Normalmente, o cinema praticado por Pedro Almodóvar é associado ao afloramento da personalidade feminina, que invade todos os espaços oferecidos por ele, constituindo retratos ora afetuosos, ora denunciatórios da instabilidade e do alto grau de complexidade de suas representantes. Todavia, o diretor decidiu romper com essa característica essencial de sua obra ao dirigir Má educação (La mala educación, 2004). O filme é um retrato acurado do universo masculino, de forte carga homoerótica, encabeçado pelo protagonismo de Gael García Bernal, intérprete de Ignacio Rodriguez e, mais à frente, de outro(s) personagem(ns). Sua trajetória é o fio condutor de uma narrativa que se debruça sobre as questões mais particulares do âmbito dos homens e também faz uma homenagem ao cinema, tendência que vem sendo seguida por Almodóvar em seus últimos filmes.
É a paixão pelo cinema que vai mover as ações dos personagens principais do filme, que exige atenção redobrada dos espectador, por conta de sua narrativa que apresenta idas e vindas no tempo e que brinca bastante com a noção de intérprete e de personagem. Bernal é um dos que mais demonstra essa capacidade de mimetismo, aparecendo inicialmente para o público como Ignacio, para se transmutar dentro de si mesmo em personas diversas, atraindo a atenção do público para cada um de seus passos. Sua primeira aparição em cena é em uma visita a Enrique (Fele Martínez), que logo é identificado como um querido amigo de infância de Ignacio, que o procura para relembrar episódios passados de sua vida. Esse reencontro que se dá depois de muitos anos, e suscita o início de uma narrativa em retrocesso, que transporta a ação para o tempo em que Ignacio e Enrique eram meninos que estudavam em um rígido colégio de padres. Ali, eles descobriram o carinho, o amor e a culpa, e jamais voltaram a ser o que eram.
Almodóvar examina as consequência de um abuso sexual sofrido pelos dois amigos nos tempos de colégio, e como eles transformaram o fato em fonte de inspiração para um filme, que é a proposta feita por Ignacio a Enrique assim que eles se reencontram. Seguindo essa estrutura, o diretor aponta suas lentes para uma crítica ferrenha à Igreja Católica como instituição da hipocrisia, não deixando de contar uma história de amor e de vontade sublimada em paralelo. A verve iconoclasta de Almodóvar nunca esteve tão reverberante como nesse filme, que não hesita em trazer à tona tudo o que a fachada de um colégio de padres. Inicialmente, situa sua trama na Madri da década de 80, para incorrer em duas décadas anteriores e expurgar o que teriam sido as vivências daqueles dois homens separados pelo transcorrer do tempo.
É bastante notável a presença débil do sexo feminino em Má educação. É quase uma regra do cinema almodovariano trazer em destaque a figura das mulheres, vide os exemplos de Tudo sobre minha mãe (Todo sobre mi madre, 1999) e Fale com ela (Hable con ella, 2002), para citar títulos mais recentes. O filme em questão também vale pela inovação em termos de seus trabalhos, além de lidar com o discurso metalinguístico de modo encantador. E essa lida se materializa no bloqueio criativo de Enrique, que não dá conta de escrever um roteiro para filmar, até que recebe a tal visita de Ignacio, com uma sugestão de texto que oferece uma mistura de ficção com toques de realidade, por mencionar a questão do abuso sexual da infância dos amigos. Mas, na verdade, esse é apenas o ponto de partida de uma trama que é assinalada por reviravoltas, e comprova o talento do realizador espanhol como um exumador de feridas abertas, capaz de abarcar uma série de tópicos para discussão ser perder o fio da meada. A fotografia colorida, outro aspecto que costuma se destacar em seus filmes, aparece em Má educação com grande força, mas também com discrição suficiente para não chamar mais a atenção do público que a trama em si.
Na verdade, o filme é mais um exemplar de um estilo mais contido que Almodóvar vem adotando nos últimos anos. Essa fase mais “comportada” se iniciou com A flor do meu segredo (La flor de mi segredo, 1995), em que o cineasta abriu mão das cores berrantes e de personagens descaradamente espalhafatosos para se concentrar em tramas mais maduras. Não significa dizer, contudo, que o teor crítico de seu cinema, bem como seu estilo provocador, tenham sido abandonados. Muito pelo contrário, eles continuam presentes com toda a vivacidade, mas, agora, envoltas em uma atmosfera mais requintada, que deixa seu cinema mais acessível ao público, mas não necessariamente mais fácil. É notável o trabalho que composição que os personagens exigem dos atores, e Bernal, certamente, é um dos que mais precisou se adequar ao perfil de seu Ignacio, que, em dado momento da narrativa, surge como outro, e depois como um terceiro – um dado que é melhor compreendido ao se assistir ao filme. Ele está longe de ser apenas um ator de bela estampa, e demonstra maturidade e convicção dando vida a um homem atormentado pela própria consciência, que dá vazão aos seus desejos de forma impetuosa e anticonvencional.Bernal tem em Martinez um ótimo parceiro de cena, que faz jus à escalação e contracena de forma marcante com seu colega. O ator ainda é desconhecido do grande público, mas não é um iniciante. Este é seu segundo trabalho consecutivo com Almodóvar, já que também atuou em Fale com ela.
O diretor também volta a trabalhar com Javier Cámara, um dos atores mais recorrentes de sua filmografia recente, e que, aqui, exerce um papel de coadjuvante, mas de importância capital para o andamento da narrativa. Em todos os trabalhos com o diretor, Cámara dá vida a personagens de sexualidade dúbia, mas nenhum é igual ao outro. Um rápido cotejo entre os tipos que ele viveu em Tudo sobre minha mãe, Fale com ela e neste Má educação permite comprovar a afirmativa, e compreender a versatilidade do ator para transitar no universo algo bizarro criado por Almodóvar a cada nova película. Ele está perfeitamente adequado a esse estilo, e contribui bastante para o êxito da empreitada do diretor de contar uma história de contornos homoafetivos. É polêmica das grandes, mas não é necessário concordar com o ponto de vista exposto pelo diretor. Como cinema e como reflexão, o filme tem grande valor, e merece ser conferido com olhos atentos. Principalmente depois de certa altura de seu enredo, já que Almodóvar oferece uma radical alteração na percepção que o espectador tem no início do filme. Quando se está habituado a uma determinada configuração na narrativa, as convicções simplesmente se desfazem, e comprovam a capacidade de Almodóvar de surpreender e não estar preocupado em facilitar o entendimento de sua obra, que é sempre prolífica, anárquica e multifacetada.
28 de abr. de 2011
27 de abr. de 2011
O mosaico inspirador de Short cuts – Cenas da vida
O cinema estadunidense deu uma grande mostra de qualidade por meio de Robert Altman, quando este dirigiu Short cuts – Cenas da vida (Short cuts, 1993). E as razões que atestam essa qualidade são inúmeras, tantas quantas são seus personagens. O filme é uma proposta de deliciosa de quebra-cabeça para ser montado lenta e extaticamente, cuja conclusão talvez seja o menos importante. Para se ter noção do que há na tela durante sua projeção, uma simples menção de sua sinopse já é o bastante. Em 188 minutos, os cotidianos de 22 personagens são entrelaçados por obra do acaso. É essa premissa trivial que vai dar conta de embevecer o público do começo à derradeira cena.
A base para as tramas abordadas em Short cuts – Cenas da vida são oito contos escritos por Raymond Carver. O autor viveu apenas 50 anos, tendo morrido na década de 80, o que bastou para que seus textos servissem de inspiração para Altman. E sua obra é conhecida exatamente por poemas e contos minimalistas. De posse de oito textos de Carver, Altman recrutou um elenco de tirar o fôlego – com o perdão do clichê – para interpretar os vários cruzamentos de trajetórias que se vão alinhavando por meio do roteiro escrito pelo próprio diretor em parceria com Frank Barhydt. Nessas mais de três horas de filme, desfila um conjunto heterogêneo de personagens, cada um transpirando verossimilhança à sua maneira. Não há protagonistas, apenas pessoas que vão e vêm, e que podem ser as mais importantes em um determinado momento, para depois se colocarem como coadjuvantes.
Tão longa duração permite que o filme aborde temas diversos e urgentes no dia a dia de qualquer pessoa, mesmo que ele tenha sido filmado há exatos 18 anos. Estão lá a comunicação imprecisa entre cônjuges, as diferenças de perspectivas que geram conflitos geracionais, as tentativas desesperadas de preenchimento de afeto, a busca desenfreada pela realização no outro e tantos outros tópicos que chamam a atenção da obra para si. Logo no começo do filme, Altman apresenta uma sequência literal que depois pode passar a ser empregada metaforicamente: um avião sobrevoa a cidade de Los Angeles e vários de seus cidadãos acompanham mais uma edição do noticiário, no qual se anunciam mudanças no tempo local. Mais à frente, entender-se-á esse aviso, porquanto surge um terremoto que abala algumas certezas concretas de certos personagens. É inevitável não associar a sequência em que a terra treme no filme com a chuva de sapos apresentada em Magnólia (Magnolia, 1999), filme de Paul Thomas Anderson, apontado como um discípulo claro de Altman. Ambos os eventos carregam seus simbolismos, consonânticos com o ponto de vista que o espectador eleger, e aproximam a obra de dois diretores que se debruçaram muitas vezes sobre as vozes veladas que ecoam em nossa sociedade. O que Short cuts – Cenas da vida traz pode ser perfeitamente estendido para qualquer metrópole contemporânea e soar totalmente verdadeiro. Um dos grandes méritos do filme é justamente esse: por mais que se saiba que ele é ambientado em Los Angeles, essa referência espacial raramente é retomada ao longo da narrativa. Depreende-se, daí, um caráter universal da obra, que se abre em vária possibilidades e meios de análise, comprovando suas facetas múltiplas.
Entre os personagens que compõem esse grande painel épico da natureza humana estão Ann Finnigan (Andie McDowell) e Paul Finnigan (Jack Lemmon), que sofrem de inconformismo pela morte do filho pequeno. Sua busca por consolo os leva a um comportamento de culpa muito forte, expresso principalmente no contato diário com um comerciante que trabalha perto de sua casa. É bom ver ambos os atores em cena, especialmente McDowell, que enche a tela com sua beleza, graça, vitalidade e talento. Depois de Ann, foram pouquíssimos os bons papéis oferecidos a essa grande atriz, que faz falta nos filmes. Lemmon, por sua vez, nos deixou há dez anos, e esta é uma das últimas aparições do ator em cena. Eles são acompanhados pela presença magnética de Julianne Moore, que dá vida a Marian Wyman, e se mostra à vontade como nunca em sua personagem. Ela é responsável por momentos de êxtase dramático, especialmente quando contracena com Matthew Modine, que aqui personifica Ralph, seu marido, um homem incapaz de traduzir as emoções da esposa para um linguagem que ele seja hábil em entender. Mais do que qualquer outro casal do filme, esse é a expressão genuína da falta de correspondência entre as palavras e as coisas, dada a inutilidade de tanta verborragia em seu relacionamento. Moore encara, inclusive, uma rápida cena de nu frontal, despindo-se também literalmente de pudores e reservas para mergulhar na alma aflita de sua Marian. A atriz, aliás, é uma grande especialista nesse tipo de personagem, e daria vida a mulheres igualmente atormentadas em Chegadas e partidas (The shipping news, 2001) e As horas (The hours, 2002).
O elenco numeroso careceria de muitos parágrafos para que pudesse ser comentado a contento, mas é uma forma de surpresa para o espectador conhecê-los a partir do momento em que puser os olhos no filme. Mas cabe também mencionar o desempenho fantástico de Tim Robbins na pele de Gene Shepard, um homem canalha que não hesita em trair a esposa Sherri (Madeleine Stowe) no maior cinismo, elegendo como amante a voluptuosa Betty Weathers (Frances McDormand), de idade próxima à de sua esposa. É de partir o coração o modo com o qual Gene engana Sherri, deixando-a ligada somente aos filhos. A princípio, cada um desses núcleos está isolado e, como a sinopse do filme informa, em algum momento eles se encontrarão. Descobrir os meios pelos quais esses homens e mulheres se tornarão um quebra-cabeça completo é um dos atrativos do filme, que se ocupa dessa assemblage ao logo de toda a sua duração. Altman não tem pressa em cruzar as tramas que apresenta. E sua condução paciente aproxima cada um dos minutos do filme em uma valsa lenta e poética da vida real. Não há acasos forçados no filme. Não há chance de confundi-lo com Crash – No limite (Crash, 2005), que se utiliza de forma leviana do mecanismo de afunilamento de tramas, beirando a mediocridade. Perto de Short cuts – Cenas da vida, o roteiro de Paul Haggis é simplesmente pilhéria com o espectador e uma fonte rasa de reflexão.
O meio pelo qual se dá o encontro dos personagens também é extremamente simples, e leva a crer piamente que poderia acontecer no cotidiano de qualquer grande cidade. É o atropelamento de uma criança, que tem relação direta com alguns dos personagens desde o início, que servirá de elo entre todos os outros, e portará consigo uma chave para a abertura de uma enorme porta para ensejar sobre a realidade da condição humana. Altman sintetiza, por mais longo que o filme seja, a essência da humanidade: carente de afeto, necessitada de falar e de ser ouvida, em busca da completude que não encontra por mais que se esforce para tal e a certeza de que a felicidade está muito mais clara evidente em lampejos que em uma continuidade temporal. Muitas da temáticas levantadas pelo filme estão longe de ser inéditas, mas a maneira pela qual o diretor toma as rédeas para lançar essa discussão despertam novamente um forte interesse por comentar sobre elas. Afinal, qual é o ser humano que não se interessa em debater sobre sua própria condição? O roteiro de Short cuts – Cenas da vida possibilita essa discussão de modo brilhante, e o resultado foi sua indicação ao Globo de Ouro nessa categoria. O Oscar, por sua vez, contemplou o filme com apenas uma indicação, na categoria de diretor, mais do que merecida. Se a Academia já tivesse criado a categoria de melhor elenco, certamente o conjunto de atores desse filme seria premiado com justiça, já que boa parte da responsabilidade da chama que se acende quando se assiste ao filme e que não se apaga mais é de cada um dos intérpretes que oferece seu talento aqui. Não há desempenhos medianos no filme, somente atuações que podem ser classificadas tranquilamente como, no mínimo, ótimas.
Além dos nomes já citados anteriormente, Short cuts – Cenas da vida nos brinda também com a presença de Lilly Tomlin, uma parceria um tanto recorrente de Altman, Jennifer Jason Leigh, um triste exemplo de atriz subestimada que arrebenta mesmo em um papel pequeno – no que se refere a tempo de permanência em cena - , Robert Downey Jr., ainda em uma época iniciática, mas já demonstradora de seu talento, e tantos outros que nos encantam e chamam a atenção para si a cada movimento na tela. O cineasta vinha de um outro grande mosaico humano, O jogador (The player, 1992), filmado apenas um ano antes desse, e confirmou sua predileção por traçar retratos em escala macroscópica sobre que há de mais humano em cada pessoa. Esse apreço ainda se comprovaria em dois de seus três últimos trabalhos: Assassinato em Gosford Park (Gosford Park, 2001) e A última noite (A prairie home companion, 2006) Os tipos apresentados por Altman podem exalar um pouco de cada um de nós, com proporções ou intensidades distintas, mas com notabilidade de identificação alta. Aos mais resistentes a embarcar na experiência de um filme de longa duração, o conselho que fica é o de romper com essa reserva e ser enlevado pelas surpresas infinitas de Short cuts – Cenas da vida, muitas mais que os fragmentos de trama espargidos por aqui.
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22 de abr. de 2011
As várias estações do amor observadas em Brilho de uma paixão
A beleza do florescimento de um amor e de seu posterior desenvolvimento é o grande foco eleito por Jane Campion em Brilho de uma paixão (Bright star, 2009). Para isso, ela alia poesia e romance ao contar a trajetória de John Keats, poeta inglês do século XIX interpretado com vitalidade por Bem Wishaw, ator ainda pouco conhecido do grande público, presente em filmes como Não estou lá (I’m not there, 2007). Ele cai de amores por Fanny Brawne (Abbie Cornish), uma estudante de moda tão bela quanto geniosa. Não demora para que ela corresponda ao sentimento, mas a boa e velha competição velada entre eles assume a primazia quase de imediato. E esse início de guerra amorosa já contribui para dar o tom que a diretora imprime ao seu trabalho: a investigação das fases do amor, especialmente aquelas que podem facilmente ser associadas a qualquer casal.
Desde seu início, porém, Brilho de uma paixão salta aos olhos por um de seus aspectos técnicos: sua fotografia. Assinada por Greig Fraser, ela é um deslumbre e tanto para admiradores da imagem e, em muitos momentos, diz mais que qualquer palavra pronunciada pelos personagens. Na verdade, ela é quase uma outra personagem do filme, servindo como demonstração clara da passagem do tempo para o casal, sob a forma das estações do ano. A metáfora que se evidencia aqui é a dos ciclos. Tal qual a natureza, uma paixão também pode passar pelas fases da germinação, do florescimento e da frutificação, além de também estar suscetível à morte e/ou à extinção, fatos que acometem muitos indivíduos de desespero e inércia. John e Fanny são pessoas totalmente adequadas a essa realidade, vivendo cada um dos episódios que assinalam a existência de um amor. E Campion focaliza essas fases com um olhar um tanto convencional demais, que torna o filme, por muitas vezes, sem ritmo e dotado de certa irregularidade.
Ainda com relação à fotografia de Brilho de uma paixão, seu responsável tem um bom currículo de filmes nos quais desempanhou a função de fotógrafo, entre os quais estão o segmento The lady bug de Cada um com seu cinema (Chacun son cinema, 2007) – justamente o que Jane Campion dirigiu – e Deixe-me entrar (Let me in, 2010), lançado recentemente no circuito. Seu trabalho no filme em questão é primoroso, e contribui bastante para o despertamento do interesse do espectador pela obra. É um filme que serve para se acompanhar um típica história de amor e sofrimento, daquelas que se estudam à exaustão nas aulas de Literatura do Ensino Médio. O mérito de Campion é transpor para a tela a obra de um poeta que não tem grande reconhecimento no ciclo de estudos dessa fase escolar,na qual figuram nomes proeminentes da escola romântica, caracterizada prototipicamente pela visão escapista da realidade, geradora de uma busca pela autorrealização no passado ou no ambiente campestre, devidamente assinaladas pelo roteiro do filme. Em certa instância, Brilho de uma paixão dá vida a um romance que muitas vezes podemos ter em forma de idealização na cabeça.
A dupla de atores que dá vida aos protagonistas merece ser comentada e elogiada, pois ambos são uma das melhores coisas que o filme pode oferecer. Tanto Ben Wishaw quanto Abbie Cornish exalam verdade em suas composições de seus personagens, e encantam com um amor que está cada vez mais distante do que se tem visto cotidianamente por aí. É fato que a distância temporal é um dos fatores que fomentam essa disparidade, mas muito que se manifesta no envolvimento entre John e Fanny deveria ser transcrito para as relações amorosas nos dias atuais, guardadas as devidas proporções. Eles se tornam ainda mais vivazes diante da condução excessivamente morosa dada por Campion, que praticamente circunscreve o filme apenas aos diálogos algo morosos travados entre os personagens, caracterizando o filme por ser contemplativo além da conta. Para escrever o roteiro, a diretora se baseou na biografia do poeta, escrita por Andrew Motion, deixando-se levar por passagens monótonas da narrativa, o que só se agrava por conta de uma quase ausência de trilha sonora, essa, por sua vez, uma incumbência de Mark Bradshaw, que também repete sua parceria com a cineasta, mas sem grandes chances de assinalar uma composição musical dessa vez. Esse aspecto depõe bastante contra Brilho de uma paixão, posto que pareça que a sua decisão tenha sido a de concentrar sua atenção apenas nos diálogos entre os amantes.
Em sua passagem pelo festival de Cannes em 2009, o filme tinha inúmeros adversários de peso, que certamente até mareciam ser laureados mais que esse. Mas há méritos no filme, como já se comentou acima. Decerto seu valor está nas interpretações dos protagonistas e nas imagens idílicas de que sua fotografia é composta, já que seu enredo é desenvolvido de modo por demais arrastado. Um filme não pode ser considerado bom ou ruim apenas levando-se em conta a sua plasticidade. É fato que alquimia perfeita que resulta em uma obra irrepreensível requer outros componentes, daí o fato de Brilho de uma paixão carecer de elementos que o tornem melhor. Campion veio de um hiato longo antes desse filme, pois seu trabalho anterior havia sido Em carne viva (In the cut, 2003), que não recebeu a aprovação da crítica à época do seu lançamento, e acabou sendo reconhecido apenas como a tentativa de Meg Ryan de se livrar do estigma de namoradinha da América, dado seu extenso currículo de comédias românticas – mas esse é um à parte para uma outra crítica... O fato que salta as olhos aqui é o leve desperdício cometido por Campion diante da riqueza da história que tinha nas mãos, que poderia ser, entre outras coisas, um pouco mais curta e menos centralizada no poeta e em sua coita amorosa. O elenco de coadjuvantes, principalmente Paul Schneider, acaba prejudicado com isso.
Desde seu início, porém, Brilho de uma paixão salta aos olhos por um de seus aspectos técnicos: sua fotografia. Assinada por Greig Fraser, ela é um deslumbre e tanto para admiradores da imagem e, em muitos momentos, diz mais que qualquer palavra pronunciada pelos personagens. Na verdade, ela é quase uma outra personagem do filme, servindo como demonstração clara da passagem do tempo para o casal, sob a forma das estações do ano. A metáfora que se evidencia aqui é a dos ciclos. Tal qual a natureza, uma paixão também pode passar pelas fases da germinação, do florescimento e da frutificação, além de também estar suscetível à morte e/ou à extinção, fatos que acometem muitos indivíduos de desespero e inércia. John e Fanny são pessoas totalmente adequadas a essa realidade, vivendo cada um dos episódios que assinalam a existência de um amor. E Campion focaliza essas fases com um olhar um tanto convencional demais, que torna o filme, por muitas vezes, sem ritmo e dotado de certa irregularidade.
Ainda com relação à fotografia de Brilho de uma paixão, seu responsável tem um bom currículo de filmes nos quais desempanhou a função de fotógrafo, entre os quais estão o segmento The lady bug de Cada um com seu cinema (Chacun son cinema, 2007) – justamente o que Jane Campion dirigiu – e Deixe-me entrar (Let me in, 2010), lançado recentemente no circuito. Seu trabalho no filme em questão é primoroso, e contribui bastante para o despertamento do interesse do espectador pela obra. É um filme que serve para se acompanhar um típica história de amor e sofrimento, daquelas que se estudam à exaustão nas aulas de Literatura do Ensino Médio. O mérito de Campion é transpor para a tela a obra de um poeta que não tem grande reconhecimento no ciclo de estudos dessa fase escolar,na qual figuram nomes proeminentes da escola romântica, caracterizada prototipicamente pela visão escapista da realidade, geradora de uma busca pela autorrealização no passado ou no ambiente campestre, devidamente assinaladas pelo roteiro do filme. Em certa instância, Brilho de uma paixão dá vida a um romance que muitas vezes podemos ter em forma de idealização na cabeça.
A dupla de atores que dá vida aos protagonistas merece ser comentada e elogiada, pois ambos são uma das melhores coisas que o filme pode oferecer. Tanto Ben Wishaw quanto Abbie Cornish exalam verdade em suas composições de seus personagens, e encantam com um amor que está cada vez mais distante do que se tem visto cotidianamente por aí. É fato que a distância temporal é um dos fatores que fomentam essa disparidade, mas muito que se manifesta no envolvimento entre John e Fanny deveria ser transcrito para as relações amorosas nos dias atuais, guardadas as devidas proporções. Eles se tornam ainda mais vivazes diante da condução excessivamente morosa dada por Campion, que praticamente circunscreve o filme apenas aos diálogos algo morosos travados entre os personagens, caracterizando o filme por ser contemplativo além da conta. Para escrever o roteiro, a diretora se baseou na biografia do poeta, escrita por Andrew Motion, deixando-se levar por passagens monótonas da narrativa, o que só se agrava por conta de uma quase ausência de trilha sonora, essa, por sua vez, uma incumbência de Mark Bradshaw, que também repete sua parceria com a cineasta, mas sem grandes chances de assinalar uma composição musical dessa vez. Esse aspecto depõe bastante contra Brilho de uma paixão, posto que pareça que a sua decisão tenha sido a de concentrar sua atenção apenas nos diálogos entre os amantes.
Em sua passagem pelo festival de Cannes em 2009, o filme tinha inúmeros adversários de peso, que certamente até mareciam ser laureados mais que esse. Mas há méritos no filme, como já se comentou acima. Decerto seu valor está nas interpretações dos protagonistas e nas imagens idílicas de que sua fotografia é composta, já que seu enredo é desenvolvido de modo por demais arrastado. Um filme não pode ser considerado bom ou ruim apenas levando-se em conta a sua plasticidade. É fato que alquimia perfeita que resulta em uma obra irrepreensível requer outros componentes, daí o fato de Brilho de uma paixão carecer de elementos que o tornem melhor. Campion veio de um hiato longo antes desse filme, pois seu trabalho anterior havia sido Em carne viva (In the cut, 2003), que não recebeu a aprovação da crítica à época do seu lançamento, e acabou sendo reconhecido apenas como a tentativa de Meg Ryan de se livrar do estigma de namoradinha da América, dado seu extenso currículo de comédias românticas – mas esse é um à parte para uma outra crítica... O fato que salta as olhos aqui é o leve desperdício cometido por Campion diante da riqueza da história que tinha nas mãos, que poderia ser, entre outras coisas, um pouco mais curta e menos centralizada no poeta e em sua coita amorosa. O elenco de coadjuvantes, principalmente Paul Schneider, acaba prejudicado com isso.
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Cinema
Disputa, conflito e impulsividade em O ciúme mora ao lado
É sempre digno de nota quando um representante da cinematografia finlandesa aporta no circuito comercial brasileiro. Por isso, O ciúme mora ao lado (Haarautuvan rakkauden talo, 2009) já chama a atenção do público. O filme é dirigido por Mika Kaurismäki, cineasta radicado no Brasil há tempos, que só há pouco retornou ao seu país de origem, apenas para filmar, já que ele continuar morando por aqui. Por aqui, ele dirigiu os documentários Moro no Brasil (idem, 2002) e Brasileirinho (idem, 2005), ambos centrados no universo da música e na busca por um estudo algo afetivo da identidade brasileira dentro desse tipo de manifestação cultural. Em sua volta ao solo finlandês, ele voltou-se para o terreno da ficção, e seu filme mais recente é também sua terceira inclusão consecutiva nesse ambiente.
O ciúme mora ao lado mira suas lentes na rotina de um casal de classe média que não vê mais condições de continuar junto, e decide dar um fim no relacionamento. Entretanto, por conta de um orgulho do qual nenhum dos dois abre mão, eles começam a mover céus e terra para enciumar um ao outro, apenas com o intuito de provar que estão muito bem longe da antiga companhia. Para um espectador mais imediatista, a conclusão a que se pode chegar com a leitura dessa breve sinopse é a de que se trata de um filme banal, como tantas outras produções que empesteiam as salas de cinema periodicamente. Mas é aí que reside o ledo engano. A trama de crise conjugal é apenas o começo de uma divertida crônica contemporânea sobre a volatilidade das relações, que abre espaço para uma outra que envolve negócios escusos com a máfia. Kaurismäki aposta num ritmo ligeiro, e em uma dupla de intérpretes que faz misérias na pele do casal principal. Eles são Juhani (Hannu-Pekka Björkman) e Tuula (Elina Knihtilä), e sua aparência física já os afasta de um casal convencional.
Juhani e Tuula são casados há muitos anos. Ele é uma terapeuta familiar e ela é uma consultora de negócios, e a ironia do roteiro escrito pelo próprio diretor em parceria com Sami Keski-Vähälä a partir do romance de Petri Karra já começa por aí. Ambos são um fracasso naquilo que fazem quando se trata de aplicar seus conhecimentos dentro de sua própria casa. Juhani aconselha homens e mulheres com problemas conjugais, mas não é capaz de estabelecer um contato harmônico com sua esposa. Ela, por sua vez, não é muito sensata quando o assunto é conter as despesas do lar. O bom e velho ditado “Em casa de ferreiro, o espeto é de pau” se aplica claramente aos personagens. O filme brinca o tempo todo com as típica incongruências que surgem na convivência entre duas pessoas que já se conhecem bem, e assinala os vícios e virtudes de cada um por meio de uma abordagem cômica. Mas O ciúme mora ao lado não é tão-somente uma comédia de costumes sobre um casal em vias de se separar. Kaurismäki também não abre mão do lado dramático, quando insere a subtrama policial no cotidiano de Tuula e Juhani. Ela se desenvolve paralelamente às crescentes desavenças dos casal, e se deve principalmente ao fato de a mãe de Tuula estar envolvida em práticas criminosas, as quais até cogita deixar de lado se isso a deixar mais próxima de sua filha.
O filme ganha em interesse por conta das atitudes totalmente banais tomadas pelo casal. Ela começa a guerra ao forjar um namorado cheio de charme para enlouquecer o ex-marido, um piloto de avião que está apenas interessado em noites tórridas ao seu lado. Para não ficar em desvantagem, Juhani trata de ir atrás de seu irmão nada amigável para lhe pedir a companhia de uma mulher de vida “fácil” e também enciumar a ex-esposa. Ambos não poderiam ter pensado em algo mais infantil para atrair a atenção um do outro e, nesse ponto, O ciúme mora ao lado oferece um aspecto de identificação quase unânime. Quantos casais não se comportam como crianças de cinco anos de idade em meio a uma crise, tomando as decisões mais questionáveis para atingir o parceiro? O filme acaba ganhando a atenção também por essa sua característica, além de também funcionar com um ótimo pretexto para uma daquelas discussões de relação das quais os homens, marcianos, gostam de fugir, e as quais as mulheres, venusianas, adoram tanto.
Esse trabalho recente de Mika Kaurismäki é o segundo que conta com texto de Petri Karra, já que o filme anterior do diretor, 3 homens e uma noite fria (Kolme viisasta miestä, 2008), também foi escrito pelo romancista, que também acumulou a função de ator em uma ponta. Pelo fato de o livro ter sido adaptado também pelo autor, a fidelidade ao original é grande, afugentando os comentários de cinéfilos que chiam diante das distinções entre um livro e um filme. Um senão seu é o título nacional um tanto picareta, afastado do que propõe o original, e que o aproxima do clássico baseado na obra de Tenessee Williams. O ciúme mora ao lado é, antes de tudo, um filme sobre as dificuldades de se relacionar com o outro, e de como podemos ser irresponsáveis e impulsivos quando se trata de uma disputa amorosa. Mesmo que brote uma discreta consciência de que se está agindo erroneamente, muitos persistem na conduta questionável. Por volta dos 40 minutos, porém, a trama principal do filme já começa a dividir espaço com a tal subtrama de mafiosos, na qual surge um segredo que acelera o rumo dos acontecimentos. Fica mais claro a essa altura que O ciúme mora ao lado é um típico filme em que as aparências enganam, e de que muito mais está por vir para surpreender o público.
Merece ser comentado também os tipos físicos dos atores principais. Ambos estão muito longe daquele arquétipo de casais em crise cheios de beleza e sem uma ruga ou gordurinha, como os personagens de Jennifer Aniston e Vince Vaughn em Separados pelo casamento (The break-up, 2006). Essa escolha de Kaurismäki ajuda a chamar a atenção do espectador para suas interpretações, em detrimento do que eles são em termos de aparência. O filme foi indicado a 3 prêmios no Jussi Awards, a versão finlandesa do Oscar, um reconhecimento válido para a proposta o diretor de arrancar boas risadas e oferecer uma boa reflexão sobre as agruras e alegrias de se relacionar amorosamente com alguém. Além disso, o filme fez um grande sucesso na Finlândia, sendo a segunda maior bilheteria daquele país em 2009, quando o filme esteve em cartaz por lá. Ao longo de sua projeção, percebe-se um ótimo equilíbrio entre a comicidade e a profundidade, dois aspectos que muitos nomes envolvidos com a sétima arte ainda preferem ver divorciados.
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19 de abr. de 2011
Construindo um mito em Poucas e boas
De vez em quando, Woody Allen gosta de lançar mão de certas estratégias narrativas que conferem ainda mais vitalidade e surpresa a seus filmes. Com Poucas e boas (Sweet and lowdown, 1999), o diretor retoma uma investida que fizera na década de 80, quando dirigira Zelig (idem, 1983): o pseudocumentário. Se no filme em preto e branco em que ele encarnava o personagem-título a apreensão de tal gênero cinematográfico era explícita, em Poucas e boas esse detalhe é espargido, na medida em que não são inseridos tantos depoimentos ou imagens de arquivos do biografado. E o suposto personagem real de que Allen fala dessa vez é Emmet Ray, vivido por um inspirado Sean Penn. Ele é um importante e famoso guitarrista de jazz – o estilo musical preferido do cineasta, vale lembrar – que vive nos anos 30, outra década homenageada por Allen, depois da menção aos anos 40 feita com A era do rádio (Radio days, 1987).
Esse personagem singular é radiografado com riqueza de detalhes pelo realizador, especialmente no tocante aos seus relacionamentos amorosos tumultuados, questão que permeia o cinema alleniano, à qual ele sempre dá especial atenção. Ao longo do recorte temporal de sua vida exibido na tela, Emmet conhece inúmeras mulheres, e vive entre paixões e desenlaces com uma facilidade absolutamente incrível. Entretanto, as duas grandes mulheres que atravessam sua vida são a doce Hattie (Samantha Morton) e a intempestiva Blanche (Uma Thurman) – note-se a homonímia com a personagem de Um bonde chamado desejo. Por conta delas, o personagem se perde e se acha, e parte seus corações, o de cada uma de um modo distinto. A história supostamente real de Emmet Ray é ambientada na amada Nova York natal de Woody Allen, que aqui aparece novamente emoldurada por uma maravilhosa fotografia, cuja assinatura é de Fei Zhao, um chinês que colabora recorrentemente com o diretor. Ambos se entendem graças à mediação de um intérprete, e esse fato um tanto bizarro já foi satirizado por Allen em Dirigindo no escuro (Hollywood ending, 2002), filme em que ele chega mais perto do que realmente é como artista.
O subgênero de Poucas e boas é denominado na linguagem cinematográfica como mockumentary, um termo emprestado do inglês que designa basicamente um filme que apresenta pessoas ou fatos como se fossem reais, valendo-se da estrutura narrativa e visual de um documentário legítimo. Há outros exemplares de filmes assim, entre os quais podem ser citados Um dia sem mexicanos (A day without a mexican, 2004) e o anárquico Borat – O segundo melhor repórter do glorioso país Cazaquistão viaja à América (Borat: cultural learnings of America for make benefit glorious nation of Kazakhstan, 2006). Poucas e boas, contudo, matiza discretamente esse aspecto de falso documentário, dando um ar de maior dramaticidade à sua narrativa. Outrossim, vários dos temas que aparecem em outros trabalhos do diretor, sejam anteriores, sejam posteriores, estão presentes também aqui. É inevitável associar a imagem de Penn com a de uma outra versão dos personagens interpretados pelo diretor. Seu Emmet transmite a insegurança típica dos homens baixos e míopes que Allen encarna tão bem, e carrega consigo uma certa aura de frustração.
Há um detalhe que chama a atenção na carreira do protagonista. Ele é, na verdade, o segundo melhor guitarrista do país, ficando atrás do lendário Django Reinhardt (Michael Sprague), perto de quem desmaiou em todas as ocasiões. Aos poucos, o diretor vai fornecendo ao público um ou outro indício da vida particular de seu biografado, como a informação de que, antes de se tornar um músico de renome, ele ganhava a vida como cafetão. É um dado tragicômico de sua trajetória que Allen insere na narrativa fazem dele alguém tão sujeito a acidentes de percurso como qualquer outra pessoa. Emmet é alguém para quem o amor está em constante mudança, daí sua incapacidade de permanecer muito tempo com Hattie, a quem ele conhece praticamente por acaso. Cabe assinalar aqui a interpretação marcante de Samantha Morton, que encara com desenvoltura o desafio de viver uma mulher muda, que se encanta pelo guitarrista tão logo está diante dele. Hattie consegue namorá-lo, mas muitos problemas fazem a relação naufragar, e o principal deles é a arrogância de Emmet, que se julga melhor que a parceira, que acaba por se comportar de modo excessivamente submisso. Todos esses elementos são transmitidos com acerto pela maneira com que Morton interpreta a personagem.
Outra que surge na tela como um furacão, quando a história já está cruzando sua primeira hora de duração, é Uma Thurman. Na pele de Blanche, ela é o castigo que Emmet merece, já que apresenta um comportamento muito semelhante ao seu no que se refere ao trato com o sexo oposto. O músico é um amante incorrigível, que não se furta de lançar olhares maliciosos para qualquer espécime do sexo feminino, e Blanche não fica atrás nesse quesito, exibindo a mesma ausência de vocação para a fidelidade. Essa questão logo abre os olhos do protagonista para o erro que ele cometeu ao preterir Hattie, mas para voltar atrás em sua atitude talvez seja tarde demais. A personagem de Uma Thurman é mais uma entre tantos na galeria de escritores dos filmes de Woody Allen. Sua Blanche sintetiza a agonia do artista diante de sua própria arte, assim como o guitarrista vivido por Penn o faz. Eles são o retrato da insatisfação constante do ser humano, que se expressa em uma volúpia quase incontrolável de se deslocar e buscar outros e outros seres para sua autorrealização, numa agonia de querer que é universal.
Entretanto, Poucas e boas está longe de ser um dos trabalhos mais celebrados de Allen. Quando citado, vem posto entre os filmes ditos menores de sua carreira, e poucos espectadores, principalmente os que não são fãs de sua obra. Mas, como já foi demonstrado acima, o filme tem méritos e vale ser conferido. Sua edição de som e sua trilha sonora são adoráveis, e reúnem belas canções do jazz dos anos 30, a época do filme. Aliás, esse estilo sempre permeia a filmografia do diretor, e no caso específico de Poucas e boas, um personagem músico é também um alter ego do diretor, que tem uma banda na qual toca clarineta há décadas. Ainda que o resultado final deste longa fique aquém de outros trabalhos mais famosos, não se trata de uma decepção. É tão-somente mais uma faceta da crônica perseguição de Allen às suas fontes de inquietude.
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Cinema
13 de abr. de 2011
Zodíaco, uma intrincada história de crimes
O subgênero dos filmes de serial killers obteve uma adição de peso à sua galeria com o lançamento de Zodíaco (Zodiac, 2007). O filme de David Fincher é um dos exemplares mais interessantes sobre o tema que o cinema recente pôde realizar. Nas mãos do diretor de clássicos modernos como Seven – Os sete crimes capitais (Seven, 1997) e Clube da luta (Fight club, 1999), a história real do assassino que aterrorizou São Francisco nos idos da década de 60 é mais do que simplesmente a história da investigação de um criminoso. Zodíaco foca suas lentes nas vidas de três homens que, de alguma maneira, têm suas trajetórias individuais interligadas com a série de crimes cometidas pelo homem cujo codinome dá título ao longa-metragem. O primeiro deles é Robert Graysmith (Jake Gylenhaal), um cartunista que logo se interessa pelos crimes, e passa a trabalhar em prol da descoberta da verdade oculta por trás de seus delitos. O segundo é David Toschi (Mark Ruffalo, em interpretação notável), um inspetor que acompanha de perto as investigações. O terceiro é Paul Avery (Robert Downey Jr.), um jornalista do San Francisco Chronicles, que passa a seguir cada minuto do que está sendo procurado a respeito dos crimes.
Com o passar do tempo, Robert, David e Paul terão suas vidas consumidas pela necessidade de chegarem à verdade, custe o que custar. É então que Zodíaco mostra seu propósito: entender de que maneira esses três homens foram sendo afetados pelas investigações relativas ao delinquente. Não há mais vida para eles além dos limites do inquérito para a elucidação da identidade do assassino. Essa busca frenética, portanto, será a chave para a derrocada pessoal dos “protagonistas”, por assim dizer. Tudo começa, na verdade, com o envio de três cartas ao jornal citado, todas escritas pelo mesmo remetente. Essas cartas avisam acerca da morte de três pessoas nos próximos dias, isto é, contêm a confissão de um assassino sobre seus crimes. Os dados contidos nas cartas só poderiam ser compartilhados entre a Polícia e o delinquente, e eram uma espécie de código que, ao ser decifrado, revelaria a identidade do assassino. A exigência dele é de que suas cartas fossem publicadas, sob pena de haver mais assassinatos além daqueles sobre os quais ele informara.
Fincher aposta suas fichas em um filme lento e introspectivo, muito mais focado no aspecto psicológico de seus personagens. Zodíaco é, antes de mais nada, um olhar obtuso sobre as interferências de um crime na vidas de Robert, Paul e David. Aqueles homens nunca mais serão os mesmos depois de 1º de agosto de 1969. Robert é quem dá o primeiro grande passo no caso, ao descobrir que a intenção oculta da mensagem do criminoso é uma referência ao filme Zaroff, o caçador de vidas (The most dangerous game, 1932). No longa, três náufragos encontram um conde em uma pequena ilha que lhes oferece guarida, mas encobre seu instinto assassino.
Esse diálogo com uma obra do terror é apenas a ponta de um iceberg intrincado, que irá revelar ao longo dos anos cada vez mais horror e desespero. O filme apresenta a busca insana de muita gente por alguns instantes de notoriedade, entregando-se à Polícia e fazendo-se passar pelo criminoso. Os próprios homens envolvidos na investigação acabam se tornando celebridades instantâneas, tamanho o interesse que os crimes despertam.
Zodíaco é a forma pela qual Fincher espia o fascínio do ser humano pelo crime, especialmente no contexto da população dos EUA, cenário absoluto da história. É atordoante saber que muitos dos elementos presentes na trama, bem como a trama em si aconteceram realmente. Significa dizer que a própria realidade serviu de matéria-prima para a construção de uma obra que instiga os sentidos para a descoberta de uma verdade que jamais se mostra por inteiro. O diretor se filia a uma tradição de filmes que não exibem como preocupação fundamental o esclarecimento do culpado pelos crimes, mas em estudar as repercussões que eles podem causar. À semelhança de Assassinato em Gosford Park (Gosford Park, 2001) e Caché (idem, 2005), que trazem um crime que não é solucionado – ao menos não de modo explícito – em Zodíaco também não é essencial saber quem está por trás das mortes que vão se sucedendo ao longo dos anos. O filme é o primeiro trabalho de Fincher depois de O quarto do pânico (The room of panic, 2002), suspense protagonizado por Jodie Foster. O diretor levou um longo tempo na sala de edição para suprimir 15 minutos da narrativa original, um dado que atesta seu perfeccionismo e sua precaução para manter a integridade do texto em que se baseou. O tempo, aliás, transcorre muito mais pelo mecanismo do psicológico que do cronológico em Zodíaco. Quando nos damos conta, vários anos já se passaram.
Os desempenhos do trio de atores principais merecem ser comentados, já que todos oferecem interpretações dignas de serem premiadas. Cada qual à sua maneira, eles personificam a loucura e a desorientação decorrente do processo de acompanhamento do tal Zodíaco, que sempre se mostra um passo à frente dos investigadores. Gylenhaal encarna um personagem bastante maduro, coroando uma fase de bons trabalhos que ele iniciara com o pouco visto Vida que segue (Moonlight mile, 2002), filme pessoal de Brad Silberling, além do estimado O segredo de Brokeback Mountain (Brokeback Mountain, 2005). Na pele do cartunista cujo trabalho foi a grande base para a escrita do livro no qual o filme é baseado, ele exibe um controle notável da transformação por que o personagem passa. Ruffalo é outro que contribui muito para o andamento do filme, vivendo um papel denso e distante de algumas bobagens cometidas por ele em sua carreira – vide o exemplo de Voando alto (A view from the top, 2003) – e mais próximo da beleza de um título como Minha vida sem mim (Mi vida sin mi, 2003). Sua performance é um belo argumento para contrariar seus detratores, que o acusam de apatia e canastrice. E o que dizer de Robert Downey Jr., que dá vida à exasperação em forma de gente com seu Paul, sendo o mais devastado dos três pelas consequências da análise exaustiva dos crimes.
Um dos dados curiosos a respeito do filme é que seu roteirista, Shane Salerno, teve preferência na compra dos direitos do livro. Tanto ele quanto o verdadeiro Graysmith trabalharam na escrita do roteiro durante anos, até que as negociações pela compra dos direitos chegassem ao fim. Tamanho afinco na execução desse trabalho só poderia resultar em um texto primoroso, de condução impecável. O filme, aliás, não é o primeiro sobre o caso. Os anteriores foram The Zodiac killer (idem, 1971) e O Zodíaco (The Zodiac, 2005), sendo este último um telefilme de pouca repercussão. No elenco de ambos os filmes – o de Fincher e esse filme para a TV -, há em comum a presença de Philip Baker Hall no elenco, interpretando personagens distintos em cada um. No filme desta crítica, ele é Sherwood Morrill, enquanto no filme televisivo ele dá vida a Frank Perkins, ambos peças importantes das investigações. Melvin Bell, por sua vez, quase foi parar nas mãos de Gary Oldman, mas acabou ficando a cargo de Brian Cox, em atuação irretocável.
Enfim, Zodíaco gasta suas mais de duas horas de duração seguindo a trilha deixada pelo assassino que dá nome ao longa, assim como se encarrega de analisar até que ponto três pessoas comuns podem ser afetadas por um criminoso que instaurou o pavor coletivo. Fincher encara aquela realidade com um olhar algo distante, como se estivesse apenas interessado em documentar os eventos tal e qual aconteceram, sem se comprometer. Mas acaba nos ensinando que quem apenas observa também se compromete até a medula, por sua participação, ainda que passiva, no que está sucedendo. Tudo sempre encaminhado por um timing excelente, sublinhado pontualmente pela música assinada por David Shire, composta de canções instrumentais que conferem um atmosfera soturna ao filme. E a grande conclusão a que se chega com Zodíaco é a de que a verdade se deixa perseguir, mas não necessariamente se permite alcançar.
Com o passar do tempo, Robert, David e Paul terão suas vidas consumidas pela necessidade de chegarem à verdade, custe o que custar. É então que Zodíaco mostra seu propósito: entender de que maneira esses três homens foram sendo afetados pelas investigações relativas ao delinquente. Não há mais vida para eles além dos limites do inquérito para a elucidação da identidade do assassino. Essa busca frenética, portanto, será a chave para a derrocada pessoal dos “protagonistas”, por assim dizer. Tudo começa, na verdade, com o envio de três cartas ao jornal citado, todas escritas pelo mesmo remetente. Essas cartas avisam acerca da morte de três pessoas nos próximos dias, isto é, contêm a confissão de um assassino sobre seus crimes. Os dados contidos nas cartas só poderiam ser compartilhados entre a Polícia e o delinquente, e eram uma espécie de código que, ao ser decifrado, revelaria a identidade do assassino. A exigência dele é de que suas cartas fossem publicadas, sob pena de haver mais assassinatos além daqueles sobre os quais ele informara.
Fincher aposta suas fichas em um filme lento e introspectivo, muito mais focado no aspecto psicológico de seus personagens. Zodíaco é, antes de mais nada, um olhar obtuso sobre as interferências de um crime na vidas de Robert, Paul e David. Aqueles homens nunca mais serão os mesmos depois de 1º de agosto de 1969. Robert é quem dá o primeiro grande passo no caso, ao descobrir que a intenção oculta da mensagem do criminoso é uma referência ao filme Zaroff, o caçador de vidas (The most dangerous game, 1932). No longa, três náufragos encontram um conde em uma pequena ilha que lhes oferece guarida, mas encobre seu instinto assassino.
Esse diálogo com uma obra do terror é apenas a ponta de um iceberg intrincado, que irá revelar ao longo dos anos cada vez mais horror e desespero. O filme apresenta a busca insana de muita gente por alguns instantes de notoriedade, entregando-se à Polícia e fazendo-se passar pelo criminoso. Os próprios homens envolvidos na investigação acabam se tornando celebridades instantâneas, tamanho o interesse que os crimes despertam.
Zodíaco é a forma pela qual Fincher espia o fascínio do ser humano pelo crime, especialmente no contexto da população dos EUA, cenário absoluto da história. É atordoante saber que muitos dos elementos presentes na trama, bem como a trama em si aconteceram realmente. Significa dizer que a própria realidade serviu de matéria-prima para a construção de uma obra que instiga os sentidos para a descoberta de uma verdade que jamais se mostra por inteiro. O diretor se filia a uma tradição de filmes que não exibem como preocupação fundamental o esclarecimento do culpado pelos crimes, mas em estudar as repercussões que eles podem causar. À semelhança de Assassinato em Gosford Park (Gosford Park, 2001) e Caché (idem, 2005), que trazem um crime que não é solucionado – ao menos não de modo explícito – em Zodíaco também não é essencial saber quem está por trás das mortes que vão se sucedendo ao longo dos anos. O filme é o primeiro trabalho de Fincher depois de O quarto do pânico (The room of panic, 2002), suspense protagonizado por Jodie Foster. O diretor levou um longo tempo na sala de edição para suprimir 15 minutos da narrativa original, um dado que atesta seu perfeccionismo e sua precaução para manter a integridade do texto em que se baseou. O tempo, aliás, transcorre muito mais pelo mecanismo do psicológico que do cronológico em Zodíaco. Quando nos damos conta, vários anos já se passaram.
Os desempenhos do trio de atores principais merecem ser comentados, já que todos oferecem interpretações dignas de serem premiadas. Cada qual à sua maneira, eles personificam a loucura e a desorientação decorrente do processo de acompanhamento do tal Zodíaco, que sempre se mostra um passo à frente dos investigadores. Gylenhaal encarna um personagem bastante maduro, coroando uma fase de bons trabalhos que ele iniciara com o pouco visto Vida que segue (Moonlight mile, 2002), filme pessoal de Brad Silberling, além do estimado O segredo de Brokeback Mountain (Brokeback Mountain, 2005). Na pele do cartunista cujo trabalho foi a grande base para a escrita do livro no qual o filme é baseado, ele exibe um controle notável da transformação por que o personagem passa. Ruffalo é outro que contribui muito para o andamento do filme, vivendo um papel denso e distante de algumas bobagens cometidas por ele em sua carreira – vide o exemplo de Voando alto (A view from the top, 2003) – e mais próximo da beleza de um título como Minha vida sem mim (Mi vida sin mi, 2003). Sua performance é um belo argumento para contrariar seus detratores, que o acusam de apatia e canastrice. E o que dizer de Robert Downey Jr., que dá vida à exasperação em forma de gente com seu Paul, sendo o mais devastado dos três pelas consequências da análise exaustiva dos crimes.
Um dos dados curiosos a respeito do filme é que seu roteirista, Shane Salerno, teve preferência na compra dos direitos do livro. Tanto ele quanto o verdadeiro Graysmith trabalharam na escrita do roteiro durante anos, até que as negociações pela compra dos direitos chegassem ao fim. Tamanho afinco na execução desse trabalho só poderia resultar em um texto primoroso, de condução impecável. O filme, aliás, não é o primeiro sobre o caso. Os anteriores foram The Zodiac killer (idem, 1971) e O Zodíaco (The Zodiac, 2005), sendo este último um telefilme de pouca repercussão. No elenco de ambos os filmes – o de Fincher e esse filme para a TV -, há em comum a presença de Philip Baker Hall no elenco, interpretando personagens distintos em cada um. No filme desta crítica, ele é Sherwood Morrill, enquanto no filme televisivo ele dá vida a Frank Perkins, ambos peças importantes das investigações. Melvin Bell, por sua vez, quase foi parar nas mãos de Gary Oldman, mas acabou ficando a cargo de Brian Cox, em atuação irretocável.
Enfim, Zodíaco gasta suas mais de duas horas de duração seguindo a trilha deixada pelo assassino que dá nome ao longa, assim como se encarrega de analisar até que ponto três pessoas comuns podem ser afetadas por um criminoso que instaurou o pavor coletivo. Fincher encara aquela realidade com um olhar algo distante, como se estivesse apenas interessado em documentar os eventos tal e qual aconteceram, sem se comprometer. Mas acaba nos ensinando que quem apenas observa também se compromete até a medula, por sua participação, ainda que passiva, no que está sucedendo. Tudo sempre encaminhado por um timing excelente, sublinhado pontualmente pela música assinada por David Shire, composta de canções instrumentais que conferem um atmosfera soturna ao filme. E a grande conclusão a que se chega com Zodíaco é a de que a verdade se deixa perseguir, mas não necessariamente se permite alcançar.
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Cinema
12 de abr. de 2011
A reflexão histórica no cinema de A leste de Bucareste
Auxiliado por uma onda recente de prestígio, o cinema romeno é responsável pela entrega de A leste de Bucareste (A fost sau n-a fost?, 2006), longa-metragem de estreia de Corneliu Porumboiu que chegou aos cinemas brasileiros em 2007. Esse primeiro filme da carreira do diretor demonstra que sua intenção mais explícita é propor um debate de fundamentação histórica sobre a participação ou não de uma pequena cidade na série de eventos que levou à queda do ditador Nicolae Ceausescu, um dos episódios mais lembrados da história recente da Romênia. A propósito, esse momento histórico tem sido uma temática recorrente nos filmes recentes oriundos daquele país, dada a força de sua ressonância.
Porumboiu lança as sementes da discussão de forma singular, sem qualquer pressa de iniciar um debate propriamente dito. A maneira pela qual ele se inclina a tratar dos ecos da morte do ditador pode soar cansativa ou distante, mas é uma escolha legítima e digna de atenção. O cenário do filme é o Natal de 2005, data do 16º aniversário da revolução que pôs fim ao regime comunista impresso por Ceausescu. Sua execução ocorreu, portanto, em 25 de dezembro de 1989. A grande questão a ser debatida – se a cidade mostrada no filme teve ou não participação no evento – é analisada por meio de três personagens cujas trajetórias já estão previamente entrecruzadas. São eles: Manescu (Ion Sapdaru), um professor de História, Piscoci (Mircea Andreescu), um velho aposentado, e Virgil Jderescu (Teodor Corban), um apresentador de TV.
Cada um deles surge na tela em tempos diferentes, sendo apresentados pacientemente pela câmera do diretor, que se utiliza intensamente dos tempos mortos, potencializando o aspecto contemplativo de uma trama enxuta, que concentra seu enredo em apenas 89 minutos. Porumboiu oferece uma mescla de reflexão histórica com os conflitos individuais dos protagonistas, homens simples com questões da vida prática para solucionar, e que se veem, quase repentinamente, diante de uma câmera, para ponderar sobre um evento acerca do qual ainda há o que dizer. A narrativa de A leste de Bucareste se concentra na véspera da exibição do programa de debates apresentado por Virgil, e em como ele e seus convidados vão levando a vida paralelamente aos preparativos de suas respectivas participações. Virgil é um homem solitário que realiza suas atividades cotidianas quase no piloto automático, sendo auxiliado em tudo que faz por uma espécie de assessora. Manescu parece sofrer do mesmo mal, atendo-se à sua participação no programa como último signo de sua dignidade. O velho Piscoci, por sua vez, parece ser o mais bem-resolvido do trio, mas também apresenta suas vacâncias.
A leste de Bucareste, definitivamente, não é um filme de mil acontecimentos por minuto. Na verdade, Porumboiu demonstra um interesse em se aprofundar nas realidades particulares daqueles homens. Para isso, ele se utiliza de um episódio de repercussão nacional, que filtra para a vivência interior do trio. Por esse trabalho, o diretor levou a Câmera de Ouro em Cannes, um prêmio especialmente destinado a cineastas em seu primeiro trabalho. De fato, é uma estreia alvissareira, por meio da qual ele mostra que está disposto a refinar a sétima arte como plataforma para a reflexão, executando tal tarefa com simplicidade e esmero. Tanto no conteúdo como na forma, o realizador chama a atenção, e dialoga com uma linhagem de diretores que soube se utilizar dos silêncios da narrativa, ainda que com propósitos diversos, como é o caso de Michelangelo Antonioni, Ingmar Bergman e Aleksandr Sokurov, para citar um exemplo contemporâneo.
O ápice da trama, por assim dizer, é o programa de TV comandado por Virgil. Ali concentra-se a discussão sobre o fato histórico central apontado pelos personagens e a existência ou não da participação da comunidade local no evento. Não por acaso, a tradução do título original do filme é dada no diálogo entre os protagonistas durante o programa: “houve ou não houve?”, no sentido de que se busca desvendar se aconteceu ou não uma revolução naquele lugar. As tentativas de responder à questão por parte de Manescu e Piscoci são comoventes, mas logo uma espectadora que participa do programa ao vivo começa a colocar em xeque a credibilidade de Manescu, que afirma ter estado presente na praça principal da cidade no Natal de 1989, fato que ela nega por dizer que estava lá e não o viu. Manescu insiste em dizer que participou da revolução, mesmo diante da insistente negativa da mulher, enquanto Piscoci permanece apenas ouvindo, para só mais tarde fazer suas colocações a respeito do fato. No título em português, evidencia-se a posição geográfica ocupada pela cidade retratada no filme, a alguns quilômetros da capital romena. A pequena cidade se chama Timisoara, e seu aspecto é de uma localidade desalentada, com uma população que não demonstra grandes expectativas em relação à vida e ao porvir. O filme nos traz uma Romênia maltratada, que ainda respira um ar de crise, com ruas desertas, gente simples que segue resignada e uma necessidade de superação da própria história urgente.
O diretor voltaria a praticar um cinema de forte teor reflexivo em seu segundo filme, Polícia, adjetivo (Politist, adjectiv, 2010), no qual também praticamente abre mão dos diálogos para investir na contemplação e se colocar no lugar dos olhos do protagonista. Ambos os filmes são a prova de que Porumboiu está disposto a seguir oferecendo uma abordagem exumatória de temas que interessam ao cenário romeno, mas que também podem ser estendidos para uma realidade mais globalizante. Afinal, os conflitos vividos pelos moradores de Timisoara podem ser adaptados para qualquer cidade do mundo, bem como a dúvida que paira sobre o homem da lei de Polícia, adjetivo. Em A leste de Bucareste, o dado concreto que suscita a dúvida levantada pelo programa de Virgil é o horário em que a revolução aconteceu. A televisão romena transmitiu o fato às 12h08min, quando estavam acontecendo os protestos para a deposição de Ceausescu. A essa hora, não havia uma pessoa sequer na praça da cidadezinha. Se apareceu alguém somente após esse horário, então não houve qualquer participação da cidade na revolução, apenas na festa da derrubada.
Essa questão mexe profundamente com os brios do povo local, e eleva a discussão para um patamar de intensa discussão. Na verdade, Porumboiu acaba por deflagrar através daquele programa fictício um estudo sobre as veias abertas da Romênia, bem como de todo o leste europeu, e nos aproxima um pouco mais de um país cujo idioma oficial compartilha conosco sua origem: o latim. A direção de atores de A leste de Bucareste é eficiente, e o roteiro se encarrega de introduzir pequenas rodelas de fina ironia, destiladas nas falas do trio de protagonistas, cada qual ao seu modo. Aqueles homens são totalmente palpáveis, e suas angústias se traduzem na forma como procuram se impor para mascará-las, e inibir a profusão de uma dor que está mais em seus olhares que em seus gestos mal ajambrados. Se no primeiro terço do filme as lentes da câmera, uma cúmplice notável do diretor, estão posicionadas a uma distância considerável de seus personagens, quando o debate toma conta da trama elas apresentam closes marcantes das faces daqueles homens, que exalam uma séria ausência de perspectivas. Esse aspecto do filme evidencia o rigor quase matemático com que o diretor o conduz, sem que, entretanto, seus protagonistas sejam encarados como meros títeres da História, entidade viva e fascinante que cobra seus ônus como faceta implacável do tempo que é e sempre será.
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5 de abr. de 2011
Intempéries do cotidiano a dois ou Climas
A verbalização dos conflitos entre casais é exatamente o caminho oposto trilhado por Nuri Bilge Ceylan em Climas (Iklimler, 2006), seu segundo filme. O realizador turco, nascido em 1952, oferece um tratado minimalista sobre o jogo de luz e sombras que pode ser lançado sobre um relacionamento entre um casal absolutamente comum, com o qual a identificação pode ser simplesmente imediata. Eles atendem pelos nomes de Bahar (Ebru Ceylan) e Isa (o próprio diretor), e ilustram o ascensor para o cadafalso no qual duas pessoas podem se instalar quando decidem investir em um casamento. Enquanto ele é um professor universitário quarentão, ela é uma mulher que vive praticamente sob sua influência, acompanhando-o por onde quer que ele vá. Essa espécie de simbiose acordada entre o casal, todavia, não tarda a ruir, por conta, principalmente, do comportamento algo mimado e voluntarioso apresentado por Isa.
No começo do filme, o espectador tem a oportunidade de imergir no universo particular do diretor, que gosta de abordar os silêncios que pontuam as relações humanas, aqui simbolizada pelo casamento de duas pessoas cujo antagonismo é, de início, parcimoniosamente sublimado. Ceylan filma com toda a paciência do mundo uma sessão de fotos feita pelo seu personagem em uma paisagem semi-desértica, enquanto é visto pela esposa entediada. O tédio, aliás, pontua todo o filme, e parece ser e única mola propulsora das (poucas) ações executadas pelos protagonistas. Climas é um filme que se concentra nos vácuos dialogais deixados voluntariamente ou não no cotidiano de um casal. A escolha por uma temática dessa natureza é sempre incômoda, e afugenta grande parte do público. E, no caso do diretor, é uma recorrência em sua obra, vide seu trabalho anterior, Distante (Uzak, 2002), em que também trata do abandono e se vale do mundo da fotografia, e sua obra seguinte 3 macacos (Uç maymun, 2008), em que se volta para uma família que opta pela mudez, pela surdez e pela cegueira. Mas há que se reconhecer e louvar a coragem de Ceylan em exumar a lenta agonia de que um relacionamento pode ser acometido.
A economia de falas é um aspecto que perpassa todo o filme, e exige do público uma concentração mais acurada nos espaços e ambientes frequentados por Isa e Bahar. Muito do que acontece em Climas são palavras não ditas, omissões propositais e ironias não declaradas, que minam a convivência diária dos dois. Nesse sentido, o cenário em que os personagens estão é absolutamente contrastante com seus estados de espírito. Eles estão em férias no mar Egeu, na costa grega, um lugar paradisíaco que é o sonho de consumo de muitos mortais e o quintal de casa para alguns endinheirados. Seus interiores, entretanto, demonstram um desalento e uma insatisfação quase permanente, o que lhes faz adotar uma postura muito passiva diante da vida. Ceylan amplifica a potência dramática de seus personagens através de um dado importante: a atriz que interpreta Bahar é sua mulher na vida real. Com isso, ambos alcançam uma empatia ainda maior em cena, fazendo de sua convivência anterior um trampolim para o entendimento do que pode vir a se passar na rotina de um casal comum. E mais: os atores que interpretam os pais de Isa são parentes de Ceylan na vida real, ajudando, portanto, a integrar o ambiente de uma família na qual o protagonista muitas vezes não encontra guarida para sua inquietude.
O título do longa é bastante adequado, ainda que esteja sendo empregado em um sentido alargado. Os climas são as várias fases pelas quais o casamento de Isa e Bahar vai passando, gerando nos amantes os movimentos de constantes aproximação e desapego, sem que eles se decidam facilmente por uma dessas alternativas. Ao longo de pouco mais de 1h20 de duração, o espectador é transportado para o recorte de realidade proposto por Ceylan, que captura sentimentos de naturezas e intensidades diversas, como a afasia e a falta de motivação como quem compõe um quadro expressivo das dores e delícias de ser um casal. Os climas também se traduzem na paleta de cores frias que se contrapõem à atmosfera de calor que inebria os dias de descanso dos personagens. Nas tentativas de se colocar as coisas em seus devidos lugares, Isa é quem acaba metendo os pés pelas mãos, já que abre espaço para as investidas de uma antiga amiga com quem não hesita em ter algo mais que amizade. Cansada, Bahar reage com desprezo às aproximações canhestras de Isa, mas o caminho de desvencilhamento almejado por eles não é nada simples.
Muitos dos fatos que se superpõem na narrativa de Climas são oriundos de um percurso diegético que indica que a crise que eles estão atravessando vem de longa data. Explica-se: diegese é todo conjunto de acontecimentos vivenciados por um personagem antes mesmo da narrativa de um filme; é algo que não está na tela, mas pode ser explicitado pelo roteiro quando, por exemplo, um personagem faz menção a um evento passado através de um diálogo com outro personagem. No caso dos personagens de Climas, alguns eventos pregressos são evocados, principalmente por parte de Bahar, que os emprega como justificativa para não mais aceitar as investidas de seu marido. O espectador, por sua vez, tem a oportunidade de escolher ao lado de quem quer ficar. Ceylan evita o maniqueísmo, não estando preocupado em apresentar vítimas ou algozes no relacionamento de Isa e Bahar. Apesar disso, há que se comentar a personalidade arisca e algo intratável de seu personagem, que mortifica boa parte do bem querer que a esposa nutria por ele. Esse comportamento se evidencia principalmente na cena em que seu personagem tem um rompante enquanto pilota sua motocicleta com ela na garupa, iniciando uma discussão na qual é muito agressivo com a esposa.
À parte de todos os detalhes já expostos anteriormente, Climas tem como grande achado a relação de quase mutualismo apresentada pelo cineasta entre o homem e a natureza. Assim como os climas são as variações de humor e pensamento dos protagonistas, eles também são as oscilações do ambiente natural em que ambos se encontram inseridos. Aquela tese clássica de que a natureza influencia no comportamento das pessoas, a depender de como estão a temperatura ou as condições de ventos, chuvas ou do sol, é ilustrada e reafirmada aqui, com o apoio da bela direção de fotografia, que nos apresenta o calor e o frio das estações, emoldurando uma Turquia que passa longe dos estereótipos mais caros aos ocidentais. Com inúmeros closes que valorizam especialmente o rosto de Ebru Ceylan, o diretor escava o que se esconde nas cavernas soturnas dos sentimentos parcialmente soterrados ou resguardados do casal. No festival de Berlim, onde foi exibido em competição em 2006, Climas venceu em algumas categorias, como a de melhor diretor, além de ter sido laureado em Cannes e em Istambul. Reconhecimentos que corroboram para assinalar esta como uma das mais interessantes e reverberantes análises do diário de um crise de casal já oferecidos pelo cinema eurasiático contemporâneo.
No começo do filme, o espectador tem a oportunidade de imergir no universo particular do diretor, que gosta de abordar os silêncios que pontuam as relações humanas, aqui simbolizada pelo casamento de duas pessoas cujo antagonismo é, de início, parcimoniosamente sublimado. Ceylan filma com toda a paciência do mundo uma sessão de fotos feita pelo seu personagem em uma paisagem semi-desértica, enquanto é visto pela esposa entediada. O tédio, aliás, pontua todo o filme, e parece ser e única mola propulsora das (poucas) ações executadas pelos protagonistas. Climas é um filme que se concentra nos vácuos dialogais deixados voluntariamente ou não no cotidiano de um casal. A escolha por uma temática dessa natureza é sempre incômoda, e afugenta grande parte do público. E, no caso do diretor, é uma recorrência em sua obra, vide seu trabalho anterior, Distante (Uzak, 2002), em que também trata do abandono e se vale do mundo da fotografia, e sua obra seguinte 3 macacos (Uç maymun, 2008), em que se volta para uma família que opta pela mudez, pela surdez e pela cegueira. Mas há que se reconhecer e louvar a coragem de Ceylan em exumar a lenta agonia de que um relacionamento pode ser acometido.
A economia de falas é um aspecto que perpassa todo o filme, e exige do público uma concentração mais acurada nos espaços e ambientes frequentados por Isa e Bahar. Muito do que acontece em Climas são palavras não ditas, omissões propositais e ironias não declaradas, que minam a convivência diária dos dois. Nesse sentido, o cenário em que os personagens estão é absolutamente contrastante com seus estados de espírito. Eles estão em férias no mar Egeu, na costa grega, um lugar paradisíaco que é o sonho de consumo de muitos mortais e o quintal de casa para alguns endinheirados. Seus interiores, entretanto, demonstram um desalento e uma insatisfação quase permanente, o que lhes faz adotar uma postura muito passiva diante da vida. Ceylan amplifica a potência dramática de seus personagens através de um dado importante: a atriz que interpreta Bahar é sua mulher na vida real. Com isso, ambos alcançam uma empatia ainda maior em cena, fazendo de sua convivência anterior um trampolim para o entendimento do que pode vir a se passar na rotina de um casal comum. E mais: os atores que interpretam os pais de Isa são parentes de Ceylan na vida real, ajudando, portanto, a integrar o ambiente de uma família na qual o protagonista muitas vezes não encontra guarida para sua inquietude.
O título do longa é bastante adequado, ainda que esteja sendo empregado em um sentido alargado. Os climas são as várias fases pelas quais o casamento de Isa e Bahar vai passando, gerando nos amantes os movimentos de constantes aproximação e desapego, sem que eles se decidam facilmente por uma dessas alternativas. Ao longo de pouco mais de 1h20 de duração, o espectador é transportado para o recorte de realidade proposto por Ceylan, que captura sentimentos de naturezas e intensidades diversas, como a afasia e a falta de motivação como quem compõe um quadro expressivo das dores e delícias de ser um casal. Os climas também se traduzem na paleta de cores frias que se contrapõem à atmosfera de calor que inebria os dias de descanso dos personagens. Nas tentativas de se colocar as coisas em seus devidos lugares, Isa é quem acaba metendo os pés pelas mãos, já que abre espaço para as investidas de uma antiga amiga com quem não hesita em ter algo mais que amizade. Cansada, Bahar reage com desprezo às aproximações canhestras de Isa, mas o caminho de desvencilhamento almejado por eles não é nada simples.
Muitos dos fatos que se superpõem na narrativa de Climas são oriundos de um percurso diegético que indica que a crise que eles estão atravessando vem de longa data. Explica-se: diegese é todo conjunto de acontecimentos vivenciados por um personagem antes mesmo da narrativa de um filme; é algo que não está na tela, mas pode ser explicitado pelo roteiro quando, por exemplo, um personagem faz menção a um evento passado através de um diálogo com outro personagem. No caso dos personagens de Climas, alguns eventos pregressos são evocados, principalmente por parte de Bahar, que os emprega como justificativa para não mais aceitar as investidas de seu marido. O espectador, por sua vez, tem a oportunidade de escolher ao lado de quem quer ficar. Ceylan evita o maniqueísmo, não estando preocupado em apresentar vítimas ou algozes no relacionamento de Isa e Bahar. Apesar disso, há que se comentar a personalidade arisca e algo intratável de seu personagem, que mortifica boa parte do bem querer que a esposa nutria por ele. Esse comportamento se evidencia principalmente na cena em que seu personagem tem um rompante enquanto pilota sua motocicleta com ela na garupa, iniciando uma discussão na qual é muito agressivo com a esposa.
À parte de todos os detalhes já expostos anteriormente, Climas tem como grande achado a relação de quase mutualismo apresentada pelo cineasta entre o homem e a natureza. Assim como os climas são as variações de humor e pensamento dos protagonistas, eles também são as oscilações do ambiente natural em que ambos se encontram inseridos. Aquela tese clássica de que a natureza influencia no comportamento das pessoas, a depender de como estão a temperatura ou as condições de ventos, chuvas ou do sol, é ilustrada e reafirmada aqui, com o apoio da bela direção de fotografia, que nos apresenta o calor e o frio das estações, emoldurando uma Turquia que passa longe dos estereótipos mais caros aos ocidentais. Com inúmeros closes que valorizam especialmente o rosto de Ebru Ceylan, o diretor escava o que se esconde nas cavernas soturnas dos sentimentos parcialmente soterrados ou resguardados do casal. No festival de Berlim, onde foi exibido em competição em 2006, Climas venceu em algumas categorias, como a de melhor diretor, além de ter sido laureado em Cannes e em Istambul. Reconhecimentos que corroboram para assinalar esta como uma das mais interessantes e reverberantes análises do diário de um crise de casal já oferecidos pelo cinema eurasiático contemporâneo.
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Cinema
2 de abr. de 2011
O escafandro e a borboleta, um tratado sobre a limitação da dor
Nas mãos do diretor Julian Schnabel, a história real de Jean- Dominique Bauby ganhou contornos poéticos e emocionantes, e seu título vem a ser O escafandro e a borboleta (Le scaphandre e le papillon, 2007). O filme é o novo trabalho do diretor sete anos após Antes do anoitecer (Before night falls, 2000), e é uma cinebiografia, como o longa anterior. Aqui, tem-se a trajetória do editor da revista Elle, um dos veículos de informação sobre a moda mais influentes em toda a Europa e também no mundo. Sempre talentoso e uma referência no mundo fashion, ele se vê em um estado de quase completa imobilidade depois de ser acometido de um derrame cerebral. E essa doença que se instala sem um aviso prévio é a mola propulsora para o desenvolvimento da narrativa do filme do realizador francês.
Bauby é interpretado com economia de gestos por Matthieu Amalric, um dos atores mais requisitados do cinema francês atual, ao lado de Daniel Auteuil. Ele passa quase todo o filme confinado à prostração, por conta da condição extrema que tem de enfrentar em decorrência de sua doença. Se antes o editor era um home solar e muito charmoso, com o acidente vascular cerebral ele se torna totalmente dependente da ajuda dos outros, situação contra a qual luta com bravura, mas da qual não consegue escapar. Schnabel, nesse ponto, oferece uma reflexão urgente sobre a necessidade de se viver tudo o que for possível e aceitável, e transmite essa sensação ao espectador por meio do confinamento do protagonista. O teor da trama, por si só, é uma armadilha em termos de potencia para a pieguice, mas o realizador foge o tempo todo de cair no sentimentalismo barato, contando a história de um homem possível e imaginável. Aos poucos, fica visível a opção de Schnabel por uma abordagem quase asséptica do sofrimento de Bauby, mas nem por isso menos acalentadora.
Logo no começo do filme, o editor já se encontra vitimado pelo derrame, e todas as pessoas e objetos que o cercam são filtrados pelo seu olhar perscrutador, que busca retomar as referências que perdeu logo depois de sua tragédia particular. O filme é feito de recortes, que vão sendo alinhavados a partir da memória de Bauby, seriamente afetada pelo derrame, e que vai voltando aos poucos, mas nunca totalmente. A sensação de agonia diante dos procedimentos adotados pelos médicos é inevitável. Schabel filma a profilaxia como quem está diante de algo trivial, e é por isso que vemos, entre outras coisas, o olho direito de Bauby sendo costurado, de modo que sua visão se torna ainda mais restrita. Se antes ele apenas podia ver o que estava à sua volta, por estar sempre deitado sobre a cama do hospital, com apenas um olho para enxergar sua condição se torna ainda pior. Originalmente, o papel do editor tinha sido oferecido a Johnny Depp. Diante da recusa do ator, que estava envolvido com as filmagens de Piratas do Caribe – No fim do mundo (Pirates of Caribeen – At world’s end, 2007), o cineasta decidiu convidar Amalric, e o desempenho dele em cena atestam que a escolha foi acertada. O escafandro e a borboleta se configura como um poderoso tratado sobre a limitação gerada pela dor, e de como é possível se reinventar diante das adversidades que a vida impõe.
Um dos aspectos mais emocionantes do filme é, sem dúvida, a decisão de Bauby de escrever sua autobiografia. Para tanto, ele precisa se valer de um recurso um tanto insólito. Como não tem mais nenhum movimento em todo o corpo, a não ser o do olho esquerdo, ele conta com a ajuda de sua enfermeira, Henriette (Marie Josée Croze), que apresenta para ele um mecanismo possível para que ele se comunique. Como se mantém lúcido, ela lhe propõe que ele pisque uma vez para indicar qual letra deseja que seja escrita, e duas vezes para quando não for a letra que ele quer que se escreva. É dessa maneira que ele vai ditando sua autobiografia, algo que requer a máxima paciência, atividade para a qual a enfermeira se mostra bastante solícita.
As pessoas à volta do protagonista também tentam, cada qual à sua maneira, lidar com a sua nova situação. Sua esposa Céline (Emmanuelle Seigner, esposa de Roman Polanski), é uma das que sentem a dificuldade de estar próxima do marido depois do acontecimento fatídico, e isso se demonstra no movimento de progressivo afastamento empreendido por ela a cada nova visita que lhe faz. Seu pai Papinou é interpretado por Max Von Sydow, e a cena na qual eles se falam ao telefone é de uma delicadeza atroz, diante da qual é difícil conter as lágrimas. O ator, um habitué de Ingmar Bergman, passa pouco tempo em cena, mas é o suficiente para nos arrebatar com a imagem de pai impotente.
Em seu título, o filme traz uma certa estranheza, por unir elementos aparentemente desconexos. Mas a junção dessas duas palavras faz todo o sentido quando se observa a postura de Bauby diante de sua atual condição. Por não ser mais capaz de movimentar seu corpo, ele se encontra preso em uma espécie de escafandro, aquele equipamento pesado que serve para a respiração subaquática, mas sua alma e seu espírito encontram-se livres para voar como uma borboleta. A poesia do título, antes implícita, fica mais nítida em uma sequência em que o próprio personagem faz a comparação. Por conta de sua temática de superação diante de um fato extremo, O escafandro e a borboleta se aproxima de Mar adentro (idem, 2004), que também retrata a jornada de um homem para quem os movimentos já foram praticamente extintos. Aliás, Javier Bardem, protagonista de Mar adentro, já trabalhou com Schabel, na cinebiografia do escritor Reinaldo Arenas. Por pouco, não foi também uma escolha do diretor para a saga do editor de moda. No filme analisado nesta crítica, um detalhe importante chama a atenção: como membro do movimento neo-expressionista, o diretor imprime ao seu filme uma estética pictórica intensa, acentuada pela fotografia estupenda de Janusz Kaminski, colaborador recorrente de Steven Spielberg, em títulos como Amistad (idem, 1997) e O terminal (Terminal, 2004). O polonês também tem em seu currículo a direção de comédias, incluindo a vindoura Como você sabe (How do you know , 2010). Através de seu trabalho primoroso em O escafandro e a borboleta, o público é transportado para uma atmosfera de poesia e reflexão, que permanecem na cabeça muito tempo depois do fim do filme. E através de sua análise apurada da dor de não ser mais como antes, Shnabel construiu uma ode à vida e a opulência de bons sentimentos, pintando um quadro doloroso e emotivo, sempre verossímil e tocante.
Bauby é interpretado com economia de gestos por Matthieu Amalric, um dos atores mais requisitados do cinema francês atual, ao lado de Daniel Auteuil. Ele passa quase todo o filme confinado à prostração, por conta da condição extrema que tem de enfrentar em decorrência de sua doença. Se antes o editor era um home solar e muito charmoso, com o acidente vascular cerebral ele se torna totalmente dependente da ajuda dos outros, situação contra a qual luta com bravura, mas da qual não consegue escapar. Schnabel, nesse ponto, oferece uma reflexão urgente sobre a necessidade de se viver tudo o que for possível e aceitável, e transmite essa sensação ao espectador por meio do confinamento do protagonista. O teor da trama, por si só, é uma armadilha em termos de potencia para a pieguice, mas o realizador foge o tempo todo de cair no sentimentalismo barato, contando a história de um homem possível e imaginável. Aos poucos, fica visível a opção de Schnabel por uma abordagem quase asséptica do sofrimento de Bauby, mas nem por isso menos acalentadora.
Logo no começo do filme, o editor já se encontra vitimado pelo derrame, e todas as pessoas e objetos que o cercam são filtrados pelo seu olhar perscrutador, que busca retomar as referências que perdeu logo depois de sua tragédia particular. O filme é feito de recortes, que vão sendo alinhavados a partir da memória de Bauby, seriamente afetada pelo derrame, e que vai voltando aos poucos, mas nunca totalmente. A sensação de agonia diante dos procedimentos adotados pelos médicos é inevitável. Schabel filma a profilaxia como quem está diante de algo trivial, e é por isso que vemos, entre outras coisas, o olho direito de Bauby sendo costurado, de modo que sua visão se torna ainda mais restrita. Se antes ele apenas podia ver o que estava à sua volta, por estar sempre deitado sobre a cama do hospital, com apenas um olho para enxergar sua condição se torna ainda pior. Originalmente, o papel do editor tinha sido oferecido a Johnny Depp. Diante da recusa do ator, que estava envolvido com as filmagens de Piratas do Caribe – No fim do mundo (Pirates of Caribeen – At world’s end, 2007), o cineasta decidiu convidar Amalric, e o desempenho dele em cena atestam que a escolha foi acertada. O escafandro e a borboleta se configura como um poderoso tratado sobre a limitação gerada pela dor, e de como é possível se reinventar diante das adversidades que a vida impõe.
Um dos aspectos mais emocionantes do filme é, sem dúvida, a decisão de Bauby de escrever sua autobiografia. Para tanto, ele precisa se valer de um recurso um tanto insólito. Como não tem mais nenhum movimento em todo o corpo, a não ser o do olho esquerdo, ele conta com a ajuda de sua enfermeira, Henriette (Marie Josée Croze), que apresenta para ele um mecanismo possível para que ele se comunique. Como se mantém lúcido, ela lhe propõe que ele pisque uma vez para indicar qual letra deseja que seja escrita, e duas vezes para quando não for a letra que ele quer que se escreva. É dessa maneira que ele vai ditando sua autobiografia, algo que requer a máxima paciência, atividade para a qual a enfermeira se mostra bastante solícita.
As pessoas à volta do protagonista também tentam, cada qual à sua maneira, lidar com a sua nova situação. Sua esposa Céline (Emmanuelle Seigner, esposa de Roman Polanski), é uma das que sentem a dificuldade de estar próxima do marido depois do acontecimento fatídico, e isso se demonstra no movimento de progressivo afastamento empreendido por ela a cada nova visita que lhe faz. Seu pai Papinou é interpretado por Max Von Sydow, e a cena na qual eles se falam ao telefone é de uma delicadeza atroz, diante da qual é difícil conter as lágrimas. O ator, um habitué de Ingmar Bergman, passa pouco tempo em cena, mas é o suficiente para nos arrebatar com a imagem de pai impotente.
Em seu título, o filme traz uma certa estranheza, por unir elementos aparentemente desconexos. Mas a junção dessas duas palavras faz todo o sentido quando se observa a postura de Bauby diante de sua atual condição. Por não ser mais capaz de movimentar seu corpo, ele se encontra preso em uma espécie de escafandro, aquele equipamento pesado que serve para a respiração subaquática, mas sua alma e seu espírito encontram-se livres para voar como uma borboleta. A poesia do título, antes implícita, fica mais nítida em uma sequência em que o próprio personagem faz a comparação. Por conta de sua temática de superação diante de um fato extremo, O escafandro e a borboleta se aproxima de Mar adentro (idem, 2004), que também retrata a jornada de um homem para quem os movimentos já foram praticamente extintos. Aliás, Javier Bardem, protagonista de Mar adentro, já trabalhou com Schabel, na cinebiografia do escritor Reinaldo Arenas. Por pouco, não foi também uma escolha do diretor para a saga do editor de moda. No filme analisado nesta crítica, um detalhe importante chama a atenção: como membro do movimento neo-expressionista, o diretor imprime ao seu filme uma estética pictórica intensa, acentuada pela fotografia estupenda de Janusz Kaminski, colaborador recorrente de Steven Spielberg, em títulos como Amistad (idem, 1997) e O terminal (Terminal, 2004). O polonês também tem em seu currículo a direção de comédias, incluindo a vindoura Como você sabe (How do you know , 2010). Através de seu trabalho primoroso em O escafandro e a borboleta, o público é transportado para uma atmosfera de poesia e reflexão, que permanecem na cabeça muito tempo depois do fim do filme. E através de sua análise apurada da dor de não ser mais como antes, Shnabel construiu uma ode à vida e a opulência de bons sentimentos, pintando um quadro doloroso e emotivo, sempre verossímil e tocante.
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