretor, que tinha apenas 32 anos quando dirigiu o filme, em 2002, já havia encantado o mundo com sua estreia no celuloide, que acontecera com curtas-metragens, mas que deslanchou mesmo a partir de 1997, com "Boogie nights - Prazer sem limites". Ali, ele expunha o nascimento da indústria pornográfica por meio da história fictícia de um jovem que conhecia a glória e a desgraça de se viver do próprio corpo. Dois anos mais tarde, ele filmou "Magnólia", mais um trabalho celebrado de sua curta, mas vitoriosa carreira, em que engendrou m mosaico de histórias por vezes um tanto quanto confusas, mas cuja maneira de se entrelaçar encantava o plateia. Não tardou para que seu estilo fosse comparado ao de Robert Altman, que se tornou um especialista em filmes-painel.

Mas o que se vê em "Embrigado de amor" é um pouco diferentes desse paralelismo de histórias. Anderson decidiu focar quase o tempo todo em um único personagem, o frágil Barry Egan. O papel foi confiado a Adam Sandler, que se revela surpreendente ao longo do filme, o que tranquiliza a qualquer um que pudesse pensar que fosse mais um daqueles escandalosos erros de escalação, que, de fato, existem aos montes na história do cinema. Sandler se mostra muito mais contido que o habitual, acertando ao apostar numa economia gestual, que confere ao seu personagem uma certa vulnerabilidade bastante plausível. Barry Egan foi criado junto com sete irmãs, o que o fez assumir involuntariamente o posto de protetor de todas. Mas elas são muito menos dóceis do que possam parecer, e acabaram por exercer suas personalidades dominadoras sobre Barry. Isso, porém, não impediu que ele se tranformasse num sonhador, à sua maneira.
Aos poucos, dados curiosos sobre Barry começam a aparecer: ele tem um desejo bizarro de acumular milhagens aéreas, o que o leva a colecionar freneticamente os cupons de uma marca famosa de sobremesas. Com isso, chega a estocar quantidades impressionantes do produto, para ter o quanto antes o número de milhas tão desejadas. Apenas essa simples informação já denuncia o nível de carência emocional de um homem atravessado pela solidão. Barry tem pouquíssimos amigos, somado a uma grande dificuldade em cultivar suas amizades. Dean Trumbell (Philip Seymour Hoffman) é um desse poucos amigos que ainda mantém proximidade com ele. A rotina insossa de Barry só parece mudar depois de que ele conhece Lena Leonard (Emily Watson, tão rara quanto ótima nas telas). Ela surge em sua vida marcada por abusos desde a infância, os quais o deixaram resistente a paixões. A maneira abrupta com que Lena invade a vida de Barry é um dos elementos pitorescos do roteiro, também a cargo de Thomas Anderson. Aliás, todos os filmes que ele dirigiu até hoje também foram roteirizados por ele.

Na articulação do encontro quase casual entre Barry e Lena, o diretor se filia a uma estirpe de realizadores que se voltam para analisar a vida sobre o prisma do innusitado. Por sua essência, "Embriagado de amor" se assemelha aos longas de Wes Anderson, como "Os excêntricos Tenembaums" e "A vida marinha com Steve Zissou". Talvez não por acaso, os dois são xarás de sobrenome. Ambos gostam de brincar com a falta de sentido para a maioria dos fatos da vida, que nos coloca sempre em contato com situações que nos parecem ilógicas. Assim como eles, os irmãos Ethan e Joel Coen, na maioria de suas produções, gostam de espiar o aspecto surreal de nossas existências, brindando o público com um humor muitas vezes fora dos padrões esperados para uma comédia. "Queime depois de ler", dirigido recentemente pela dupla, é um bom exemplo desse tipo de humor. Por falar em comédia, ela não é exatamente o gênero no qual "Embriagado de amor" melhor se encaixa. O filme, na verdade, foge a rótulos. Minimamente, pode ser lido como um drama de tintas cômicas, mas caminha para além disso. O roteiro, com algumas falas muito bem pontuadas, contribui para despertar essa concepção da obra.
Interessante também é perceber que nem tudo o que se observa na tela necessariamente tem um significado. Nem uma significado exato, nem uma possibilidade de sentido. O filme é polissêmico, e essa riqueza de sentidos é que o torna uma opção inteligente e longe da descartabilidade da maioria de seus contemporâneos. Por outro lado, há um fio condutor atraente para a narrativa, que se desdobra em fatos até engraçados. Uma vez tendo entrado na vida de Barry, Lena fará com que ele empreenda uma viagem até o Havaí, e ainda enfrente um time de mafiosos de dar medo. Esse é o grande valor do encontro dos dois. Lena faz de Barry um homem mais seguro de si, forçando-o a lidar com seus fantasmas interiores. É mais ou menos como faz a descoberta do amor para aqueles que se cobrem de reservas e imagens pré-concebidas. O trabalho de Anderson em cima desse conceitos tão universais é minucioso e, simultaneamente, conciso, por mais que a junção desas duas características soe como um oxímoro. Os diálogos saborosos, temperados por uma trilha sonora da melhor qualidade, são a cereja do bolo que o cineasta nos preparou, por assim dizer.
"Embriagado de amor" carrega consigo uma aura cult, que é fruto, em grande parte, das mãos hábeis de Anderson, tanto na escrita de um roteiro tão bom, sobre um argumento tão interessante, quanto no manuseio de uma câmera que perscruta ângulos nada óbvios da paisagem e dos personagens. Cannes observou bem esse detalhe importante, pois premiou o filme na categoria de melhor direção. Já nos primeiros minutos de projeção, sem aviso prévio, a narrativa se adensa, colocando o espectador num horizonte de expectativas muito amplo. Quem começa a ver o filme acreditando que se trata de mais uma alternativa de riso, entre outras tantas, não tarde irá se surpreender com o que suecede diante dos seus olhos. E, certamente, acompanhará em sua jornada um doce brilho no olhar que não se apagará tão cedo, mesmo depois do fim da sessão.

14 de abr. de 2010

Verdade e ficção embaralhadas em "Jogo de cena"

Um dos maiores achados do cinema nacional recente é, sem sombra de dúvida, "Jogo de cena". Concebido como um documentário, o filme de Eduardo Coutinho é daquelas obras que a crítica tem dificuldade de encaixar em rótulos. Afinal, nunca se sabe ao certo se aquilo a que se está assistindo é realidade ou se se trata de uma ficcionalização do real. É sobre essa temática tão complexa quanto estimulante que se debruça o longa, que marca um passo importante rumo à excelência na procução audiovisual do Brasil.

Nada do que se vê acontecendo em "Jogo de cena" é tão simples como aparenta. Inicialmente, um espectador mais incauto pode acreditar que são apresentadas apenas conversas sobre assuntos corriqueiros, como acontece e, tantos outros documentários. Mas o filme (?) é muito mais do que isso. Para começar, há apenas mulheres em cena, resultado de um garimpo feito pelo diretor ao longo de algumas semanas. Ele colocou um anúncio no jornal convidando mulheres de todas as idades para contar suas histórias de vida, ou algum episódio específico que as tenha marcado. Essa espécie de entrevista quase sem a intervenção de um interlocutor seria filmada por Coutinho no teatro Glauce Rocha, no centro do Rio de Janeiro. Foram aproximadamente 83 mulheres ouvidas durante meses, as quais tocaram nos assuntos mais diversos.
Elas falaram abertamente sobre escolhas, arrependimentos, atitudes que tomaram em momentos de raiva, relacionamentos amorosos e com pais e filhos, sempre com muita coragem e franqueza. Coutinho disse à época do lançamento do filme que tinha certeza de que ele havia dado certo por causa da presença feminina no "elenco". Segundo ele, os homens não teriam a mesma intrepidez para contar com riqueza de detalhes daquilo de que mais se recordam, ou daquilo que mais os aflige. Esse desprendimento para contar a própria história tipifica as mulheres. "Jogo de cena", no entanto, não se resume a uma colagem de depoimentos mostrados uns após os outros. Existe um detalhe absolutamente crucial, que faz do filme uma obra singular.

Aliada à espontaneidade das mulheres comuns, que aceitaram abrir suas vidas sem reservas, há a presença de atrizes de talento, como Andréa Beltrão e Marília Pêra. Elas foram escolhidas a dedo pelo diretor a fim de que desempenhasseum uma função importantíssima para o longa. Cada uma poderia escolher uma das histórias de vida das mulheres que foram entrevistadas, de modo que as recontassem como se fossem elas mesmas a viver aquilo tudo. Somado a isso, Coutinho pediu gentilmente que elas pudessem contar algo que jamais haviam dito na mídia antes, que revelariam no filme. O poonto-chave desse pedido é que essas histórias da vida pessoal das atrizes são contadas em meio àquilo que seria a representação delas da vida das mulheres que elas decidiram interpretar. E é esse detalhe que causa o embaralhamento entre realidade e ficção que caracteriza o filme.
Valendo-se desse recurso engenhoso, Coutinho exige de seu público uma atenção redobrada: afinal, aquilo a que se está assistindo é uma mulher comum falando de sua própria vida, uma atriz fazendo uma representação ou uma mulher simples que está dando ares de ficção ao seu discurso. Essas são apenas três das possibilidades que se levantam na mente do espectador à medida em que o filme prossegue, deixando sempre no ar a incerteza sobre a veracidade, ou mesmo a falsidade, do que se lhe apresenta diante dos olhos. A tese de que todos representamos na vida, emm alguma instância, ganha reforço com a proposta de Coutinho. Assim fica a questão instigante de que há um pouco de ator em cada um de nós, e mesmo nas falas menos elaboradas podemos imprimir uma dose de ficção. Tudo depende de para onde nosso olhar e nossa intenção estão voltados no momento.
Interessante também é acompanhar a reação de Andréa e Marília ao narrar das histórias que escolheram. Além delas, Coutinho também convidou Fernanda Torres e Mary Sheila para falar de si e falar como se fosse outras mulheres. Elas estão espalhadas ao longo do filme, o que contribui para dificultar ainda mais a compreensão daquilo que é fato e daquilo que é ficção. Essa é a grande sacada de "Jogo de cena", que faz do filme um material excelente para se observar o comportamento humano diante da contação de uma história. Há sempre um toque de ficção naquilo que dizemos, pois trata-se de nosso olhar subjetivo acerca do que falamos. E esse olhar faz toda a diferença.

12 de abr. de 2010

"Desejo e perigo" e as armadilhas do querer

Certos diretores merecem o epíteto de artesãos da imagem e da palavra, por seu talento inconfundível e indiscutível para se lançar no ato de contar uma história. Essa alcunha cabe perfeitamente para Ang Lee, um dos mais influentes e famosos cineastas do mundo oriental. Sua carreira é marcada por belíssimos exemplares audiovisuais, como "A arte de viver", "Cavalgada com o diabo" e "Tempestade de gelo". E como não se lembrar do show de imagens coreografadas de "O tigre e o dragão"? O recente "O segredo de Brokeback Mountain" também não pode ficar de fora dessa equação.

Mas o foco dessa crítica está em "Desejo e perigo", longa que concedeu o segundo Leão de Ouro no Festival de Veneza ao diretor, já que fou considerado o melhor filme em 2007. A despeito do prêmio imponente, o atraso com que chegou aos cinemas brasileiros foi de 2 anos. Uma demora injustificável, pois o filme é digno de todas as láureas que a ele possam ser concedidas. Com sua trama que brinca o tempo todo com o engano que as aparências causam, Lee entrega uma obra madura, consistente e que prende a atenção do início ao fim.
O que se vê na tela, ao longo de 157 minutos, é a trajetória da jovem Wang Jiazhi, modificada a partir do momento em que entra para um grupo de teatro. A companhia é formada por outros jovens, que acreditam na arte como um instrumento de resistência contra a barbárie que toma conta de mundo. Esse é um pensamento que acompanha alguns artistas ainda hoje, e não deixa de ter sua validade como tese. Mas na prática muitas vezes pode acabar soando panfletário, sem surtir o efeito desejado. E é exatamente o que acontece com o grupo ao qual Wang se associa. A ocasião na qual eles se encontram é a ocupação japonesa durante a Segunda Guerra Mundial, um episódio bastante delicado da história recente da China. Wang é chinesa, e o brilho irradiado por ela logo a torna a estrela do grupo teatral de que faz parte.

Seus companheiros de ofício acabam vendo nessa ascensão veloz uma chance única de usá-la como isca para atrair o Sr. Yee, que trabalha para os japoneses. A intenção dos rapazes é assassiná-lo, por tudo aquilo que ele representa.
Esse mote é apenas o pontapé inicial de um jogo que vai ganhando contornos complexos, como uma corrida de gato e rato em que ora um assume o papel de algoz e o outro o de vítima, ora a brincadeira se inverte. Wang tem a função de seduzir Yee, o que a impede de se apaixonar por ele. Mas essa é exatamente a armadilha na qual ela cai: desenvolver um sentimento forte por aquele a quem deveria prejudicar. Um detalhe importante que põe toda a estratégia engendrada pelos membros da companhia teatral em perigo, e formando a díade de sentimentos que nomeia o filme em português e também em seu título original. E são eles que conduzem as reviravoltas que Lee preparou para supreender o espectador. As surpresas, aliás, são fundamentais para a narrativa, que se apoia inicialmente em uma temática já constantemente repisada. A ideia de falar sobre um plano de destruição que fracassa por causa do nascimento da paixão por quem se deveria querer mal aparece em dezenas de filmes. A diferença reside na maneira como o assunto se desenvolve. Em "Desejo e perigo", ele vai muito além das querelas que causam situações pitorescas e que levam ao riso fácil e escancarado. Nada contra meros passatempos para desopilar o fígado. Mas o espaço de refelexão e encantamento que também pertence ao cinema precisa ser igualmente considerado, em que pese a capacidade desse veículo de mexer com as nossas emoções de modo muito sofisticado. Ang Lee demonstra que é plenamente consciente dessa qualidade maravilhosa do cinema, e se utiliza dela com vigor e beleza.
As imagens apresentadas pela direção de fotografia não deixam mentir. Cada sequência do filme é de um deslumbre incontestável, configurando uma atmosfera inebriante que, inclusive, aguça o desejo. O ápice desse movimento em direção ao aflorar da libido está na cena de sexo vivida pelos protagonistas. É uma sequência bastante despudorada, que certamente exigiu bastante desprendimento e intimidade entre os atores para que fosse realizada. De qualquer forma, tudo passa longe da vulgaridade e da gratuidade. Também há uma certa dose de violência, já que em dado momento do filme os jovens quase conseguem atingir o objetivo a que se propuseram. A cena em que os rapazes quase matam Yee revela o quanto o político já está ciente do estratagema que lhe foi preparado. Esses poucos e angustiantes minutos também trazem á uma constatação que se estende para a vida em geral: nunca se é totalmente inocente de nada. Pelo contrário, sempre há uma intenção oculta por trás daquilo que se diz ou se faz. Se boa ou ruim, já é matéria de outra discussão.

9 de abr. de 2010

A efemeridade da vida revisitada em "Memórias"

Ao iniciar da década de 80, Woody Allen decidiu se lançar novamente naquilo que faz com talento incontestável: dialogar com a vida através da metalinguagem. Esse recurso poderoso rende um filme sensacional como "Memórias", de clara inspiração felliniana,e um dos maiores acertos da carreira do cineasta novaiorquino. Aqui, ele mais uma vez assume o papel de protagonista, interpretando Sandy Bates. Ele é um cineasta de sucesso, que está numa fase de rememoração da vida e da carreira bem-sucedida. Apenas essa sucintadescrição já dá conta de mostrar que há muito em comum entre o enredo do filme e o enredo da própria vida de Allen. E é caminhando nessa tênue fronteira, que, ás vezes, parece desaparecer, que o diretor engendra essa pequena pérola. Pequena mesmo, já que toda a trama está condensada em 91 minutos.

Sandy é homenageado com um festival de seus filmes, o que o leva a se confrontar com uma série de lembranças, nem todas tão agradáveis. Esse é o grande tema do filme: a capacidade que o ser humano tem de armazenar dados, fatos, informações, pessoas, cores, texturas e tudo o mais que passa pelo campo das sensações. Um filme que se calca nesse assunto, inveitavelmente tem um quê de afetivo, e é esse o caso de "Memórias". Allen se vale de seu humor bastante peculiar para trazer à tona aquilo de que mais gosta de falar. Seu alter-ego Sandy traduz as angústias que todo ser humano carrega, em maior ou menor escala. Ao rever sua trajetória no cinema, ele também reconsidera os passos que deu na vida pessoal, num reencontro consigo mesmo. A fotografia em preto e branco, que ele já utilizara em "Manhattan" no ano anterior, reforça a ideia de um mergulho no interior da alma e do coração.
Mas a jornada emocional de Sandy é temperada com algumas rodelas de humor, o que tornam o filme uma obra inconfundível. Mesmo quem não é fã do diretor sabe reconhecer de longe quando está diante de um seus longas. Esse aspecto reforça o diálogo que Allen trava com um dos maiores cineastas de todos os tempos: Ingmar Bergman. Ele já confessou várias vezes que o sueco é seu diretot predileto, e aqui faz uma ponte interessante com o Bergman de "Morangos silvestres", que pode ser considerado o filme-símbolo da busca pela identidade através das lembranças. Somos feitos das nossas memórias, e essa constatação pulsa a cada fotograma do filme, que tem em seu elenco outro grande trunfo. A presença de Charlotte Rampling enriquece cada cena, pois a atriz tem um impressionante carisma, que faz com o que o espectador não consiga tirar os olhos dela sempre que aparece. Sua Dorrie é apenas uma das várias mulheres que já cruzaram o caminho de Sandy, mas certamente merece ser sempre relembrada, por irradiar charme.

"Memórias" tem alguns momentos de diálogo direto com o público, que é convidado pelo diretor, tanto o de dentro do filme quanto o próprio Allen, a navegar pelas águas das recordações que fazem parte de sua vida. Não há como não enxergar um certo teor autobiográfico nessa obra, o que não é nem demérito nem grande qualidade. O longa também é marcado por uma estética simples e eficiente, além de uma economia narrativa exemplar. Normalmente prolixo em suas afirmações e piadas, aqui Allen adota um comportamente um pouco mais conciso. É a prova de que também se diz muito com pouco. Por meio de "Memórias", ele traça um inventário sentimental das chagas e das virtudes que acompanham a vida de uma pessoa, e é muito difícil que até o final da sessão pelo menos um pouco de identificação não seja despertada. O cineasta é um esteta da palavra e, por esse seu domínio, consegue traduzir emoções com grande acuidade e talento. São esses traços que demarcam a diferença entre um artista da imagem e um vendedor de uma obra desacaradamente comercial, que ainda é maioria no cinema como um todo.
É um prazer acompanhar o ponto de vista sarcástico do personagem em relação à sua vida. Allen demonstra que o ser humano deve ter consigo uma característica muito importante: a capacidade de debochar de si mesmo em certas situações. Ele relembra que nem tudo na vida pode ser levado totalmente a sério, pois sempre há um toque se absurdo naquilo que vivemos. Nem sempre a vida faz sentido, por mais que tentemos achar um sentido nela. Essa é a tônica dominante de seu cinema, que já atravessou décadas e continua digno de interesse e admiração. E a graça de viver talvez esteja exatamente nisso, como Allen quer nos fazer enxergar.

7 de abr. de 2010

"Obrigado por fumar" ou o humor a serviço da inteligência

Unir humor e inteligência não é uma regra na seara hollywoodiana. Por isso, qualquer bom filme que saiba dosar com perfeição esses dois elementos é digno de grande apreciação. "Obrigado por fumar" está aí para confirmar essa máxima. Sua trama gira em torno de Nick Naylor, vivido por um inspirado Aaron Eckhart, porta-voz de uma influente e poderosa indústria de cigarros. A missão dele é das mais ingratas: dar a cara a tapa para defender o hábito de fumar, que é a fonte de riquezas para seus patrões e, consequentemente, de onde vem o seu salário.

Nick, entretanto, vive um dilema moral: como passar uma boa imagem de pai para o filho em fase adolescente, tão necessitado de um referencial? O garoto não é nada bobo, e sabe muito bem o tipo de vida que o pai leva, não sendo enganado facilmente por ele. Joey, que é como se chama o filho, é daqueles meninos que consegue demonstrar mais maturidade que o próprio pai, trocando muitas vezes de lugar com o genitor. Como se vê, Nick tenta se equilibrar nessa gangorra que é sua vida, a fim de conseguir administrá-la da melhor forma possível. Baseando-se nesse argumento simples, Jason Reitman estreia na direção com um filme maduro e muito interessante, que passa longe da maioria dos longas politicamente corretos que se encontram por aí. O diferencial de "Obrigado por fumar" é tratar de um tema tão espinhoso com muita presença de espírito, sem fazer concessões desnecessárias ao espectador.
Trata-se de um convite instigante para o debate, já que o centro do enredo é uma das indústrias que mais tem responsabilidade sobre a mortalidade populacional em todo o mundo, e que já foi até mesmo proibida de propagandear suas mentiras no meio televisivo. Até que ponto as convicções pessoais podem ser sacrificadas em troca de se manter a estabilidade profissional? Essa indagação perseque Nick, uma vez que ele lida com dois lados de uma mesma moeda o tempo todo. E, para completar, ele ainda é amigo de Poll (Maria Bello) e Lorne (Sam Elliott), que representam outras duas controversas realidades: ela está a serviço da indústria de bebidas, enquanto ele representa uma importante indústria de armas. O teor satírico dessa comédia é reforçado aí, já que um demonstra entender a situação do outro, que é estar sempre na corda bamba. Perto do fim do filme, há uma cena na qual os três discutem qual deles tem o emprego mais perigoso, e cada um apresenta interessantes argumentos para afirmar que é um ou outro. Sob as suas falas, está embutida uma crítica feroz a alguns valores distorcidos que a sociedade aprendeu a aceitar como válidos.
Essa acidez é uma das maiores qualidades do filme, além da presença de um elenco tarimbado, que usa toda sua experiência para interpretar tipos com os quais nos deparamos facilmente pela vida. É o caso do senador Ortolan K. Finistirre, papel de William H. Macy, um homem que não está nem aí para o mal que o cultivo de um vício como o do cigarro pode acarretar. O próprio Nick Naylor também é um desses tipos. Ele sabe, assim como qualquer um, de todos os malefícios causados pelo tabagismo, mas lança-os fora quando precisa conceder uma entrevista em nome da empresa para a qual trabalha. Seu cinismo é tamanho, que ele já aprendeu a acreditar nas mentiras que cria, através das quais sobrevive. Suas tiradas em defesa do ofício são fruto da mente inventiva de Jason Reitman, que logo em seu primeiro filme já mostrava que vinha para fazer a diferença. Ele ainda entregaria dois ótimos filmes, "Juno" e "Amor sem escalas", que formam até agora uma carreira merecedora de acompanhamento. Seus longas sempre têm muito a dizer, com tramas que não mirabolantes, nem precisam de um efeito visual sequer. Reitman também não parece preocupado em defender uma verdade única nem um ponto de vista absoluto. O julgamento moral de seus personagens sempre fica a cargo do espectador, que opta por condená-los ou não. Nick, assim como qualquer outro personagem de sua filmografia, não é nem um coitadinho, nem um canalha. Apenas vive de acordo com as circunstâncias que se lhe impõem. Como qualquer um de nós, afinal.

5 de abr. de 2010

A estética de ultraviolência de "Senhores do crime"

David Cronemberg é conhecido por sua abordagem visceral da violência. Seus filmes quase sempre convergem para a questão, uma vez que essa é a temática predileta do cineasta. Mas poucas vezes sua verve sanguinolenta esteve tão acentuada quanto em "Senhores do crime". No longa de 2007, ele se propõe a abordar os bastidores da máfia russa sob a perspectiva de uma mulher comum e sensível. Ela é Anna (Naomi Watts), uma parteira que consegue salvar um bebê da morte, mas não a mãe da criança. É por causa da busca por mais informações do passado da jovem que Anna acaba esbarrando no submundo extremamente organizado desse segmento criminoso. Ela conhece Nikolai (Viggo Mortensen), um dos homens de confiança de um grande empresário do ramo, que tem relação indireta com o destino fatídico de sua ex-paciente. Afinal, ele trabalha para Semyon, o homem de quem a jovem engravidou, e de quem passou a querer distância ao saber do fato.

Nikolai é motorista da família, e bastante próximo de Kirill (Vincent Cassel), filho de seu chefe. Os dois tem um apreço um tanto doentio um pelo outro, mas há muito mais interesse e ciúme de Kirill por Nikolai do que o contrário. Uma vez tendo cruzado o caminho dessa irmandade do crime, Anna não se intimida, e luta pela elucidação dos fatos que procura. Ela encontra o diário da jovem, e seus escritos a guiam em sua jornada de descoberta, até que percebe que o negócio da família, um agradável restaurante, na verdade é fachada para seus esquemas violentos. Cronemberg, com isso, captura a alma do submundo do crime londrino. Toda aquela aura que tipifica o agir dos criminosos que agem em família está retratada no longa, que não abre mão de muito sangue para contar sua história.

Logo no começo da trama, Nikolai comete um assassinato brutal em uma barbearia, retalhando a garganta de um homem que poderia comprometer os interesses escusos do clã de delinquentes. É uma cena muito forte, através da qual o diretor já mostra a que veio. Como um crítico já disse com muita propriedade, Cronemberg segue uma gramática sensorial e visceral muito intensa, o que não significa dizer que ele se prende a conceitos pré-estabelecidos e faz sempre mais do mesmo. Muito pelo contrário. Ele sempre lança novos olhares para a questão da violência, calcado numa estética de transparência, que não abre mão de toda a crueza da qual se possa dispor. Sua direção de atores também é afiada, já que ele arranca de Viggo Mortensen uma interpretação soberba, digna até mesmo de uma indicação ao Oscar de melhor ator, perdido para Daniel Day-Lewis, que já tinha a láurea pela sua atuação em "Sangue negro" no papo em 2008. Se Mortensen levasse, entretanto, a justiça também teria sido feita.

Ele compõe um personagem cheio de nuances, que tende ora para a ternura, ora para a crueldade. É capaz de se comover com um bebê, mas também pode cortar os dedos de um cadáver para dificultar a identificação do corpo pela Polícia. Também pode se mostrar uma fera indomável quando está sob ameaça. Tem-se a constatação desse fato em uma sequência em especial. Quando está sozinho numa sauna, Nikolai é abordado por uma dupla de bandidos que quer acabar com sua vida. Num átimo, ele demonstra toda sua fúria ao atacá-los, sem qualquer ferramenta nas mãos, literalmente despido de qualquer instrumento que possa auxiliá-lo em sua luta pela vida naqueles instantes. Mortensen faz a cena completamente nu, exibindo todas as tatuagens de seu personagem. Cada desenho ali conta um episódio de sua vida, sendo traduções de sua caminhada pelas veredas criminosas. A sequência brevemente descrita acima já pode ser considerada antológica para o cinema, e inscreve o nome de David Cronemberg no panteão dos grandes realizadores.
Contudo, "Senhores do crime" não é só violência. Com sua fotografia nebulososa, o filme também apresenta uma Londres muito mais plúmbea do que aquela com a qual se está acostumado. As cenas evidenciam cadenciadamente uma atmosfera de embriaguez do crime, que também traz embutida em si uma brecha para a crítica. Em nenhum momento Cronemberg demonstra produzir apenas um espetáculo de entretenimento, mas sim uma imersão em um universo que rende toda sorte de reflexão, e está no âmago da humanidade: a inclinação para o mal, que pode ser dosada para o convívio com o próximo. Mas nada do que adormece está morto.