Conhecido do público brasileiro por seu tórrido Na cama (En la cama, 2005), Matias Bize é daqueles cineastas que faz da palavra o seu reino. Essa característica se traduz em filmes assinalados por uma verborragia intensa, que caminha em contrapartida a ações mirabolantes. Por isso, seu tipo de cinema está muito mais atrelado a questões íntimas e hiper subjetivas, que repelem as grandes massas de espectadores, mais afeitas ao senso comum. Não se trata de uma crítica, mas de uma constatação sobre uma escolha que é legítima. A escolha de Bize é pela manifestação plurissignificativa da palavra, numa composição de estilo que ele vem depurando filme após filme. Seu começo se deu no último ano da década retrasada, com o inédito no Brasil La gente está esperando (idem, 2000), um trabalho com peculiaridades próprias de um diretor iniciático.
A carreira de Bize prosseguiu com Sábado (idem, 2002), no qual se utilizou do trabalhoso recurso de filmar toda a trama em um único plano-sequência, expediente igualmente adotado pelo russo Aleksandr Sokúrov no mesmo ano, quando dirigiu Arca russa (Russki Kovtcheg, 2002), sobre uma visita ao Museu Hermitage. A estréia mundial de Sábado, filmado exatamente num sábado, foi no festival de cinema de Mannheim-Heidelberg, na Alemanha, de onde saiu vitorioso, com quatro prêmios, incluindo o prêmio Rainer Werner Fassbinder. E tamanho sucesso se deu para uma película de apenas 65 minutos de duração. Seu filme seguinte foi o instigante Na cama, que foi exibido no festival do Rio de 2006, e obteve uma boa repercussão entre público e crítica ao narrar, com enxutez invejável, a (im)possível história de amor entre um homem e uma mulher confinados por uma noite inteira em um quarto de motel, entre muita conversa e muito sexo. Depois, Bize dirigiu Jogo de verão (Juego de verano, 2005), que não teve vez no circuito comercial brasileiro. No mesmo ano, trouxe à existência dois pequenos filmes, intitulados Llamando (idem, 2005) e Llamando ficción (idem, 2005). Então, dirigiu O bom de chorar (Lo bueno de llorar, 2006), no qual deixou seu Chile natal para se aventurar pelas ruas de Barcelona e contar a história de desapego de um casal em longa discussão de relação antes do fim definitivo. O filme também foi exibido no festival do Rio, em sua edição de 2007, mas não ganhou a chance de estar em cartaz posteriormente.
Por fim, chegamos ao recente A vida dos peixes (La vida de los peces, 2010), em que Bize revisita sua temática predileta: as incongruências que assinalam os relacionamentos amorosos. Para dar conta de narrar mais um conto moderno sobre o assunto, ele recrutou a dupla de atores Blanca Lewin, com quem já havia trabalhado em Na cama, e Santiago Cabrera, que atuou em filmes como Haven (idem, 2004) e Amor e outros desastres (Love and other disasters, 2006), no qual deu vida a um italiano. Eles são os protagonistas absolutos de uma trama que nos apresenta a vida conturbada de Andrés (Cabrera), um jornalista que vive há 10 anos em Berlim, por conta de seu trabalho com notícias esportivas. Depois de tanto tempo longe do solo chileno, ele decide retornar ao seu país natal, disposto a rever amigos com quem não vinha mantendo contato.
A sensação que acompanhará Andrés em todo o tempo de sua permanência no Chile será a de deslocamento. À medida que vai reencontrando pessoas que fizeram parte de sua trajetória, ele vai se certificando de que o tempo em que vivia harmonicamente com elas já passou, e que essa é uma realidade patente e irreversível. Andrés está em uma festa, como logo o roteiro escrito por Matías Bize em parceria com Julio Rojas nos indica. Não se sabe ao certo quem é o aniversariante, e nem mesmo interessa à narrativa essa afirmação. Como fizera em seus trabalhos pregressos – Na cama e O bom de chorar – , o diretor circunscreve a ação de A vida dos peixes a um único espaço: a festa na casa de um dos amigos de Andrés. É ali que o personagem vai rever Beatriz (Lewin), a mulher que mais mexeu com seu coração enquanto ele habitava sua terra natal. Em algumas conversas francas e alternadas com Beatriz, Andrés vai perceber que o amor que eles viveram no passado não pode mais voltar a ser, e que grande parte da motivação dela para pôr fim a tudo foi a personalidade egoísta do jornalista, algo que vai ficando mais claro para o público através de outros diálogos que o protagonista trava durante a ocasião festiva.
Enquanto circula pelos diversos ambientes daquele aniversário, ele revê amigos com quem mantinha uma relação de extrema cumplicidade, que acabou sendo perdida com o passar dos anos. Nesse sentido, A vida dos peixes se revela como um eficiente e inteligente ensaio sobre o avançar do tempo, e de inúmeras consequências que ele pode trazer consigo. Bize emprega uma estética simples e uma composição de planos minimalistas, livrando-se de possíveis gorduras no enredo e chamando a atenção para o que se passa com os personagens a partir do que eles têm a dizer. O cineasta de 31 anos exibe uma maturidade admirável na condução de seu filme, e imprime novamente sua estética particular, importando-se menos com o cenário e mais com os personagens. No caso desse filme, há que se mencionar o apoio dado pela fotografia em tons azulados, que faz alusão aos peixes do aquário da casa do aniversariante o tempo todo. Andrés discursa longamente com Beatriz e com vários de seus amigos do passado, assim como dialoga com os filhos de um desses amigos e com a filha e a amiga da filha de um desses amigos, fomentando no público um desejo de conhecê-lo cada vez mais por aquilo que ele vai revelando de sua personalidade.
Em sua escolha por valorizar os diálogos, Bize se aproxima da verborragia de Eric Rohmer, cineasta francês que sempre soube fazer concessões aos longos debates entre os personagens, abdicando de uma ação que corre pelos fotogramas. A vida dos peixes é ao mesmo tempo, autoral e despojado, e traça um painel comovente das instâncias de mudança que afetam a curvatura sempre sinuosa que se observa ao se investigar o crescimento de alguém como ser humano. Andrés acaba expondo seu lado frágil cada vez que fala mais um pouco com Beatriz, que já não é capaz de corresponder ao amor que ele acha que ainda sente por ela. Sua vida percorreu outros caminhos, ela subiu outros degraus, e esse movimento dissonante com relação a ele só serviu para acentuar diferenças que outrora já haviam se manifestado entre eles. Nas entrelinhas dessas conversas entre o ex-casal, Bize discursa sobre a falibilidade a que muitos relacionamentos nascem condenados, e essa constatação é feita como quem apenas afirma a respeito do estado das coisas.
De certa forma, pode-se afirmar que o realizador chileno conclui aqui a gradação de romances que iniciara com Na cama. Nesse, havia um quase casal, em O bom de chorar havia um casal se desfazendo, até que em A vida dos peixes o casal se desfez de fato. Como cada fase de uma relação pede um retrato, Bize construiu três filmes diferentes, cada um com sua independência e seu valor próprio. Andrés voltou a Santiago apenas na tentativa de podar algumas arestas que havia deixado, para que pudesse se instalar em solo berlinense em definitivo. Portanto, sua longa jornada noite adentro naquela festividade acaba sendo uma ocasião de reavaliação de sua trajetória até ali, e possibilidade de entendimento de que essência e aparência podem caminhar separadas, mas se relacionam de modo dicotômico. O filme foi premiado com O Goya de melhor filme estrangeiro falado em espanhol fora da Espanha, um reconhecimento merecido para uma obra de embalagem e enredo simples que se desdobra em um terreno fértil em aberturas para discussão. A trilha sonora é outro elemento que arrebata em A vida dos peixes, especialmente na sequência em que Andrés vai até a sala da casa, em que várias pessoas estão reunidas e um dos convidados toca uma balada triste com uma bela e desalentada voz. Esse momento do filme, que ocorre quando sua duração está em cerca de 30 minutos, sintetiza a grande perseguição do cinema de Matías Bize: a impossibilidade de uma sintonia profunda entre duas pessoas, por conta da inevitável condenação à solidão por que todos sofremos.
29 de mar. de 2011
27 de mar. de 2011
O olhar perscrutador que vai além em Janela indiscreta
Lembrado com alta frequência pelos fãs e apontado como um dos maiores clássicos de todos os tempos, Janela indiscreta (Rear window, 1954) faz jus à sua perífrase. Narrado sob o ponto de vista de seu protagonista absoluto, o filme pertence a uma era de Hollywood que já se perdeu, e que, por isso mesmo, chama tanta atenção ao ser evocada por meio desse trabalho. Tudo gira em torno de Jeff (James Stewart), apelido carinhoso de L. B. Jefferies, um repórter intrépido que está temporariamente impedido de exercer seu amado ofício em decorrência de uma fratura na perna. Imobilizado com o gesso e confinado a uma cadeira de rodas, resta-lhe como passatempo a observação constante da janela de seu apartamento.
Logo que o filme começa, a câmera analisa pacientemente o que os olhos de Jeff podem contemplar, e evidencia a estética um tanto teatral impressa por Hitchcock, o cineasta responsável pela película. Num tempo em que os efeitos visuais ainda eram primitivos, quase mambembes, era preciso recorrer a técnicas mais simplórias para surpreender o espetador, algo que o diretor era perfeitamente capaz de fazer. Depois de uma espécie de sobrevoo pela movimentada vizinhança de Jeff, o espectador é transportado para a sala do apartamento do protagonista, que não perde nada de vista com seu potente binóculo. Ele está habituado a seguir um perfil investigativo, e é exatamente por conta dessa conduta que Jeff encontrará uma fonte de desconfiança bem próxima de sua residência. Essa fonte é um homem que ele acredita ter matado a esposa e escondido o corpo, o que o leva a tentar provar de todo jeito que está com a razão.
Nessa tentativa de provar que está certo, Jeff envolve sua noiva, a estonteante Lisa (Grace Kelly, uma lenda então viva), numa trama de suspense e de voyerismo em que vai concentrar todas as suas forças. É por meio dessa sinopse simples que Hitchcock apresenta ao seu público um filme com roteiro bem azeitado, atuações preciosas e uma montagem acertada, entre vários outros motivos. E, diferentemente do que possa parecer, Janela indiscreta não é feito apenas de suspense. O filme também tem momentos de humor legítimo, especialmente nos diálogos inspirados entre Jeff e Lisa, que tenta dissuadir o noivo de suas investidas contra o vizinho, que pode ser mesmo inocente como ela imagina. Na verdade, a procura de Jeff por algo que esteja fora do lugar é um traço marcante de sua personalidade, talhado com os anos de profissão. Ele sempre fotografou cenas de crimes e situações ou atitudes suspeitas, e isso contribui para que, em suas semanas de ócio, qualquer passo em falso de outras pessoas lhe chame a atenção.
Aos poucos, o protagonista consegue fazer de Lisa a sua parceira de investigação, mesmo que ela continue incrédula quanto a periculosidade do vizinho de seu noivo. Com essa busca pela verdade em que Jeff acredita, muitos acontecimentos, ora estranhos, ora banais, vão se superpondo na trajetória dos personagens, o que acaba por colocar em risco o relacionamento desse casal. Some-se a isso a posura ranzinza exibida por ele em muitas ocasiões, e sua teimosia em comprovar que está certo naquilo que pensa. Hitchcock demonstra, com isso, um domínio do drama e do suspense, alternando-os durante a narrativa, e oferendo razões para o interesse de públicos distintos. A contrução de Janela indiscreta é sobre uma atmosfera claustrofóbica, reforçada o tempo todo pela condição de invalidez passageira vivida por Jeff. Seus amigos e sua empregada também lhe dizem que suas desconfianças são puramente imaginárias, e que ele deveria deixá-las. Mas Jeff é turrão, e não dá o braço a torcer. Por outro lado, o roteiro escrito por John Michael Hayes, a partir do conto de Cornell Woolrich, deixa a interrogação no ar: o vizinho é ou não um criminoso? A dúvida passa a perseguir também o público, que se torna cúmplice do périplo investigativo do protagonista para chegar à verdade por trás das aparências.
Um dos grandes trunfos de Janela indiscreta é a presença de James Stewart em cena. O ator foi simplesmente um dos melhores de sua geração, sempre demontrando versatilidade e talento notáveis. Além disso, Stewart foi um grande colaborador de Hitchcock, figurando entre os seus atores favoritos. Hitchcock o dirigiu em numerosos títulos, entre os quais estão Festim diabólico (Rope, 1948), O homem que sabia demais (The man who knew too much, 1956) e o legendário Um corpo que cai (Vertigo, 1958), todas parcerias bem-sucedidas, que contaram com composições extremamente acertadas do Stewart, que faleceu em 1997, depois de uma carreira profícua que incluiu trabalhos com Joh Ford, Frank Capra e Anthony Mann. Grace Kelly, por sua vez, enche a tela de Janela indiscreta com sua beleza indescritível, quase diáfana, e também com sua capacidade incontestável como atriz. Ela demonstra o talento de uma era que há muito se foi, e que deixa saudades, que só podem ser aplacadas quando se pode assistir a filmes desse tempo.
Durante seus 112 minutos, o filme é um achado em termos de enredo, pois oferece uma trama reflexiva, que brinca com o que pode ser imaginação e com o que pode ser realidade. É quase inevitável não ser levado a concordar com Jeff, já que os desdobramentos da história são filtrados pelo seu olhar, mas Hitchcock não se vale de maniqueísmos, e Stewart constrói um personagem fronteiriço entre a bondade e a implacabilidade. Na sua necessidade de distração, Jeff acabou por se agarrar ao caso que lhe surgiu da janela de sua casa, mesmo que estivesse cometendo um terrível engano. O filme fez escola, servindo de referência para vários diretores que vieram após Hitchcock. Entre os projetos que podem ser citados estão o brasileiro O outro lado da rua (idem, 2004), em que Fernanda Montenegro é a moradora desconfiada, e o italiano A janela da frente (La finestra di fronte, 2004), cuja protagonista se envolve com um vizinho de quem não sabe praticamente nada, e o estadunidense Paranoia (Disturbia, 2007), em que um rapaz em prisão domiciliar vê algo de estranho com seu vizinho. Além desses, Woody Allen fez uma homenagem, ao seu modo, ao estilo de Hitchcock quando filmou Um misterioso assassinato em Manhattan (Manhattan murder mistery, 1993) e se utilizou de um esquema narrativo semelhante ao do Mestre do Suspense, apesar de ter se voltado muito mais para a comédia. Por fim, cabe assegurar que Janela indiscreta merece permanecer inscrito no rol dos grandes filmes de todos os tempos, por suas qualidades mais do que atestadas.
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Cinema
22 de mar. de 2011
A arte como espaço de resistência analisada em O mágico
A animação francesa contemporânea nos presenteou com uma obra cheia de singularidades quando do lançamento de O mágico (L’illusionniste, 2010), o exemplar mais recente da obra ainda pouco extensa de Sylvain Chomet. Em apenas 90 minutos, o espectador mais sensível é transportado para um universo todo particular, cheio de metáforas e representações que caem como uma luva para uma produção que se propõe a analisar as ressonâncias do início do processo de decadência de um tipo de arte, mais especificamente, a magia tradicional. O personagem-título, que não recebe um nome próprio, apenas a alcunha citada, é a ilustração em traços animados de uma era que vem se apagando com grande velocidade nos dias atuais. Seu tipo ora altivo, ora desalentado é uma amostra de como o homem vem deixando de lado sua porção sonhadora, que se encanta com a simplicidade e se deixa levar muito mais pela imaginação que pela imagem.
Em se tratando de uma sociedade imagética como a contemporânea, vale cada vez mais o espetáculo visual, a grandiloquência de cores, formas e pessoas, aliado ao tátil, ao multissensorial. Numa sociedade como essa, um mágico que se apresenta com truques comuns, como o de tirar um coelho da cartola ou um lenço enorme de dentro da sua garganta, não encontra mais guarida. Resta-lhe caminhar a esmo, em busca de lugares onde ainda possa haver apreciadores de seu modo de encantar e embevecer a plateia. Nesse ponto, o filme de Chomet exibe uma faceta desoladora, pois o mágico vaga pelas grandes cidades, assim como pelo interior, sempre sem sucesso de público. Para quem assiste à animação – talhada à moda antiga, algo cada vez mais raro – com olhos saudosistas, no melhor sentido da palavra, surge o sentimento de agonia, por saber que a realidade apontada pelo filme é cada vez mais irreversível. A sede de modernidade, que parece nunca ser aplacada, só faz afastar os homens da arte mais primitiva, ou seja, menos atrelada à tecnologia.
Em O mágico, a única pessoa que ainda demonstra encantamento com a arte do protagonista é uma garotinha chamada Alice, que trabalha em um hotel barato, um dos locais onde aquele homem se hospeda. Nasce ali uma bela amizade, que ultrapassará os limites da convivência circunscrita àquele espaço, levando-o a carregá-la como sua companhia aonde quer que ele for. O surgimento dessa relação amistosa entre Alice e o mágico comprovam que a aura de candura acompanha o filme desde o seu início.
Chomet ainda opta pelo silêncio quase absoluto, ao idealizar uma animação de pouquíssimos diálogos, na qual exatamente a imagem vai chamar a atenção do espectador. Numa atualidade em que o público sente necessidade de ouvir além de ver, o silêncio de O mágico pode soar incômodo. Entretanto, esse índice acaba por cooperar para que a obra seja mais contemplativa, e as imagens falem por si sós. O diretor oferece a chance de entrar em contato com uma atmosfera de brilho e charme que salta aos olhos. E não somente aos olhos infantis, mas de todos aqueles que ainda guardam um pouco de criança dentro de si. Apesar de fazer menção a uma prática que cada vez se circunscreve a um passado, O mágico se revela um filme atemporal, de alcance a todas as faixas etárias.
O filme foi construído com base em um roteiro deixado por Jacques Tati, um dos grandes pilares da cena muda cômica francesa. Uma de suas obras mais famosas é Meu tio (Mon oncle, 1958), uma comédia dramática que achincalha com a modernização exagerada das coisas, que parece automatizar também as pessoas. Em sua carreira, Tati muitas vezes acumulou as funções de diretor, ator e roteirista, e o roteiro de O mágico é sua última colaboração para o cinema. Portanto, a animação também é uma bela homenagem à figura desse profissional, e verifica-se uma grande semelhança entre Tati e o ilusionista em traços tradicionais. O personagem tem um estilo clássico, que remete aos anos 40 e 50, e soa quase como a versão animada de Tati. Chomet, por sua vez, vinha de um jejum de sete anos na direção, já que seu último trabalho havia sido As bicicletas de Belleville (Les triplettes de Belleville, 2003). Comparando os dois filmes, nota-se que o diretor imprime um traço muito marcante às suas obras, como personagens de tipos que são facilmente reconhecíveis como sendo os seus. As bicicletas de Belleville concorreu ao Oscar de melhor animação em 2004, disputando com Irmão urso (Brother bear, 2003) e Procurando Nemo (Finding Nemo, 2003), perdendo para este último. O mágico, por sua vez, também entrou na disputa pela estatueta dourada nessa mesma categoria em 2011, perdendo para a animação inteiramente computadorizada Toy story 3 (idem, 2010). As animações vencedoras em seus respectivos anos têm qualidade inegável, mas o fato de elas terem sido premiadas também parece ser indicador de que a tendência cada vez maior é a de privilégio e de preferências pelas animações produzidas digitalmente, em detrimento de um trabalho mais artesanal.
No mundo ocidental, Chomet encontra um parceiro perfeito no que se refere à resistência à computadorização: Hayao Miyazaki. O diretor japonês, de filmes como A viagem de Chihiro (Sen to Chihiro no kamikakushi, 2001) e Ponyo – Uma amizade que veio do mar (Gake no ue no Ponyo, 2008), também opta sempre por composições tradicionais de animações, entregando visuais deslumbrantes e tramas lúdicas, que chamam a atenção de crianças e adultos. Tanto Miyazaki quanto Chomet se colocam na posição de ícones da resistência à extinção do modo de produção de animações à moda antiga, e permanecem como alternativas a quem ainda ama ver um filme em desenho animado. E, mais do que isso, ambos demonstram como a arte pode ser concebida como um espaço de resistência contra a barbárie e a bestialização do ser humano. No caso de O mágico, algumas curiosidades interessante merecem ser comentadas. O roteiro original de Tati sofreu algumas alterações, feitas pelo próprio Chomet. A principal delas foi a transferência do cenário da história de Praga para Edinburgo, justificada pelo fato de Chomet ter seu estúdio situado nessa cidade. Outro elemento interessante, que deve chamar a atenção dos mais observadores, é loja de penhores que aparece no filme. Ela se chama Brown and Blair, e é uma nítida referência aos dois últimos primeiros-ministros da Inglaterra.
Em sua caminhada por um ambiente que ainda receba sua arte, o mágico se vê cada vez mais sem espaço, sendo suplantado por bandas de rock que arrastam legiões de fãs escalafobéticas, ávidas de tietar cantores construídos sob medida, com músicas que se servem muito bem para a substanciação de seus conflitos juvenis, sempre descomunais em sua concepção. Em dado momento do filme, o protagonista está uma casa de shows, exatamente atrás do palco, esperando pacientemente a sua hora de começar a se apresentar. Mas essa hora parece não chegar nunca, pois a banda de rock que está no palco canta várias músicas seguidas, dando ao público exatamente o que eles querem: canções vazias que só assinam embaixo de sua maneira de ver o mundo, padronizando até mesmo o sofrimento. É triste ver as várias tentativas do mágico de começar seu show, e, quando ele finalmente consegue, restam apenas uma avó e seu neto na plateia, a quem ele oferece um bom espetáculo, comprometido com a sua arte acima de tudo. Até mesmo Alice, que um dia fora sua maior entusiasta, deixa de ser a menina ingênua do começo, e se torna mais afeita aos bens confiscáveis que ao encanto puro e simples. E o mágico segue sua caminhada cada vez solitária, cônscio de estar indo rumo a um deserto em que não parece haver sequer um oásis.
Em se tratando de uma sociedade imagética como a contemporânea, vale cada vez mais o espetáculo visual, a grandiloquência de cores, formas e pessoas, aliado ao tátil, ao multissensorial. Numa sociedade como essa, um mágico que se apresenta com truques comuns, como o de tirar um coelho da cartola ou um lenço enorme de dentro da sua garganta, não encontra mais guarida. Resta-lhe caminhar a esmo, em busca de lugares onde ainda possa haver apreciadores de seu modo de encantar e embevecer a plateia. Nesse ponto, o filme de Chomet exibe uma faceta desoladora, pois o mágico vaga pelas grandes cidades, assim como pelo interior, sempre sem sucesso de público. Para quem assiste à animação – talhada à moda antiga, algo cada vez mais raro – com olhos saudosistas, no melhor sentido da palavra, surge o sentimento de agonia, por saber que a realidade apontada pelo filme é cada vez mais irreversível. A sede de modernidade, que parece nunca ser aplacada, só faz afastar os homens da arte mais primitiva, ou seja, menos atrelada à tecnologia.
Em O mágico, a única pessoa que ainda demonstra encantamento com a arte do protagonista é uma garotinha chamada Alice, que trabalha em um hotel barato, um dos locais onde aquele homem se hospeda. Nasce ali uma bela amizade, que ultrapassará os limites da convivência circunscrita àquele espaço, levando-o a carregá-la como sua companhia aonde quer que ele for. O surgimento dessa relação amistosa entre Alice e o mágico comprovam que a aura de candura acompanha o filme desde o seu início.
Chomet ainda opta pelo silêncio quase absoluto, ao idealizar uma animação de pouquíssimos diálogos, na qual exatamente a imagem vai chamar a atenção do espectador. Numa atualidade em que o público sente necessidade de ouvir além de ver, o silêncio de O mágico pode soar incômodo. Entretanto, esse índice acaba por cooperar para que a obra seja mais contemplativa, e as imagens falem por si sós. O diretor oferece a chance de entrar em contato com uma atmosfera de brilho e charme que salta aos olhos. E não somente aos olhos infantis, mas de todos aqueles que ainda guardam um pouco de criança dentro de si. Apesar de fazer menção a uma prática que cada vez se circunscreve a um passado, O mágico se revela um filme atemporal, de alcance a todas as faixas etárias.
O filme foi construído com base em um roteiro deixado por Jacques Tati, um dos grandes pilares da cena muda cômica francesa. Uma de suas obras mais famosas é Meu tio (Mon oncle, 1958), uma comédia dramática que achincalha com a modernização exagerada das coisas, que parece automatizar também as pessoas. Em sua carreira, Tati muitas vezes acumulou as funções de diretor, ator e roteirista, e o roteiro de O mágico é sua última colaboração para o cinema. Portanto, a animação também é uma bela homenagem à figura desse profissional, e verifica-se uma grande semelhança entre Tati e o ilusionista em traços tradicionais. O personagem tem um estilo clássico, que remete aos anos 40 e 50, e soa quase como a versão animada de Tati. Chomet, por sua vez, vinha de um jejum de sete anos na direção, já que seu último trabalho havia sido As bicicletas de Belleville (Les triplettes de Belleville, 2003). Comparando os dois filmes, nota-se que o diretor imprime um traço muito marcante às suas obras, como personagens de tipos que são facilmente reconhecíveis como sendo os seus. As bicicletas de Belleville concorreu ao Oscar de melhor animação em 2004, disputando com Irmão urso (Brother bear, 2003) e Procurando Nemo (Finding Nemo, 2003), perdendo para este último. O mágico, por sua vez, também entrou na disputa pela estatueta dourada nessa mesma categoria em 2011, perdendo para a animação inteiramente computadorizada Toy story 3 (idem, 2010). As animações vencedoras em seus respectivos anos têm qualidade inegável, mas o fato de elas terem sido premiadas também parece ser indicador de que a tendência cada vez maior é a de privilégio e de preferências pelas animações produzidas digitalmente, em detrimento de um trabalho mais artesanal.
No mundo ocidental, Chomet encontra um parceiro perfeito no que se refere à resistência à computadorização: Hayao Miyazaki. O diretor japonês, de filmes como A viagem de Chihiro (Sen to Chihiro no kamikakushi, 2001) e Ponyo – Uma amizade que veio do mar (Gake no ue no Ponyo, 2008), também opta sempre por composições tradicionais de animações, entregando visuais deslumbrantes e tramas lúdicas, que chamam a atenção de crianças e adultos. Tanto Miyazaki quanto Chomet se colocam na posição de ícones da resistência à extinção do modo de produção de animações à moda antiga, e permanecem como alternativas a quem ainda ama ver um filme em desenho animado. E, mais do que isso, ambos demonstram como a arte pode ser concebida como um espaço de resistência contra a barbárie e a bestialização do ser humano. No caso de O mágico, algumas curiosidades interessante merecem ser comentadas. O roteiro original de Tati sofreu algumas alterações, feitas pelo próprio Chomet. A principal delas foi a transferência do cenário da história de Praga para Edinburgo, justificada pelo fato de Chomet ter seu estúdio situado nessa cidade. Outro elemento interessante, que deve chamar a atenção dos mais observadores, é loja de penhores que aparece no filme. Ela se chama Brown and Blair, e é uma nítida referência aos dois últimos primeiros-ministros da Inglaterra.
Em sua caminhada por um ambiente que ainda receba sua arte, o mágico se vê cada vez mais sem espaço, sendo suplantado por bandas de rock que arrastam legiões de fãs escalafobéticas, ávidas de tietar cantores construídos sob medida, com músicas que se servem muito bem para a substanciação de seus conflitos juvenis, sempre descomunais em sua concepção. Em dado momento do filme, o protagonista está uma casa de shows, exatamente atrás do palco, esperando pacientemente a sua hora de começar a se apresentar. Mas essa hora parece não chegar nunca, pois a banda de rock que está no palco canta várias músicas seguidas, dando ao público exatamente o que eles querem: canções vazias que só assinam embaixo de sua maneira de ver o mundo, padronizando até mesmo o sofrimento. É triste ver as várias tentativas do mágico de começar seu show, e, quando ele finalmente consegue, restam apenas uma avó e seu neto na plateia, a quem ele oferece um bom espetáculo, comprometido com a sua arte acima de tudo. Até mesmo Alice, que um dia fora sua maior entusiasta, deixa de ser a menina ingênua do começo, e se torna mais afeita aos bens confiscáveis que ao encanto puro e simples. E o mágico segue sua caminhada cada vez solitária, cônscio de estar indo rumo a um deserto em que não parece haver sequer um oásis.
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Cinema
18 de mar. de 2011
A adorável busca por dividendos de Trapaceiros
Antes que a última década do século XX se encerrasse, Woody Allen teve tempo de oferecer mais uma deliciosa comédia com suas marcas registradas, cujo resultado atende pelo nome de Trapaceiros (Small time crockers, 2000). O filme é um dos mais ingênuos da fase mais recente da carreira do cineasta, o que não significa dizer que se equipara a produções contemporâneas do arsenal de bobagens que tomou Hollywood de assalto há tempos. Allen sempre encontra um modo de catalisar a ação de seus filmes para um caminho de crítica e reflexão, e isso já um grande motivo para se dar uma chance aos seu filmes.
Trapaceiros tem como fio condutor a jornada hilária de Ray (Allen, em um de seus últimos trabalhos como ator), cujo aposto “O Cérebro” denuncia que há nele uma mente capaz de arquitetar planos sólidos para a obtenção de muitos lucros e dividendos, aquilo de que ele e seus amigos (ou comparsas) têm necessidade. Como o título avisa, Ray é um salteador (é um termo anacrônico, mas não faz mal ressuscitá-lo), e está ladeado por uma dupla de néscios (outro termo anacrônico) que o ajuda nas empreitadas mais inusuais, colocadas em prática para que eles alcancem a tão sonhada entrada na alta sociedade novaiorquina. Quem não gosta nada das trapaças de Ray é sua esposa Frenchy (Tracey Ullman), pois ela sempre repele a investidas do marido em novos “negócios” que poderão render aquilo que o trio de vigaristas tanto deseja. E é com base no argumento que fala de três bandidos que Allen conjuga entretenimento de qualidade e um série de tiradas cheias de inspiração.
O novo plano de Ray parece fadado ao fracasso, e é nele que Frenchy pensa ao saber do que se trata. O gatuno pretende cavar um túnel no subsolo de uma pizzaria recém-fechada, enquanto sua mulher vende biscoitos caseiros para despistar sobre o que acontecerá nos bastidores do estabelecimento. Até que todos entrem em acordo sobre o plano, sobram estratégias de convencimento muito bem inventadas por Ray para que sua mulher participe da idéia, o que acaba acontecendo. É quando vem o primeiro dos grandes achados do filme: o sucesso involuntário dos biscoitos vendidos por Frenchy
que mal consegue dar conta de produzir tantos. O negócio de fachada rende bons dividendos aos sócios, que ganham até mesmo a simpatia de um policial que faz vista grossa para a outra empreitada realizada pelos vigaristas. Em pouco mais de um ano, a trupe estará em ótimas condições financeiras, e Ray e Frenchy terão se tornado um casal de novos ricos.
Utilizando-se do expediente de enriquecimento a curto prazo do casal de protagonistas, Woody Allen propõe uma análise bem-humorada do comportamento dos membros da alta sociedade de Nova York, tendo o seu texto inspirado como arma primordial. Nas pessoas de Ray e Frenchy, o espectador tem a chance de se deparar com a maneira de ver a realidade que muitos pertencentes a essa classe exibe. E isso colabora para que o filme adquira um tom de charge nessa fase, já que muitas das atitudes desse casal ganham vários tons acima da média. O diretor se permite usar com talento a galhofa, de um modo bastante acessível ao grande público. Sem qualquer tom pejorativo, pode-se dizer que Trapaceiros é um dos filmes mais “fáceis” de Allen, que se soma a um filão de obras do diretor em que se inserem títulos como Um misterioso assassinato em Manhattan (Manhattan murder mistery, 1993) e O escorpião de jade (The curse of jade scorpion, 2001), que ele dirigiria no ano seguinte. Não significa, contudo, dizer que Trapaceiros é um filme boboca, nem que seja um longa que se deixa arrastar pela obviedade.
Como de hábito, a direção de atores alleniana é um show à parte, e o elenco de coadjuvantes de Trapaceiros oferece desempenhos dignos de elogios, bem como a parceira de cena do Allen ator. É delicioso acompanhar sua dobradinha com Tracey Ullman em cena, por conta da fluidez e da naturalidade com que ambos se relacionam interpretando marido e mulher. Ullman demonstra uma ótima noção do timing cômico, servindo de complemento ideal para as gags de Allen, uma de suas várias marca registradas. Hugh Grant também não deixa a desejar como um professor ocasional de boas maneiras, que é contratado por Frenchy para auxiliá-la em sua entrada na high society. O ator se sai muito bem na pele de um tipo canalha, interessado apenas no retorno monetário que sua aproximação com essa mulher pode gerar. Ter aceito esse trabalho com o diretor foi uma ótima decisão de Grant, que adiciona uma comédia inteligente e genuinamente divertida ao seu currículo de filmes coroados de indigência.
Apesar de reunir uma série de elementos que são facilmente reconhecíveis como sendo de um filme de Woody Allen, Trapaceiros exibe identidade própria. Está entre um dos maiores sucessos de bilheteria recentes do diretor, e funciona como uma alternativa salutar às produções que mascaram a total falta de propósito com um desfile de piadas infames e vazias. O cineasta não abandona em um só momento o tom piadístico nesse trabalho, mas sempre optando por um estilo apurado, mesmo quando seu discurso aparenta ser apenas simplório. Mesmo dando vida a um ser tão descarado como Ray, Allen consegue despertar a cumplicidade do espectador, que torce para que seus ciclos acasos se encaminhem para um desfecho otimista. Mas cabe lembrar que, mesmo em sua seara de filmes cômicos, Allen não abandona sua porção de pessimismo, ainda que, nesse gênero, essa sua perspectiva de vida se apresente de modo mais latente. O filme em questão está longe de ser um dos melhores da longa carreira do diretor, mas não prescinde de uma boa observação, pois um Allen menos inspirado, como adoram propagar seus entusiastas, ainda é bem mais relevantes que outros diretores em franca “inspiração”.
Ele continua fazendo um cinema orgânico, em que se verifica um notável vococentrismo, isto é, uma ênfase clara na voz e na palavra, talvez uma maneira de dirimir algumas inquietações, compartilhando-as audiovisualmente. Trapaceiros comprova que Allen também sabe trabalhar com a simplicidade, sem abrir mão de ser minimamente reflexivo. O elenco do filme não traz nenhum de seus habitués, mas acrescenta à extensa galeria de atores que já passaram por seus trabalhos nomes bastante interessantes. Cada pequeno instante dessa 0bra exala um misto de frescor com encanto que garante a compenetração do público à sua narrativa, e tornam Trapaceiros mais um tomo da grande coleção de volumes de ensaios sobre o homem e suas numerosas possibilidades.
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Fatal: a derrocada da egolatria
O gênero dramático ganhou mais um bom exemplar com o lançamento de Fatal (Elegy, 2008), quarto filme da diretora Isabel Coixet. A catalã cinquentona decidiu adaptar um romance de Philip Roth, intitulado O animal agonizante, para empreender um ensaio denso e intenso sobre as chagas da vontade e o despedaçamento da prepotência. No papel de protagonista, temos um inspirado Ben Kingsley, que personifica David Kepesh, um professor universitário que se gaba de ter um bom domínio na cama quando se trata do sexo feminino, assim como se garante fortemente no campo da sedução e da conquista. O personagem é a encarnação de dois temas caros a Roth: o erotismo e a erudição. Cada um desses aspectos se manifesta com intensidade na vida de David. O primeiro, por conta de seu comportamento hedonista, e o segundo, por suas tiradas cheias de referências ao ambiente academicista.
Coixet dirige a adaptação procurando extrair a essência do texto de Roth, mas não se furta de construir uma obra com identidade própria, impedindo que ela seja classificada como um decalque do romance idealizado pelo escritor. A começar pelo título do filme, que será comentado mais adiante. Quanto ao protagonista, a sua vida de triunfo sobre o sexo feminino começa a ficar abalada depois que entra em cena a sensual Consuelo (Penélope Cruz), uma das alunas de David, a quem ele busca seduzir e encantar com seu palavrório rebuscado e e seu charme cinqüentão. A jovem é extremamente bonita, mas David está longe de querer uma relação duradoura com ela, deseja apenas que ela seja mais uma em sua lista de conquistas. Entretanto, a segurança com que o professor transita pelos seus encontros fugazes é abalada pelo ciúme doentio de Consuelo que começa a brotar em seu coração.
A partir dessa fase do filme, David vai percebendo a sua egolatria entrando em derrocada, um processo que se acelera à medida que ele percebe sua discrepância física em relação à amante. David toma ciência de todo o frescor jovem que Consuelo exala, enquanto enxerga a clara aproximação de sua decrepitude, o que também o leva a discussões cerebrais com seu grande amigo George (Dennis Hooper), um homem que o acompanha em suas jornadas de autoadulação e de busca pelo prazer. Entre um e outro set de jogos de tênis, eles dialogam sobre o caráter por vezes fastidioso de viver, bem como da dificuldade de relacionamento entre homens e mulheres, algo atemporal e irrestrito a espaços geográficos. Ele teme desesperadamente ser deixado por Consuelo, fato que acaba se consumando em pouco tempo, gerando desolação nele.
Mais tarde, é Consuelo quem voltará a procurá-lo, movida pela necessidade de pedir-lhe um favor do qual depende sua vida, e essa se mostra a grande reviravolta na trama. Sobre o personagem David Kepesh, é interessante comentar que ele é uma figura recorrente na literatura de Roth, já que apareceu em livros anteriores do autor: O seio (1973) e O professor do desejo (1977). Sua figura representa com propriedade o espírito egocêntrico do homem moderno, sempre afeito às manifestações de seu bel-prazer, ao qual quer satisfazer indiscriminadamente. A fonte de suas grandes preocupações, contudo, está justamente em uma personagem feminina, levando-o a não saber mais como agir para afirmar e reafirmar seu poderio sobre ela. Até mesmo a amante e amiga de longa data, Carolyn (Patricia Clarkson), que nunca lhe cobrou mais do que sexo, demonstra uma certa noção de seu estado, e procura entender o que se passa realmente com ele.
Fatal tem um título original que difere do que foi dado em português. A tradução literal para a nossa língua é “elegia”, um tipo de composição poética originário da tradição grega antiga, em que há um tema triste sobre o qual se discorre, geralmente o amor. A apropriação feita por Coixet é louvável, pois o filme evidencia exatamente essa acepção literária do vocábulo, sublinhada pelo pessimismo que atravessa a pseudo love story de David e Consuelo. O roteiro foi adaptado por Nicholas Meyer, e marca a primeira vez em que Coixet não filma um texto escrito por ela mesma, o que é um detalhe interessante, já que nos permite observar como ela se apropria de um roteiro alheio. Ao longo de sua carreira como diretora, ela entregou dramas fortes ao público, formando duas parcerias seguidas com Sarah Polley, com quem filmou Minha vida sem mim (Mi vida sin mi, 2003) e A vida secreta das palavras (The secret live of the words, 2006). Ambos os filmes são tratados profundos sobre seres humanos em buscas lancinantes por manifestações de afeto. É uma grande pena que o trabalho mais recente da cineasta jamais tenha chegado ao Brasil. Map of the sounds of Tokyo (2009) foi exibido apenas no festival de Cannes de 2009, sem qualquer chance no circuito comercial.
Outros elementos atestam a qualidade de Fatal como filme e como exercício de reflexão sobre a finitude dos sentimentos. Entre eles está o esmero visual oferecido pela direção de fotografia de Jean-Claude Larrieu, um esteta da imagem que ostenta numerosos títulos fotografados em sua carreira. No caso do filme criticado, a luz atravessa os personagens com discrição, revelando suas facetas pouco a pouco, e deixando no ar que existem muitas outras características que permanecerão implícitas sobre a personalidade daqueles homens e mulheres tão verossímeis. Larrieu brinca, de certa forma, com o aspecto chiaroscuro de David e Consuelo, que apresentam sempre comportamentos e visões antagônicas, mas também diletantes. Ele é colaborador habitual de Coixet, tendo fotografado todos os filmes da diretora citados até aqui, além de assinar a fotografia de filmes como Paris, te amo (Paris, je t’aime, 2006) e Baby love (Comme les autres, 2008), duas produções francesas de grande repercussão mundial.
No mais, Fatal é a encenação acertada de conflitos dolorosos, apoiada em desempenhos fantásticos dos atores principais. Kingsley já comprovou seu talento para papéis que exigem versatilidade, tendo sempre algo mais para apresentar em cena. Sua parceria com os outros veteranos do elenco, Clarkson e Hopper, é uma espécie de jogo cênico delicioso de se acompanhar, executado com veemência e afinco. Cruz, em uma de suas performances em um inglês um tanto quanto escorregadio, transparece um amadurecimento importante com atriz, num de seus trabalhos mais reconhecidamente benfeitos, somado a belas parcerias com Almodóvar. Desse filme em diante, ela ainda nos brindaria com incríveis personagens. Também sobra espaço para Peter Sarsgaard, ator pouco aproveitado na maioria dos filmes em que atua, mas que aqui tem um bom espaço como o filho de David, com quem mantém uma relação muito tumultuada. Juntos, esses aspectos se somam a uma linguagem seca, claramente vinda de alguém experiente, que já provou da amargura de certos momentos da vida.
Coixet dirige a adaptação procurando extrair a essência do texto de Roth, mas não se furta de construir uma obra com identidade própria, impedindo que ela seja classificada como um decalque do romance idealizado pelo escritor. A começar pelo título do filme, que será comentado mais adiante. Quanto ao protagonista, a sua vida de triunfo sobre o sexo feminino começa a ficar abalada depois que entra em cena a sensual Consuelo (Penélope Cruz), uma das alunas de David, a quem ele busca seduzir e encantar com seu palavrório rebuscado e e seu charme cinqüentão. A jovem é extremamente bonita, mas David está longe de querer uma relação duradoura com ela, deseja apenas que ela seja mais uma em sua lista de conquistas. Entretanto, a segurança com que o professor transita pelos seus encontros fugazes é abalada pelo ciúme doentio de Consuelo que começa a brotar em seu coração.
A partir dessa fase do filme, David vai percebendo a sua egolatria entrando em derrocada, um processo que se acelera à medida que ele percebe sua discrepância física em relação à amante. David toma ciência de todo o frescor jovem que Consuelo exala, enquanto enxerga a clara aproximação de sua decrepitude, o que também o leva a discussões cerebrais com seu grande amigo George (Dennis Hooper), um homem que o acompanha em suas jornadas de autoadulação e de busca pelo prazer. Entre um e outro set de jogos de tênis, eles dialogam sobre o caráter por vezes fastidioso de viver, bem como da dificuldade de relacionamento entre homens e mulheres, algo atemporal e irrestrito a espaços geográficos. Ele teme desesperadamente ser deixado por Consuelo, fato que acaba se consumando em pouco tempo, gerando desolação nele.
Mais tarde, é Consuelo quem voltará a procurá-lo, movida pela necessidade de pedir-lhe um favor do qual depende sua vida, e essa se mostra a grande reviravolta na trama. Sobre o personagem David Kepesh, é interessante comentar que ele é uma figura recorrente na literatura de Roth, já que apareceu em livros anteriores do autor: O seio (1973) e O professor do desejo (1977). Sua figura representa com propriedade o espírito egocêntrico do homem moderno, sempre afeito às manifestações de seu bel-prazer, ao qual quer satisfazer indiscriminadamente. A fonte de suas grandes preocupações, contudo, está justamente em uma personagem feminina, levando-o a não saber mais como agir para afirmar e reafirmar seu poderio sobre ela. Até mesmo a amante e amiga de longa data, Carolyn (Patricia Clarkson), que nunca lhe cobrou mais do que sexo, demonstra uma certa noção de seu estado, e procura entender o que se passa realmente com ele.
Fatal tem um título original que difere do que foi dado em português. A tradução literal para a nossa língua é “elegia”, um tipo de composição poética originário da tradição grega antiga, em que há um tema triste sobre o qual se discorre, geralmente o amor. A apropriação feita por Coixet é louvável, pois o filme evidencia exatamente essa acepção literária do vocábulo, sublinhada pelo pessimismo que atravessa a pseudo love story de David e Consuelo. O roteiro foi adaptado por Nicholas Meyer, e marca a primeira vez em que Coixet não filma um texto escrito por ela mesma, o que é um detalhe interessante, já que nos permite observar como ela se apropria de um roteiro alheio. Ao longo de sua carreira como diretora, ela entregou dramas fortes ao público, formando duas parcerias seguidas com Sarah Polley, com quem filmou Minha vida sem mim (Mi vida sin mi, 2003) e A vida secreta das palavras (The secret live of the words, 2006). Ambos os filmes são tratados profundos sobre seres humanos em buscas lancinantes por manifestações de afeto. É uma grande pena que o trabalho mais recente da cineasta jamais tenha chegado ao Brasil. Map of the sounds of Tokyo (2009) foi exibido apenas no festival de Cannes de 2009, sem qualquer chance no circuito comercial.
Outros elementos atestam a qualidade de Fatal como filme e como exercício de reflexão sobre a finitude dos sentimentos. Entre eles está o esmero visual oferecido pela direção de fotografia de Jean-Claude Larrieu, um esteta da imagem que ostenta numerosos títulos fotografados em sua carreira. No caso do filme criticado, a luz atravessa os personagens com discrição, revelando suas facetas pouco a pouco, e deixando no ar que existem muitas outras características que permanecerão implícitas sobre a personalidade daqueles homens e mulheres tão verossímeis. Larrieu brinca, de certa forma, com o aspecto chiaroscuro de David e Consuelo, que apresentam sempre comportamentos e visões antagônicas, mas também diletantes. Ele é colaborador habitual de Coixet, tendo fotografado todos os filmes da diretora citados até aqui, além de assinar a fotografia de filmes como Paris, te amo (Paris, je t’aime, 2006) e Baby love (Comme les autres, 2008), duas produções francesas de grande repercussão mundial.
No mais, Fatal é a encenação acertada de conflitos dolorosos, apoiada em desempenhos fantásticos dos atores principais. Kingsley já comprovou seu talento para papéis que exigem versatilidade, tendo sempre algo mais para apresentar em cena. Sua parceria com os outros veteranos do elenco, Clarkson e Hopper, é uma espécie de jogo cênico delicioso de se acompanhar, executado com veemência e afinco. Cruz, em uma de suas performances em um inglês um tanto quanto escorregadio, transparece um amadurecimento importante com atriz, num de seus trabalhos mais reconhecidamente benfeitos, somado a belas parcerias com Almodóvar. Desse filme em diante, ela ainda nos brindaria com incríveis personagens. Também sobra espaço para Peter Sarsgaard, ator pouco aproveitado na maioria dos filmes em que atua, mas que aqui tem um bom espaço como o filho de David, com quem mantém uma relação muito tumultuada. Juntos, esses aspectos se somam a uma linguagem seca, claramente vinda de alguém experiente, que já provou da amargura de certos momentos da vida.
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12 de mar. de 2011
As pequenas maldades do coração em Grandes esperanças
O diretor mexicano Alfonso Cuarón ofereceu uma delicada adaptação do romance de Charles Dickens quando filmou Grandes esperanças (Great expectations, 1997), um de seus primeiros trabalhos no cinema. O filme é um grande achado em termos de narrativa e elenco, e fala ao coração com uma trama emocionante e envolvente. Trata-se da história de vida de Finnegan Bell, um menino taciturno e retraído que vê nascer seu encanto por uma garotinha tão linda quanto cruel com seus sentimentos, a gélida Estella. Ela é sobrinha da excêntrica Nora Dinsmoor (Anne Bancroft), que a cria desde que seus pais faleceram. Uma vez tenho conhecido Estella, em uma ida com seu tio Joe (Chris Cooper) à casa da Nora, Paradiso Perduto, Finnegan, carinhosamente chamado Finn, não conseguirá mais desvencilhar totalmente a sua trajetória da dela.
Com essa premissa nas mãos, Cuarón assina a direção de uma tocante história de amor, com seus descaminhos e reviravoltas surpreendentes para mexer com a percepção do público ávido de contos afetivos. Grandes esperanças vai se revelando, logo em seus primeiros fotogramas, como um filme que versa sobre as pequenas maldades do coração, que se mostram em vários momentos, como quando insiste em amar mesmo diante da ausência de reciprocidade, ou de sua explicitação. É exatamente esse o mal de que sofre Finn ao longo de seu crescimento. Ele se apaixona por Estella, mas ela demonstra não corresponder a esse sentimento, embora torture o garoto com seus jogos de sedução desde a infância. E assim continua sendo depois que eles se tornam mais velhos, e passam a ser interpretados por Ethan Hawke e Gwyneth Paltrow.
A partir dessa fase do filme, fica ainda mais claro que Estella se diverte em brincar com os sentimentos de Finn, algo de que ele já tinha sido avisado quando a conhecera, pela boca da própria tia da jovem. Ela dissera que aquela menina partiria o seu coração, mas o aviso foi inútil diante do amor que brotou em Finn. Por conta desse amor, o protagonista passará sua vida às portas da esperança por conquistar definitivamente o coração da mulher que tirou seu sossego, e fazer do espectador um cúmplice incondicional de sua jornada de teor, por vezes, autocomiseratório. Finn descobre sua arte, e passa a desenvolvê-la, mas o destino – ou seria o acaso? – sempre se encarrega de aproximá-lo de Estella. Mesmo depois de se tornar um artista plástico reconhecido, ele guarda muito do ar de menino desamparado que ostentava no início da narrativa.
É indispensável comentar que a dupla de protagonistas é encarnada com muito talento pelos atores, que oferecem a densidade necessárias para seus papéis, marcados pela alta dramaticidade. Hawke é um ator que consegue exibir uma naturalidade admirável em cena, e comove a plateia com seu desalento pelo comportamento sempre inatingível de sua amada que, mais à frente, tornar-se-á sua amante. Ele vive Finn a partir da sua fase adolescente, e convence tanto como um rapaz de 16 ou 17 anos quanto como um jovem adulto na casa dos 30. Paltrow, por sua vez, esbanja fleuma e charme na pele de Estella, mexendo com o imaginário do público e perturbando Finn a cada novo encontro que se dá entre eles. Ela é uma atriz subestimada, que recebe uma hostilidade acima do aceitável por conta de seus trabalhos. Seu trabalho de composição demonstra esmero, e é fácil se apaixonar por ela, graças à maneira com que o roteiro encaminha os acontecimentos para serem observados sob a ótica do protagonista.
Grandes esperanças também conta com um ótimo elenco de coadjuvantes, que auxiliam no movimento progressivo da narrativa. Anne Bancroft está ótima como Nora, a tia extravagante de Estella, que se mostra como uma senhora um tanto insana, com suas danças ao som de boleros latino-americanos, como Besame mucho. Sua presença no filme se encerra com a passagem de tempo que mostra Finn e Estella adultos, mas é suficientemente marcante para que seja mencionada e elogiada. Depois desse, ela encarou poucos trabalhos, entre os quais está Doce trapaça (Heartbreakers, 2001), uma comédia inofensiva em que contracena com Sigourney Weaver. Outro que também está em ótima forma é Robert De Niro, que dá vida a um homem misterioso, de quem Finn se aproxima quando ainda é criança. Ele está saindo da cadeia, e pede ajuda ao protagonista para sair de onde está e reiniciar sua vida. Finn, com sua boa fé, estende a mão para aquele homem, mesmo sem conhecê-lo bem. Também é uma participação curta, mas significativa o bastante para ser recordada.
O filme não é a primeira adaptação do romance de Charles Dickens. Em 1946, David Lean levou o texto pela primeira vez ao celulóide, mantendo o nome original do protagonista, aproximando-se mais do livro. Seu trabalho lhe rendeu 5 indicações ao Oscar de 1948, entre elas a de melhor filme e melhor fotografia em preto e branco, na qual foi vitorioso. Na versão mais recente, dirigida por Cuarón, o filme ganhou m modernidade, com sua trama urbana e seus conflitos mais atualizados. Em vários aspectos, a versão de Cuarón se mostra como uma licença poética, que goza de uma certa autonomia em relação à obra original. Recentemente, noticiou-se que Mike Newell estaria interessado em levar novamente às telas o romance, como parte das comemorações pelo bicentenário de nascimento do escritor, um dos mais adaptados do cinema.
Em outras palavras, a versão de Grandes esperanças de 1997 é um conto moderno sobre as armadilhas do coração, e sobre como o ser humano aprende pouco com o desprezo de quem ama. É como se houvesse um movimento de constante antagonismo de interesses a atitudes entre os amantes, que nunca querem e demonstram a mesma coisa ao mesmo tempo. Estella, por mais que queira se entregar, comporta-se como uma rocha, colocando mel na boca de Finn para, depois, fazer pouco caso dele. O protagonista, por sua vez, cresce na vida, mas guarda muito do olhar dócil que tivera na infância, quando viu pela primeira vez aquela garotinha que despedaçaria o seu coração, e não esconde sua inquietude diante da figura daquela mulher exuberante. Com sua fragilidade, ele é o retrato arquetípico de homens sem acalento, cuja força parece estar atrelada ao contato com outra que o complete.
Com essa premissa nas mãos, Cuarón assina a direção de uma tocante história de amor, com seus descaminhos e reviravoltas surpreendentes para mexer com a percepção do público ávido de contos afetivos. Grandes esperanças vai se revelando, logo em seus primeiros fotogramas, como um filme que versa sobre as pequenas maldades do coração, que se mostram em vários momentos, como quando insiste em amar mesmo diante da ausência de reciprocidade, ou de sua explicitação. É exatamente esse o mal de que sofre Finn ao longo de seu crescimento. Ele se apaixona por Estella, mas ela demonstra não corresponder a esse sentimento, embora torture o garoto com seus jogos de sedução desde a infância. E assim continua sendo depois que eles se tornam mais velhos, e passam a ser interpretados por Ethan Hawke e Gwyneth Paltrow.
A partir dessa fase do filme, fica ainda mais claro que Estella se diverte em brincar com os sentimentos de Finn, algo de que ele já tinha sido avisado quando a conhecera, pela boca da própria tia da jovem. Ela dissera que aquela menina partiria o seu coração, mas o aviso foi inútil diante do amor que brotou em Finn. Por conta desse amor, o protagonista passará sua vida às portas da esperança por conquistar definitivamente o coração da mulher que tirou seu sossego, e fazer do espectador um cúmplice incondicional de sua jornada de teor, por vezes, autocomiseratório. Finn descobre sua arte, e passa a desenvolvê-la, mas o destino – ou seria o acaso? – sempre se encarrega de aproximá-lo de Estella. Mesmo depois de se tornar um artista plástico reconhecido, ele guarda muito do ar de menino desamparado que ostentava no início da narrativa.
É indispensável comentar que a dupla de protagonistas é encarnada com muito talento pelos atores, que oferecem a densidade necessárias para seus papéis, marcados pela alta dramaticidade. Hawke é um ator que consegue exibir uma naturalidade admirável em cena, e comove a plateia com seu desalento pelo comportamento sempre inatingível de sua amada que, mais à frente, tornar-se-á sua amante. Ele vive Finn a partir da sua fase adolescente, e convence tanto como um rapaz de 16 ou 17 anos quanto como um jovem adulto na casa dos 30. Paltrow, por sua vez, esbanja fleuma e charme na pele de Estella, mexendo com o imaginário do público e perturbando Finn a cada novo encontro que se dá entre eles. Ela é uma atriz subestimada, que recebe uma hostilidade acima do aceitável por conta de seus trabalhos. Seu trabalho de composição demonstra esmero, e é fácil se apaixonar por ela, graças à maneira com que o roteiro encaminha os acontecimentos para serem observados sob a ótica do protagonista.
Grandes esperanças também conta com um ótimo elenco de coadjuvantes, que auxiliam no movimento progressivo da narrativa. Anne Bancroft está ótima como Nora, a tia extravagante de Estella, que se mostra como uma senhora um tanto insana, com suas danças ao som de boleros latino-americanos, como Besame mucho. Sua presença no filme se encerra com a passagem de tempo que mostra Finn e Estella adultos, mas é suficientemente marcante para que seja mencionada e elogiada. Depois desse, ela encarou poucos trabalhos, entre os quais está Doce trapaça (Heartbreakers, 2001), uma comédia inofensiva em que contracena com Sigourney Weaver. Outro que também está em ótima forma é Robert De Niro, que dá vida a um homem misterioso, de quem Finn se aproxima quando ainda é criança. Ele está saindo da cadeia, e pede ajuda ao protagonista para sair de onde está e reiniciar sua vida. Finn, com sua boa fé, estende a mão para aquele homem, mesmo sem conhecê-lo bem. Também é uma participação curta, mas significativa o bastante para ser recordada.
O filme não é a primeira adaptação do romance de Charles Dickens. Em 1946, David Lean levou o texto pela primeira vez ao celulóide, mantendo o nome original do protagonista, aproximando-se mais do livro. Seu trabalho lhe rendeu 5 indicações ao Oscar de 1948, entre elas a de melhor filme e melhor fotografia em preto e branco, na qual foi vitorioso. Na versão mais recente, dirigida por Cuarón, o filme ganhou m modernidade, com sua trama urbana e seus conflitos mais atualizados. Em vários aspectos, a versão de Cuarón se mostra como uma licença poética, que goza de uma certa autonomia em relação à obra original. Recentemente, noticiou-se que Mike Newell estaria interessado em levar novamente às telas o romance, como parte das comemorações pelo bicentenário de nascimento do escritor, um dos mais adaptados do cinema.
Em outras palavras, a versão de Grandes esperanças de 1997 é um conto moderno sobre as armadilhas do coração, e sobre como o ser humano aprende pouco com o desprezo de quem ama. É como se houvesse um movimento de constante antagonismo de interesses a atitudes entre os amantes, que nunca querem e demonstram a mesma coisa ao mesmo tempo. Estella, por mais que queira se entregar, comporta-se como uma rocha, colocando mel na boca de Finn para, depois, fazer pouco caso dele. O protagonista, por sua vez, cresce na vida, mas guarda muito do olhar dócil que tivera na infância, quando viu pela primeira vez aquela garotinha que despedaçaria o seu coração, e não esconde sua inquietude diante da figura daquela mulher exuberante. Com sua fragilidade, ele é o retrato arquetípico de homens sem acalento, cuja força parece estar atrelada ao contato com outra que o complete.
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9 de mar. de 2011
Cisne negro, uma imersão no profundo de uma mente aniquilada
Habituado a dirigir filmes que apresentam personagens em situações-limite, Darren Aronofsky dá mais uma prova de que seu cinema pode ser faiscante com Cisne negro (Black swan, 2010). O quinto filme do realizador estadunidense, natural do Brooklyn, é um mergulho profundo e intenso na jornada de enlouquecimento progressivo vivenciada pela bailarina Nina Sayers (Natalie Portman). Ela é o retrato do perfeccionismo, buscando incessantemente provar para si mesma e para todos que a cercam que é capaz de interpretar qualquer papel com sua dança. O filme começa com os ensaios constantes de Nina, e logo o espectador percebe o quão desgastante e férrea é toda aquela ambiência de jovens em busca de aperfeiçoamento. Esses primeiros minutos da narrativa são dotados de uma repetitividade que soa proposital, para que sintamos o cotidiano da protagonista totalmente voltado para sua arte.
Aos poucos, vamos conhecendo a situação-limite em que Nina se encontra: ela faz parte do corpo de baile de uma respeitada companhia de dança, e está se preparando para encenar o famoso balé O lago dos cisnes, cujos personagens principais são o Cisne Branco, o Cisne Negro e Odile, uma ardilosa feiticeira. Nina já demonstrou para seu coreógrafo Thomas (Vincent Cassel) que é capaz de exalar toda a candura e suavidade necessárias para encarnar o Cisne Branco, mas ela quer mais. A grande luta da bailarina é por provar que também pode viver o lado negro da personalidade do Cisne Branco, e interpretar o tal Cisne Negro presente no título do filme. Mas o principal argumento apresentado por Thomas é de que Nina não demonstra com sua dança a sensualidade e a ousadia que são compatíveis com o personagem que ela deseja.
Está iniciada a odisseia particular de Nina, que fará de tudo para provar que pode ter esse personagens nas mãos, mesmo que tudo ao seu redor aponte negativamente para seu êxito na empreitada. Por meio dessa premissa, Aronofsky oferece um pouco mais do seu olhar para pessoas que exageram, de algum modo, em algum aspecto de sua vidas. Nina é o retrato da busca pela autosuperação, e canaliza todas as suas forças para uma rotina extenuante de ensaios e aperfeiçoamento de sua técnica. Aí reside um outro detalhe que compromete sua escolha como intérprete do Cisne Negro: Nina é excessivamente técnica, e não se deixa levar pela dança e pelo caráter sensual e misterioso que cabe ao personagem, na concepção de Thomas. Mas, a exemplo de um Randy “The Ram” Robinson (Mickey Rourke) de O lutador (The wrestler, 2008), ela não mede esforços para apresentar-se apta para abocanhar o papel.
Cisne negro é classificado, por conta de sua narrativa densa e intimista, como um suspense. Porém é, antes de tudo, um drama fortíssimo sobre os limites da mente humana diante da vontade imperiosa de se realizar em uma área da vida. Nina investe pesado em suas tentativas de ser a melhor, e isso resulta em um aprisionamento de sua mente em uma lenta caminhada de ensimesmamento com um ideal. O aspecto espamódico da narrativa é acentuado pela fotografia granulosa de Matthew Libatique, que dá um tratamento em tons acinzentados à imagem, dimensionando o público para o universo acachapante da bailarina. Essa estética de sobressalto evidencia a filiação do longa-metragem a exemplares do chamado cinema de terror psicológico, do qual é exemplo prototípico Repulsa ao sexo (Repulsion, 1965), dirigido por Roman Polanski e protagonizado por Catherine Deneuve, reconhecidamente talentosa na pele de uma mulher horrorizada diante de qualquer experiência de cunho sexual.
Um dos sustentáculos de Cisne negro, aliás, é a atuação hipnótica de Natalie Portman. Poucas vezes a atriz pareceu tão à vontade em um papel, bem como se apresentou madura e espetacularmente sensual em suas feições pseudoangelicais. Apenas em Closer – Perto demais (Closer, 2004) ela ofereceu um desempenho tão despudorado, quando deu vida à sexy Alice, uma stripper que tirou o chão dos personagens de Jude Law e de Clive Owen, seduzindo este último com sua dança. Aqui, ela se utiliza da mesma forma de expressão, e também tem a necessidade de ser sedutora, mas acaba sendo seduzida por Thomas, em uma sequência na qual brinca com a libido adormecida de Nina, podendo levar também o público ao desconforto experimentado pela protagonista. Certamente, é possível e necessário recorrer ao adjetivo lugar-comum “visceral” para classificar a interpretação da atriz, que se entrega a cada minuto de vida de sua personagem para oferecer um desempenho marcado pela completude de talento. A Academia exageradamente, entretanto, entendeu o filme como sendo de Portman, o que resultou em uma única premiação para o filme, que foi a estatueta de melhor atriz. Um belo escorregão que abriu espaço para filmes de calibre muito inferior saírem premiados na noite de 27 de fevereiro de 2010.
Outro que oferece um desempenho notável é Vincent Cassel. Apesar de muitos conceberem sua atuação como canastrona, o ator apresenta muitas qualidades na pele de Thomas, que cumpre com louvor a função de ser um dos algozes da protagonista. É certo que a mente de Nina é sua maior fonte de tormento, mas o coreógrafo da companhia também executa pequenas crueldades com a personagem, levando-a a entrar em declive mais rápido no que tange à sua perda de sanidade. Mesmo soando um pouco desconfortável por atuar em língua inglesa, o ator é certeiro na sua caracterização de homem sedutor e, ao mesmo tempo, ordinário. Seus trabalhos de composição, no entanto, costumam ser subestimados. E ele já chegou até mesmo a se arriscar como lusofalante, quando atuou em À deriva (idem, 2009), sendo dirigido com traquejo por Heitor Dhalia.
O elenco de coadjuvantes é completado pela presença vibrante de Barbara Hershey, impecável na pele de Erica, a mãe de Nina, que foi bailarina como ela, e que mantém uma relação de estranho afeto com a filha, sendo, ao mesmo tempo, sua companheira e sua grande censora. Hershey envelheceu muito mal, e para comprovar o fato basta dar uma olhada para ela em Hannah e suas irmãs (Hannah and her sisters, 1986), no qual sua estampa era muito mais bela a atraente. A construção de sua personagem em Cisne negro permite perceber que ela impede a filha de crescer, e ajuda a manter a porção pueril da personalidade de Nina, além de competir com ela de forma velada, como quem sente recalque por não ter feito sucesso na mesma profissão no passado. Ainda surge na tela a imagem da beleza e do desassossego de Lilly, vivida pela ótima Mila Kunis, que recebeu uma indicação ao Oscar de melhor atriz coadjuvante pelo papel, perdida para Melissa Leo, que concorria por O vencedor (The fighter, 2010). Ela é uma espécie de alter ego mais sombrio de Nina, que consegue imprimir a perfídia requerida pelo Cisne Negro com seu balé faiscante e provocador.
Paulatinamente, a protagonista vai sendo enredada pela atmosfera de sedução que acompanha Lilly, mas o roteiro de Andres Heinz e Mark Heyman, com base em história de Andres Heinz deixa entrever que boa parte do que ocorre entre as duas é fruto da imaginação de Nina, que perde o senso de realidade em sua procura por ser a melhor e a escolhida por Thomas. Winona Ryder é outra que oferece um desempenho memorável como Beth, a bailarina em final de carreira que sai de cena para dar lugar a Nina, e que lhe mostra, como uma espécie de consciência, que sua carreira seguirá para o mesmo final caso ela estenda seu envolvimento com Thomas para além da esfera profissional. Em uma das poucas cenas na qual a personagem aparece, ela ilustra assustadoramente a confusão mental de Nina, furando os olhos e dizendo para si mesma que não é perfeita e nunca será. Paira a dúvida: ela fez ou não aquilo?
Esses e outros vários aspectos contribuem para que Cisne negro se constitua como uma obra singular, acresentando mais uma pérola à carreira de um cineasta que, a exemplo de sua protagonista, está em busca da autossuperação. Uma busca que resulta em uma jovem de mente aniquilada. O filme é um dos melhores de seu tempo, usando a seu favor os elementos técnicos para ambientar o público no processo de bestialização pelo qual Nina vai passando, culminando em uma sequência extasiante na qual ela, de posse de seu tão sonhado personagem, chega propriamente às raias da loucura e encena o famigerado balé, com a intensidade de uma estrela que deixou sua faceta mais obscura aflorar, a fim de entrar no personagem, quase de modo literal.
Aos poucos, vamos conhecendo a situação-limite em que Nina se encontra: ela faz parte do corpo de baile de uma respeitada companhia de dança, e está se preparando para encenar o famoso balé O lago dos cisnes, cujos personagens principais são o Cisne Branco, o Cisne Negro e Odile, uma ardilosa feiticeira. Nina já demonstrou para seu coreógrafo Thomas (Vincent Cassel) que é capaz de exalar toda a candura e suavidade necessárias para encarnar o Cisne Branco, mas ela quer mais. A grande luta da bailarina é por provar que também pode viver o lado negro da personalidade do Cisne Branco, e interpretar o tal Cisne Negro presente no título do filme. Mas o principal argumento apresentado por Thomas é de que Nina não demonstra com sua dança a sensualidade e a ousadia que são compatíveis com o personagem que ela deseja.
Está iniciada a odisseia particular de Nina, que fará de tudo para provar que pode ter esse personagens nas mãos, mesmo que tudo ao seu redor aponte negativamente para seu êxito na empreitada. Por meio dessa premissa, Aronofsky oferece um pouco mais do seu olhar para pessoas que exageram, de algum modo, em algum aspecto de sua vidas. Nina é o retrato da busca pela autosuperação, e canaliza todas as suas forças para uma rotina extenuante de ensaios e aperfeiçoamento de sua técnica. Aí reside um outro detalhe que compromete sua escolha como intérprete do Cisne Negro: Nina é excessivamente técnica, e não se deixa levar pela dança e pelo caráter sensual e misterioso que cabe ao personagem, na concepção de Thomas. Mas, a exemplo de um Randy “The Ram” Robinson (Mickey Rourke) de O lutador (The wrestler, 2008), ela não mede esforços para apresentar-se apta para abocanhar o papel.
Cisne negro é classificado, por conta de sua narrativa densa e intimista, como um suspense. Porém é, antes de tudo, um drama fortíssimo sobre os limites da mente humana diante da vontade imperiosa de se realizar em uma área da vida. Nina investe pesado em suas tentativas de ser a melhor, e isso resulta em um aprisionamento de sua mente em uma lenta caminhada de ensimesmamento com um ideal. O aspecto espamódico da narrativa é acentuado pela fotografia granulosa de Matthew Libatique, que dá um tratamento em tons acinzentados à imagem, dimensionando o público para o universo acachapante da bailarina. Essa estética de sobressalto evidencia a filiação do longa-metragem a exemplares do chamado cinema de terror psicológico, do qual é exemplo prototípico Repulsa ao sexo (Repulsion, 1965), dirigido por Roman Polanski e protagonizado por Catherine Deneuve, reconhecidamente talentosa na pele de uma mulher horrorizada diante de qualquer experiência de cunho sexual.
Um dos sustentáculos de Cisne negro, aliás, é a atuação hipnótica de Natalie Portman. Poucas vezes a atriz pareceu tão à vontade em um papel, bem como se apresentou madura e espetacularmente sensual em suas feições pseudoangelicais. Apenas em Closer – Perto demais (Closer, 2004) ela ofereceu um desempenho tão despudorado, quando deu vida à sexy Alice, uma stripper que tirou o chão dos personagens de Jude Law e de Clive Owen, seduzindo este último com sua dança. Aqui, ela se utiliza da mesma forma de expressão, e também tem a necessidade de ser sedutora, mas acaba sendo seduzida por Thomas, em uma sequência na qual brinca com a libido adormecida de Nina, podendo levar também o público ao desconforto experimentado pela protagonista. Certamente, é possível e necessário recorrer ao adjetivo lugar-comum “visceral” para classificar a interpretação da atriz, que se entrega a cada minuto de vida de sua personagem para oferecer um desempenho marcado pela completude de talento. A Academia exageradamente, entretanto, entendeu o filme como sendo de Portman, o que resultou em uma única premiação para o filme, que foi a estatueta de melhor atriz. Um belo escorregão que abriu espaço para filmes de calibre muito inferior saírem premiados na noite de 27 de fevereiro de 2010.
Outro que oferece um desempenho notável é Vincent Cassel. Apesar de muitos conceberem sua atuação como canastrona, o ator apresenta muitas qualidades na pele de Thomas, que cumpre com louvor a função de ser um dos algozes da protagonista. É certo que a mente de Nina é sua maior fonte de tormento, mas o coreógrafo da companhia também executa pequenas crueldades com a personagem, levando-a a entrar em declive mais rápido no que tange à sua perda de sanidade. Mesmo soando um pouco desconfortável por atuar em língua inglesa, o ator é certeiro na sua caracterização de homem sedutor e, ao mesmo tempo, ordinário. Seus trabalhos de composição, no entanto, costumam ser subestimados. E ele já chegou até mesmo a se arriscar como lusofalante, quando atuou em À deriva (idem, 2009), sendo dirigido com traquejo por Heitor Dhalia.
O elenco de coadjuvantes é completado pela presença vibrante de Barbara Hershey, impecável na pele de Erica, a mãe de Nina, que foi bailarina como ela, e que mantém uma relação de estranho afeto com a filha, sendo, ao mesmo tempo, sua companheira e sua grande censora. Hershey envelheceu muito mal, e para comprovar o fato basta dar uma olhada para ela em Hannah e suas irmãs (Hannah and her sisters, 1986), no qual sua estampa era muito mais bela a atraente. A construção de sua personagem em Cisne negro permite perceber que ela impede a filha de crescer, e ajuda a manter a porção pueril da personalidade de Nina, além de competir com ela de forma velada, como quem sente recalque por não ter feito sucesso na mesma profissão no passado. Ainda surge na tela a imagem da beleza e do desassossego de Lilly, vivida pela ótima Mila Kunis, que recebeu uma indicação ao Oscar de melhor atriz coadjuvante pelo papel, perdida para Melissa Leo, que concorria por O vencedor (The fighter, 2010). Ela é uma espécie de alter ego mais sombrio de Nina, que consegue imprimir a perfídia requerida pelo Cisne Negro com seu balé faiscante e provocador.
Paulatinamente, a protagonista vai sendo enredada pela atmosfera de sedução que acompanha Lilly, mas o roteiro de Andres Heinz e Mark Heyman, com base em história de Andres Heinz deixa entrever que boa parte do que ocorre entre as duas é fruto da imaginação de Nina, que perde o senso de realidade em sua procura por ser a melhor e a escolhida por Thomas. Winona Ryder é outra que oferece um desempenho memorável como Beth, a bailarina em final de carreira que sai de cena para dar lugar a Nina, e que lhe mostra, como uma espécie de consciência, que sua carreira seguirá para o mesmo final caso ela estenda seu envolvimento com Thomas para além da esfera profissional. Em uma das poucas cenas na qual a personagem aparece, ela ilustra assustadoramente a confusão mental de Nina, furando os olhos e dizendo para si mesma que não é perfeita e nunca será. Paira a dúvida: ela fez ou não aquilo?
Esses e outros vários aspectos contribuem para que Cisne negro se constitua como uma obra singular, acresentando mais uma pérola à carreira de um cineasta que, a exemplo de sua protagonista, está em busca da autossuperação. Uma busca que resulta em uma jovem de mente aniquilada. O filme é um dos melhores de seu tempo, usando a seu favor os elementos técnicos para ambientar o público no processo de bestialização pelo qual Nina vai passando, culminando em uma sequência extasiante na qual ela, de posse de seu tão sonhado personagem, chega propriamente às raias da loucura e encena o famigerado balé, com a intensidade de uma estrela que deixou sua faceta mais obscura aflorar, a fim de entrar no personagem, quase de modo literal.
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Cinema
5 de mar. de 2011
Os devaneios oníricos bem arquitetados de A origem
Incensado como um dos filmes mais inventivos de 2010, A origem (Inception, 2010) é um trabalho de categoria engendrado por Christopher Nolan. O mesmo diretor que foi responsabilizado pela retomada do fôlego de Batman retornou às telas com uma trama original e calcada em inúmeras estripulias narrativas, que exigem do público atenção redobrada a cada instante de sua duração. Seu protagonista é Don Cobb, interpretado por um inspirado Leonardo DiCaprio, que vem pavimentando uma carreira de talento a cada filme que estrela, especificamente nos últimos 5 anos. Na pele de um ladrão de sonhos, ele é puro vigor dramático, e uma das principais razões para se acompanhar o filme em questão.
O trabalho de Cobb é invadir o subconsciente alheio e roubar sonhos, daí seu epíteto de ladrão. Com essa função nada trivial, ele teve de desenvolver interessantes mecanismos que lhe permitem se infiltrar com propriedade na mente de pessoas que podem oferecer alguma ameaça a quem o contratou para executar a tarefa. Essa premissa radical é o grande chamariz de A origem, que é, antes de tudo, uma ficção científica, mas também tem muitos elementos dramáticos, que talvez ajudem a entender suas indicações ao Oscar, fato que será comentado mais adiante. A sinopse do filme se completa pelo seguinte dado: Cobb recebe uma nova missão pela frente, que é oposta às que ele sempre cumpre. Ele tem agora de implantar uma ideia na mente de um homem importante, daí a tal “inserção” presente no título original da obra.
Com a tarefa de introduzir um pensamento nas mãos, Cobb acaba conhecendo e se aproximando de pessoas que o auxiliarão no trabalho. Uma delas é Ariadne (Ellen Page), uma jovem talentosa para arquitetar construções de que Cobb necessita para montar um arcabouço de imagens perfeito para o êxito de sua função. Ela exerce, de certa forma, a curiosidade e os questionamentos do espectador, que se pergunta o tempo todo como serão alcançados os objetivos do protagonista. A origem tem a seu favor uma direção eficiente de Nolan, que consegue hipnotizar o público com um arsenal de imagens bem filmadas, simplesmente extáticas. O filme é um daqueles arrasa-quarteirões claros, que cumpre com louvor seu papel de entretenimento legítimo. Mas cabe reforçar que o longa-metragem não subestima a inteligência de quem está assistindo a ele, como é quase de praxe com outras obras de sua estirpe. Na verdade, a estima bastante, daí a necessidade de se estar constantemente atento aos desdobramentos de sua trama.
Entretanto, um bom filme não se faz somente com um bom roteiro ou um bom enredo. É preciso que outros ingredientes entrem na “receita”, no sentido mais artesanal que esse vocábulo pode carregar, e A origem o faz. Leonardo DiCaprio, por exemplo, é um dos grandes trunfos que Nolan tem nas suas mãos. Ele exibe uma notável capacidade de injetar força ao seu personagem, que está presente em praticamente todas as cenas. Seu Cobb demonstra um misto de desalento com desespero gerada pela ausência precoce de sua mulher, Mal (Marion Cotillard), que, desde o início do filme, já está morta. Como fica nítido para quem assiste à história, ela é o grande obstáculo que Cobb tem de superar para não ser soterrado em meio às suas próprias armadilhas cerebrais. Cotillard, por sua vez, foi devidamente abraçada pela indústria hollywoodiana, e faz aparições fugidias em meio à narrativa frenética de A origem. Ela prova, com esse papel, que consegue transitar com facilidade entre o cinema mais comercial e aquele mais comprometido com valores artísticos estritos, vide sua atuação soberba em Piaf – Um hino ao amor (La môme, 2007).
Outro que transpira talento é o franzino Joseph-Gordon Levitt. Depois de encarnar um protagonista que se tornou o sonho de consumo de várias mulher em (500) dias com ela ((500) days of Summer, 2009), ele dá vida a Arthur, mais um dos membros da equipe que auxilia o protagonista em sua empreitada pelo universo onírico. Levitt é um jovem talento muito bem escolhido por Nolan para seu personagem, e oferece segurança vivendo mais um homem inesperado para sua constituição física, o que corrobora a tese de que a aparência não deve ser o único critério quando se pensa em um ator para um papel. Sua presença em cena nos faz enxergar que o elenco esbanja coesão, o que é outro aspecto fundamental para o sucesso do filme.
A origem conquistou os espectadores e chamou a atenção da crítica com sua quase ausência de convencionalismo. A Academia soube dar valor ao trabalho de Nolan, dando-lhe as indicações de melhor filme, melhor roteiro original, melhores efeitos visuais (claro!) e algumas outras. Para desalento de seus entusiastas, que não são poucos, o filme perdeu na principal categoria em que concorria, já que um certo O discurso do rei (The king’s speech, 2010) papou o prêmio. Na noite do Oscar, A origem acabou premiado apenas nas categorias técnicas, algo que serviu, de algum modo, como um recado dos votantes: é um filme muito mais visual que propriamente pleno de conteúdo. Fãs mais xiitas podem discordar veementemente, mas a suposta afirmação tem lá seu fundo de verdade.
Ao longo de suas mais de duas horas de projeção, o filme inova, inventa, enreda, surpreende, confunde, explica, mas chega perto de seu final acompanhado de uma incômoda sensação de enfado e de confusão mental. Afinal, a impressão que se tem é de que uma ideia genial escrita sobre o papel não chegou a ser um filme igualmente sensacional. Apresentar o sonho como uma espécie de castelo de cartas que se vai desmoronando à medida que o sono vai acabando é realmente interessante, mas não exatamente original. Brincar com a posição limítrofe entre sonho e realidade em que vivemos também é válido, digno de ser acolhido, mas essa premissa não caminha a contento para seu desfecho. Com isso, A origem exibe sua última sequência deixando um tipo de vácuo narrativo que funde a consciência do espectador, levando-o a questionar sobre seu final abrupto. É bem verdade que essa opinião é pertencente a uma minoria que acompanhou o filme, mas é exatamente esse o dimensionamento em que um espectador sedento de um roteiro mais bem-amarrado se insere. Por fim, resta afirmar que A origem é um filme com roteiro e direção, mas que vale, como um todo, apenas pela arquitetura imagética.
O trabalho de Cobb é invadir o subconsciente alheio e roubar sonhos, daí seu epíteto de ladrão. Com essa função nada trivial, ele teve de desenvolver interessantes mecanismos que lhe permitem se infiltrar com propriedade na mente de pessoas que podem oferecer alguma ameaça a quem o contratou para executar a tarefa. Essa premissa radical é o grande chamariz de A origem, que é, antes de tudo, uma ficção científica, mas também tem muitos elementos dramáticos, que talvez ajudem a entender suas indicações ao Oscar, fato que será comentado mais adiante. A sinopse do filme se completa pelo seguinte dado: Cobb recebe uma nova missão pela frente, que é oposta às que ele sempre cumpre. Ele tem agora de implantar uma ideia na mente de um homem importante, daí a tal “inserção” presente no título original da obra.
Com a tarefa de introduzir um pensamento nas mãos, Cobb acaba conhecendo e se aproximando de pessoas que o auxiliarão no trabalho. Uma delas é Ariadne (Ellen Page), uma jovem talentosa para arquitetar construções de que Cobb necessita para montar um arcabouço de imagens perfeito para o êxito de sua função. Ela exerce, de certa forma, a curiosidade e os questionamentos do espectador, que se pergunta o tempo todo como serão alcançados os objetivos do protagonista. A origem tem a seu favor uma direção eficiente de Nolan, que consegue hipnotizar o público com um arsenal de imagens bem filmadas, simplesmente extáticas. O filme é um daqueles arrasa-quarteirões claros, que cumpre com louvor seu papel de entretenimento legítimo. Mas cabe reforçar que o longa-metragem não subestima a inteligência de quem está assistindo a ele, como é quase de praxe com outras obras de sua estirpe. Na verdade, a estima bastante, daí a necessidade de se estar constantemente atento aos desdobramentos de sua trama.
Entretanto, um bom filme não se faz somente com um bom roteiro ou um bom enredo. É preciso que outros ingredientes entrem na “receita”, no sentido mais artesanal que esse vocábulo pode carregar, e A origem o faz. Leonardo DiCaprio, por exemplo, é um dos grandes trunfos que Nolan tem nas suas mãos. Ele exibe uma notável capacidade de injetar força ao seu personagem, que está presente em praticamente todas as cenas. Seu Cobb demonstra um misto de desalento com desespero gerada pela ausência precoce de sua mulher, Mal (Marion Cotillard), que, desde o início do filme, já está morta. Como fica nítido para quem assiste à história, ela é o grande obstáculo que Cobb tem de superar para não ser soterrado em meio às suas próprias armadilhas cerebrais. Cotillard, por sua vez, foi devidamente abraçada pela indústria hollywoodiana, e faz aparições fugidias em meio à narrativa frenética de A origem. Ela prova, com esse papel, que consegue transitar com facilidade entre o cinema mais comercial e aquele mais comprometido com valores artísticos estritos, vide sua atuação soberba em Piaf – Um hino ao amor (La môme, 2007).
Outro que transpira talento é o franzino Joseph-Gordon Levitt. Depois de encarnar um protagonista que se tornou o sonho de consumo de várias mulher em (500) dias com ela ((500) days of Summer, 2009), ele dá vida a Arthur, mais um dos membros da equipe que auxilia o protagonista em sua empreitada pelo universo onírico. Levitt é um jovem talento muito bem escolhido por Nolan para seu personagem, e oferece segurança vivendo mais um homem inesperado para sua constituição física, o que corrobora a tese de que a aparência não deve ser o único critério quando se pensa em um ator para um papel. Sua presença em cena nos faz enxergar que o elenco esbanja coesão, o que é outro aspecto fundamental para o sucesso do filme.
A origem conquistou os espectadores e chamou a atenção da crítica com sua quase ausência de convencionalismo. A Academia soube dar valor ao trabalho de Nolan, dando-lhe as indicações de melhor filme, melhor roteiro original, melhores efeitos visuais (claro!) e algumas outras. Para desalento de seus entusiastas, que não são poucos, o filme perdeu na principal categoria em que concorria, já que um certo O discurso do rei (The king’s speech, 2010) papou o prêmio. Na noite do Oscar, A origem acabou premiado apenas nas categorias técnicas, algo que serviu, de algum modo, como um recado dos votantes: é um filme muito mais visual que propriamente pleno de conteúdo. Fãs mais xiitas podem discordar veementemente, mas a suposta afirmação tem lá seu fundo de verdade.
Ao longo de suas mais de duas horas de projeção, o filme inova, inventa, enreda, surpreende, confunde, explica, mas chega perto de seu final acompanhado de uma incômoda sensação de enfado e de confusão mental. Afinal, a impressão que se tem é de que uma ideia genial escrita sobre o papel não chegou a ser um filme igualmente sensacional. Apresentar o sonho como uma espécie de castelo de cartas que se vai desmoronando à medida que o sono vai acabando é realmente interessante, mas não exatamente original. Brincar com a posição limítrofe entre sonho e realidade em que vivemos também é válido, digno de ser acolhido, mas essa premissa não caminha a contento para seu desfecho. Com isso, A origem exibe sua última sequência deixando um tipo de vácuo narrativo que funde a consciência do espectador, levando-o a questionar sobre seu final abrupto. É bem verdade que essa opinião é pertencente a uma minoria que acompanhou o filme, mas é exatamente esse o dimensionamento em que um espectador sedento de um roteiro mais bem-amarrado se insere. Por fim, resta afirmar que A origem é um filme com roteiro e direção, mas que vale, como um todo, apenas pela arquitetura imagética.
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Cinema
3 de mar. de 2011
Magnólia, uma jornada de vácuos afetivos entrecruzados
Paul Thomas Anderson surgiu fazendo muito barulho com Boogie nights – Prazer sem limites (Boogie nights, 1997), em que adentrava os bastidores da indústria pornográfica para investigar a sua ascensão e a sua queda. Dois anos depois, entregou o segundo exemplar de sua filmografia, o monumental Magnólia (Magnolia, 1999), em que refinou um estilo que apresentara em se début cinematográfico: o cruzamento de tramas paralelas. Por meio desse segundo trabalho, Anderson apresenta uma filiação direta a Robert Altman, observação feita pela crítica tão logo o filme chegou às salas de exibição. Trata-se de uma narrativa múltipla cujo grande elo são as vivências de personagens assinalados pela carência afetiva.
Nessa espécie de tratado da condição humana, o fio condutor é a história de Jimmy Gator (Philip Baker Hall), apresentador de O que as crianças sabem?, um programa televisivo de auditório que revela crianças-prodígio através de perguntas e respostas. O produtor do programa é Earl Partridge (Jason Robards). Em estágio terminal de câncer, ele tem a companhia constante de Phil Parma (Philip Seymour Hoffman), seu enfermeiro particular, e deseja reaver o contato com seu filho, o egocêntrico Frank (Tom Cruise), um guru de autoajuda masculino que também tem seu programa na televisão. Através dessa trama, todas as outras serão desenroladas, compondo um mosaico riquíssimo da fauna de Los Angeles, e amplificando a força de Magnólia como um petardo dramático calcado em um roteiro muito bem alinhavado em em interpretações brilhantes.
A direção de Thomas Anderson permite que todo o elenco brilhe, cada ator a seu tempo e a seu modo, o que contribui para fazer do filme uma chance de ouro de ver bons nomes em cena. Ele repete aqui sua parceria com Philip Seymour Hoffman, com quem havia trabalhado em seu primeiro filme, assim como volta a trabalhar com Julianne Moore. Aqui, ela é Linda, a mulher de Earl, que se casou com ele por interesse, mas que acabou por descobrir que agora sente amor verdadeiro pelo marido. Sua performance irrepreensível como uma pessoa frágil que chega ao desalento diante de uma descoberta em meio a uma circunstância adversa é magnetizadora da atenção do espectador que coloca seus olhos nela. Moore é daquelas atrizes que inundam a cena em que está presente, catalisando o foco para seus desempenhos nunca menos que ótimos.
Tom Cruise, por sua vez, é um poço de altivez de espírito e de desorientação latente. Aprovado com louvor na escola do abandono, ele canaliza seu descontentamento com sua condição lançando conselhos descarados para os machos interessados de alcançar êxito em suas empreitadas amorosas. O ator comprova sua capacidade de surpreender e ir além do papel de galã com seu Frank. É certo que o papel também exigiu parte do tônus muscular do ator, mas sua fina estampa é um acessório diante da carpintaria dramática cuidadosamente sinalizada pelo roteiro do próprio diretor. Seu desempenho foi merecidamente reconhecido com uma indicação ao Oscar de melhor ator coadjuvante na 72ª edição da cerimônia, prêmio que foi para as mãos de Michael Caine, que concorria por Regras da vida (The cider house rules, 1999). Cruise oferece uma mistura de carência recolhida com ferocidade explícita que tornam seu personagem distante de uma composição maniqueísta. Vale lembrar que, no mesmo ano, ele foi dirigido por Stanley Kubrick, com quem rodou De olhos bem fechados (Eyes wild shut, 1999), derradeiro filme do, por vezes, superestimado diretor, em que teve seu talento como intérprete posto à prova.
Essa crítica pretende-se centrifugadora no que tange a uma descrição taxonômica dos numerosos personagens que desfilam ao longo da narrativa de Magnólia, bem como de suas intrincadas tramas. Mas cabe destacar o trabalho de atores que dão peso dramático a quem interpretam. Além de Cruise e Moore, outro que oferece uma atuação brilhante é William H. Macy, que encarna Donnie Smith, um homem amargurado que, quando criança, participou do programa de Earl, e se mostrou inteligentíssimo, batendo recorde entre os prodígios que ali estiveram. Ele tornou-se um adulto fracassado, e persegue a felicidade sem saber exatamente onde ela está, caminhando a esmo pela vida e vendo sua situação se complicar mais ainda depois de sua demissão. Está sempre de bar em bar afogando suas mágoas, e é a oportunidade de Macy, um ator pouco conhecido do grande público, demonstrar sua enorme capacidade como intérprete.
Para dar conta de tantas subtramas que se alternam e se entrecruzam, Magnólia alcança mais de três horas de duração, colocando o filme em posição de emparelhamento com calhamaços do naipe de Dogville (idem, 2003). Essa longa duração permite classificá-lo como um poderoso tratado sobre a falta de afeto dos tempos modernos. Uma falta que é repelida, mas que se encontra a cada vez que os seres humanos dão sua agressividade em vez do seu carinho, empoeirando os corações de um contato direto com a gentileza e a docilidade. A começar por Earl, os personagens desse filme estão em busca de um contato para a demonstração de seus afetos recolhidos. Thomas Anderson nos envolve nessa atmosfera de desalento, apresentando uma Los Angeles multifacetada e fragmentária, fotografada em tonalidades múltiplas, por vezes êneas, e marcada por sons de espécies variadas.
O espectador que entra em contato com a projeção desse filme é desafiado a montar pacientemente o quebra-cabeças de que ele é feito, cujas peças vão demonstrando encaixes surpreendentes. Para quem é habituado a ficar tentanto adivinhar o final dos filmes, assim com o que virá na próxima sequência, Magnólia é uma fonte profunda de frustrações, pois os rumos tomados pelos personagens, engendrados pela mente criativa de Thomas Anderson. A similitude com um filme de Robert Altman se dá pelo fato de haver um cruzamento de trajetórias que vai se alinhavando aos poucos em Magnólia. O grande exemplo desse aspecto no cinema de Altman está em Short cuts – Cenas da vida (Short cuts, 1993), em que tramas aparentemente desconexas iam se inserindo umas nas outras com fluidez aprazível.
Um destaque inevitável é a chuva de sapos que ocorre no filme, uma sequência sempre lembrada e comentada quando se fala dele. Esse momento, que surge nos minutos finais da narrativa, despertou opiniões diversas entre os espectadores e entre os críticos. Há quem considere um momento uma inserção de realismo fantástico em um enredo tão crível, ao passo que há outros que entendem a tal chuva como uma referência explícita a uma das dez pragas lançadas no Egito, quando Israel estava para ser liberta da escravidão e caminhar rumo à Canaã, conforme narra a passagem bíblica do Êxodo. Há também quem despreze a sequência, tendo-a como dispensável e estranha. Seja como for, ela acaba sendo um dos simbolismos adotados pelo diretor, que exibe coragem e talanto de sobra para falar da eterna busca pela felicidade, da constante necessidade de um rompimento com um estado de coisas e de uma reinvenção permanente. Longe de tentar cristalizar suas verdades, ele empreende com sua segunda incursão como realizador uma comovente jornada de vácuos afetivos entrecruzados.
Nessa espécie de tratado da condição humana, o fio condutor é a história de Jimmy Gator (Philip Baker Hall), apresentador de O que as crianças sabem?, um programa televisivo de auditório que revela crianças-prodígio através de perguntas e respostas. O produtor do programa é Earl Partridge (Jason Robards). Em estágio terminal de câncer, ele tem a companhia constante de Phil Parma (Philip Seymour Hoffman), seu enfermeiro particular, e deseja reaver o contato com seu filho, o egocêntrico Frank (Tom Cruise), um guru de autoajuda masculino que também tem seu programa na televisão. Através dessa trama, todas as outras serão desenroladas, compondo um mosaico riquíssimo da fauna de Los Angeles, e amplificando a força de Magnólia como um petardo dramático calcado em um roteiro muito bem alinhavado em em interpretações brilhantes.
A direção de Thomas Anderson permite que todo o elenco brilhe, cada ator a seu tempo e a seu modo, o que contribui para fazer do filme uma chance de ouro de ver bons nomes em cena. Ele repete aqui sua parceria com Philip Seymour Hoffman, com quem havia trabalhado em seu primeiro filme, assim como volta a trabalhar com Julianne Moore. Aqui, ela é Linda, a mulher de Earl, que se casou com ele por interesse, mas que acabou por descobrir que agora sente amor verdadeiro pelo marido. Sua performance irrepreensível como uma pessoa frágil que chega ao desalento diante de uma descoberta em meio a uma circunstância adversa é magnetizadora da atenção do espectador que coloca seus olhos nela. Moore é daquelas atrizes que inundam a cena em que está presente, catalisando o foco para seus desempenhos nunca menos que ótimos.
Tom Cruise, por sua vez, é um poço de altivez de espírito e de desorientação latente. Aprovado com louvor na escola do abandono, ele canaliza seu descontentamento com sua condição lançando conselhos descarados para os machos interessados de alcançar êxito em suas empreitadas amorosas. O ator comprova sua capacidade de surpreender e ir além do papel de galã com seu Frank. É certo que o papel também exigiu parte do tônus muscular do ator, mas sua fina estampa é um acessório diante da carpintaria dramática cuidadosamente sinalizada pelo roteiro do próprio diretor. Seu desempenho foi merecidamente reconhecido com uma indicação ao Oscar de melhor ator coadjuvante na 72ª edição da cerimônia, prêmio que foi para as mãos de Michael Caine, que concorria por Regras da vida (The cider house rules, 1999). Cruise oferece uma mistura de carência recolhida com ferocidade explícita que tornam seu personagem distante de uma composição maniqueísta. Vale lembrar que, no mesmo ano, ele foi dirigido por Stanley Kubrick, com quem rodou De olhos bem fechados (Eyes wild shut, 1999), derradeiro filme do, por vezes, superestimado diretor, em que teve seu talento como intérprete posto à prova.
Essa crítica pretende-se centrifugadora no que tange a uma descrição taxonômica dos numerosos personagens que desfilam ao longo da narrativa de Magnólia, bem como de suas intrincadas tramas. Mas cabe destacar o trabalho de atores que dão peso dramático a quem interpretam. Além de Cruise e Moore, outro que oferece uma atuação brilhante é William H. Macy, que encarna Donnie Smith, um homem amargurado que, quando criança, participou do programa de Earl, e se mostrou inteligentíssimo, batendo recorde entre os prodígios que ali estiveram. Ele tornou-se um adulto fracassado, e persegue a felicidade sem saber exatamente onde ela está, caminhando a esmo pela vida e vendo sua situação se complicar mais ainda depois de sua demissão. Está sempre de bar em bar afogando suas mágoas, e é a oportunidade de Macy, um ator pouco conhecido do grande público, demonstrar sua enorme capacidade como intérprete.
Para dar conta de tantas subtramas que se alternam e se entrecruzam, Magnólia alcança mais de três horas de duração, colocando o filme em posição de emparelhamento com calhamaços do naipe de Dogville (idem, 2003). Essa longa duração permite classificá-lo como um poderoso tratado sobre a falta de afeto dos tempos modernos. Uma falta que é repelida, mas que se encontra a cada vez que os seres humanos dão sua agressividade em vez do seu carinho, empoeirando os corações de um contato direto com a gentileza e a docilidade. A começar por Earl, os personagens desse filme estão em busca de um contato para a demonstração de seus afetos recolhidos. Thomas Anderson nos envolve nessa atmosfera de desalento, apresentando uma Los Angeles multifacetada e fragmentária, fotografada em tonalidades múltiplas, por vezes êneas, e marcada por sons de espécies variadas.
O espectador que entra em contato com a projeção desse filme é desafiado a montar pacientemente o quebra-cabeças de que ele é feito, cujas peças vão demonstrando encaixes surpreendentes. Para quem é habituado a ficar tentanto adivinhar o final dos filmes, assim com o que virá na próxima sequência, Magnólia é uma fonte profunda de frustrações, pois os rumos tomados pelos personagens, engendrados pela mente criativa de Thomas Anderson. A similitude com um filme de Robert Altman se dá pelo fato de haver um cruzamento de trajetórias que vai se alinhavando aos poucos em Magnólia. O grande exemplo desse aspecto no cinema de Altman está em Short cuts – Cenas da vida (Short cuts, 1993), em que tramas aparentemente desconexas iam se inserindo umas nas outras com fluidez aprazível.
Um destaque inevitável é a chuva de sapos que ocorre no filme, uma sequência sempre lembrada e comentada quando se fala dele. Esse momento, que surge nos minutos finais da narrativa, despertou opiniões diversas entre os espectadores e entre os críticos. Há quem considere um momento uma inserção de realismo fantástico em um enredo tão crível, ao passo que há outros que entendem a tal chuva como uma referência explícita a uma das dez pragas lançadas no Egito, quando Israel estava para ser liberta da escravidão e caminhar rumo à Canaã, conforme narra a passagem bíblica do Êxodo. Há também quem despreze a sequência, tendo-a como dispensável e estranha. Seja como for, ela acaba sendo um dos simbolismos adotados pelo diretor, que exibe coragem e talanto de sobra para falar da eterna busca pela felicidade, da constante necessidade de um rompimento com um estado de coisas e de uma reinvenção permanente. Longe de tentar cristalizar suas verdades, ele empreende com sua segunda incursão como realizador uma comovente jornada de vácuos afetivos entrecruzados.
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Festa de família e a ausência de meios-termos
Perto do final da década de 90, o cinema escandinavo apresentou ao mundo uma proposta revolucionária em termos de relacionamento com essa maneira de fazer arte. Os responsáveis por esse “fenômeno” atendem pelos nomes de Lars Von Trier e Thomas Vinterberg, seguidos de outros colaboradores que assinaram embaixo de suas ideias: Susanne Bier, Paprika Steen, KristianLevring e outros. E o nome do movimento foi Dogma 95. A obra inagural desse novo estilo de filmar foi Festa de família (Festen, 1998), coprodução entre Dinamarca e Suécia que mostrou a que viriam os seus signatários. O filme é um retrato cru das relações familiares, analisadas a partir de uma ocasião festiva, como seu título dá conta de indicar claramente.
A trama do filme começa poucas horas antes da tal festa, que é a comemoração do sexagésimo aniversário de Helge (Henning Moritzen), o patriarca de uma família numerosa. Seus quatros filhos, todos problemáticos, cada qual a seu modo, são convocados para a reunião a ser realizada na mansão do pai. Como se torna perceptível para o público desde o seu começo, aquela reunião inicialmente tafula apresentará desdobramentos cataclismáticos, que culminarão em um sério desequilíbrio naquele clã cuja harmonia era apenas aparente. Vinterberg se debruça sobre a velha temática da “lavagem de roupa suja”, que compreende quase um subgênero dentro das produções dramáticas. O rol de filmes acerca de mágoas que emergem em reuniões familiares só faz crescer, o que deixa entrever que a preocupação do diretor não é com o enredo em si, mas com a apresentação dos pilares do Dogma 95.
Aliás, o movimento merece ter algumas de suas diretrizes explicitadas aqui: filmagens unicamente em locações, sem quaisquer acessórios cênicos, abolição do uso de música, a não ser que ela pertença ao ambiente da filmagem, câmera na mão, com todos os movimentos gerados por essa essa escolha e desenvolvimento em tempo real talvez sejam as suas principais matrizes. Festa de família, que ganhou para os idealizadores do manifesto o pré-título de Dogma # 1, segue à risca essa cartilha, obviamente por ser o iniciador concreto do movimento. O cineasta se utiliza de todos os meios para conferir um realismo intenso ao enredo, e o consegue, em boa parte, por conta do elenco afiado e completamente à vontade em seus papéis. Naquela família desestruturada, há espaço para todo tipo de discussão, e Vinterberg aposta em uma abordagem crua e visceral dos conflitos que permeiam os membros daquele clã, desviando-se de modo ziguezagueante dos clichês mais caros aos diretores que tratam desse tema.
Durante o aniversário de Helge, os convidados vão se acomodando na enorme casa, e cada um dos cômodos vai servindo de cenário para uma discussão, um embate ou uma cena de sexo selvagem. A câmera sempre posicionada nos ombros confere uma atmosfera documental às imagens que vão sendo captadas, e lhe dá o papel de intrusa silenciosa, que espia cada movimento com a onipresença de quem tem o poder de saber de todas as coisas. Um dos filhos de Helge aproveita a comemoração que reuniu a todos para revelar que foi abusado sexualmente por ele na infância. Por conta disso, Michael (Thomas Bo Larsen), o filho em questão, cultivou um medo imenso da figura paterna, e a emoção represada ao longo dos anos pelo caçula é um dos primeiros índices da eclosão dos atritos que ainda permearão o encontro de todos. O filho mais velho, Christian (Ulrich Thomsen), também apronta suas surpresas, e polariza as ações que ocorrem na festa junto com o irmão mais novo. Seu personagem é um tipo intratável, que não hesita em ser grosseiro com a esposa para reafirmar sua virilidade, é uma nova prova do talento notável de Thomsen como ator.
Thomsen é um dos intérpretes mais conhecidos do cinema dinamarquês - juntamente com Nikolaj Lie Kaas -, que transita com relativa frequência entre as produções de seu país e as estadunidenses. Seu nome figura em fimes como Mata-me de prazer (Killing me softly, 2002), Duplicidade (Duplicity, 2009) e Trama internacional (The international, 2009), para citar exemplares hollywoodianos. Entre os longas de sua pátria nos quais esteve, incluem-se duas colaborações com Susanne Bier – Brothers (Brødre, 2004) e Em um mundo melhor (Hævnen, 2010) – e Allegro (idem, 2005), de seu conterrâneo Christoffer Boe. Ele é um dos grandes destaques de Festa de família, atraindo muita atenção com sua personalidade problemática, difícil de dobrar. Apesar da condução da trama estar mais focada na forma que em seu conteúdo, Vinterberg não abdica de ser inventivo nesse segundo quesito, e o faz, principalmente, através do personagem rico em possibildades dramáticas qu entregou a Thomsen.
Vários são os destaques do longa-metragem, que cumpre muito bem sua função primordial de apresentar, na prática, tudo o que os idealizadores do Dogma 95 preconizavam. A montagem é outro aspecto que salta aos olhos do público, com seus cortes secos e suas longas tomadas, em que se verifica um misto de parcimônia com tensão latente. Cada fotograma de Festa de família está impregnado de uma forte verossimilhança, que reforçam a validade do filme como um expositor de gangrenas que podem acometer o seio familiar. Impedido de usar efeitos especiais, o realizador catalisa toda a carga dramática que atravessa as sequências daquele aniversário nos diálogos afiados e cortantes, e na expressão corporal dos atores, que demonstram a envergadura física ideal para cada um de seus personagens, outro trunfo marcante que Vinterberg tem nas mãos.
Apegado a esse cinema de cunho autoral, dissociado de um alcance mediado pela grande distribuição, o diretor exala liberdade criativa para incorporar alguns improvisos à narrativa, sem jamais, contudo, perder as rédeas da história que quer contar. O grande perigo que o filme poderia correr, felizmente, é afastado: ter uma forma inovadora de apresentar uma trama que, por si mesma, não tivesse grande relevância. Aqui, o espectador entra em contato com um retrato vigoroso de uma série de pessoas cuja ligação maior são os laços de sangue, que nem sempre falam mais alto, como em meio a um conflito aberto, por exemplo. Durante o tempo de projeção de Festa de família, fica patente a sensação de que se está diante de uma profunda diálise dos fantasmas individuais que só ganham força em presença de parentes, a quem tentamos sempre demonstrar força e mudança, mas a quem nem sempre convencemos. Principalmente quando nós mesmos ainda não estamos convencidos dessa força e dessa mudança.
A trama do filme começa poucas horas antes da tal festa, que é a comemoração do sexagésimo aniversário de Helge (Henning Moritzen), o patriarca de uma família numerosa. Seus quatros filhos, todos problemáticos, cada qual a seu modo, são convocados para a reunião a ser realizada na mansão do pai. Como se torna perceptível para o público desde o seu começo, aquela reunião inicialmente tafula apresentará desdobramentos cataclismáticos, que culminarão em um sério desequilíbrio naquele clã cuja harmonia era apenas aparente. Vinterberg se debruça sobre a velha temática da “lavagem de roupa suja”, que compreende quase um subgênero dentro das produções dramáticas. O rol de filmes acerca de mágoas que emergem em reuniões familiares só faz crescer, o que deixa entrever que a preocupação do diretor não é com o enredo em si, mas com a apresentação dos pilares do Dogma 95.
Aliás, o movimento merece ter algumas de suas diretrizes explicitadas aqui: filmagens unicamente em locações, sem quaisquer acessórios cênicos, abolição do uso de música, a não ser que ela pertença ao ambiente da filmagem, câmera na mão, com todos os movimentos gerados por essa essa escolha e desenvolvimento em tempo real talvez sejam as suas principais matrizes. Festa de família, que ganhou para os idealizadores do manifesto o pré-título de Dogma # 1, segue à risca essa cartilha, obviamente por ser o iniciador concreto do movimento. O cineasta se utiliza de todos os meios para conferir um realismo intenso ao enredo, e o consegue, em boa parte, por conta do elenco afiado e completamente à vontade em seus papéis. Naquela família desestruturada, há espaço para todo tipo de discussão, e Vinterberg aposta em uma abordagem crua e visceral dos conflitos que permeiam os membros daquele clã, desviando-se de modo ziguezagueante dos clichês mais caros aos diretores que tratam desse tema.
Durante o aniversário de Helge, os convidados vão se acomodando na enorme casa, e cada um dos cômodos vai servindo de cenário para uma discussão, um embate ou uma cena de sexo selvagem. A câmera sempre posicionada nos ombros confere uma atmosfera documental às imagens que vão sendo captadas, e lhe dá o papel de intrusa silenciosa, que espia cada movimento com a onipresença de quem tem o poder de saber de todas as coisas. Um dos filhos de Helge aproveita a comemoração que reuniu a todos para revelar que foi abusado sexualmente por ele na infância. Por conta disso, Michael (Thomas Bo Larsen), o filho em questão, cultivou um medo imenso da figura paterna, e a emoção represada ao longo dos anos pelo caçula é um dos primeiros índices da eclosão dos atritos que ainda permearão o encontro de todos. O filho mais velho, Christian (Ulrich Thomsen), também apronta suas surpresas, e polariza as ações que ocorrem na festa junto com o irmão mais novo. Seu personagem é um tipo intratável, que não hesita em ser grosseiro com a esposa para reafirmar sua virilidade, é uma nova prova do talento notável de Thomsen como ator.
Thomsen é um dos intérpretes mais conhecidos do cinema dinamarquês - juntamente com Nikolaj Lie Kaas -, que transita com relativa frequência entre as produções de seu país e as estadunidenses. Seu nome figura em fimes como Mata-me de prazer (Killing me softly, 2002), Duplicidade (Duplicity, 2009) e Trama internacional (The international, 2009), para citar exemplares hollywoodianos. Entre os longas de sua pátria nos quais esteve, incluem-se duas colaborações com Susanne Bier – Brothers (Brødre, 2004) e Em um mundo melhor (Hævnen, 2010) – e Allegro (idem, 2005), de seu conterrâneo Christoffer Boe. Ele é um dos grandes destaques de Festa de família, atraindo muita atenção com sua personalidade problemática, difícil de dobrar. Apesar da condução da trama estar mais focada na forma que em seu conteúdo, Vinterberg não abdica de ser inventivo nesse segundo quesito, e o faz, principalmente, através do personagem rico em possibildades dramáticas qu entregou a Thomsen.
Vários são os destaques do longa-metragem, que cumpre muito bem sua função primordial de apresentar, na prática, tudo o que os idealizadores do Dogma 95 preconizavam. A montagem é outro aspecto que salta aos olhos do público, com seus cortes secos e suas longas tomadas, em que se verifica um misto de parcimônia com tensão latente. Cada fotograma de Festa de família está impregnado de uma forte verossimilhança, que reforçam a validade do filme como um expositor de gangrenas que podem acometer o seio familiar. Impedido de usar efeitos especiais, o realizador catalisa toda a carga dramática que atravessa as sequências daquele aniversário nos diálogos afiados e cortantes, e na expressão corporal dos atores, que demonstram a envergadura física ideal para cada um de seus personagens, outro trunfo marcante que Vinterberg tem nas mãos.
Apegado a esse cinema de cunho autoral, dissociado de um alcance mediado pela grande distribuição, o diretor exala liberdade criativa para incorporar alguns improvisos à narrativa, sem jamais, contudo, perder as rédeas da história que quer contar. O grande perigo que o filme poderia correr, felizmente, é afastado: ter uma forma inovadora de apresentar uma trama que, por si mesma, não tivesse grande relevância. Aqui, o espectador entra em contato com um retrato vigoroso de uma série de pessoas cuja ligação maior são os laços de sangue, que nem sempre falam mais alto, como em meio a um conflito aberto, por exemplo. Durante o tempo de projeção de Festa de família, fica patente a sensação de que se está diante de uma profunda diálise dos fantasmas individuais que só ganham força em presença de parentes, a quem tentamos sempre demonstrar força e mudança, mas a quem nem sempre convencemos. Principalmente quando nós mesmos ainda não estamos convencidos dessa força e dessa mudança.
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