Os filmes de Woody Allen são um exemplo ótimo de obra que chega muito depois de seu autor. Ao longo dos anos, os longas do diretor se tornaram uma espécie de grife para o cinema, e há quem adore dizer que ele sempre faz o mesmo filme. Em parte, isso é verdade. Em parte, é uma mentira deslavada. No fundo, o que Allen faz é procurar novas formas e circunstâncias de expressar seus temas-fetiche, chegando a resultados que, se não são sempre geniais, sempre se mostram, no mínimo, ótimos. Tudo pode dar certo (Whatever works, 2009), um de seus trabalho mais recentes, é também uma revisita do cineasta a assuntos que surgem com frequência em seus filmes. Trata-se do primeiro longa-metragem do diretor depois de uma temporada em solo europeu, que resultou nos ótimos, cada qual a seu modo, Ponto final (Match point, 2005), Scoop – O grande furo (Scoop, 2006), O sonho de Cassandra (Cassandra’s dream, 2007) e Vicky Cristina Barcelona (idem, 2008).
O grande problema de Tudo pode dar certo, na verdade, está no título que recebeu. Os filmes do cineasta, quando não são traduzidos diretamente para o português, recebem títulos desastrosos e inacreditáveis, figurando, certamente, entre os mais mal traduzidos da sétima arte. Logo em seu filme de estreia isso aconteceu, quando chegou aos cinemas Um assaltante bem trapalhão (Take the money and run, 1969). O título original do filme é simplesmente “Pegue o dinheiro e corra”! O caso mais famoso, porém, é o de Noivo neurótico, noiva nervosa (Annie Hall, 1977), cujo título em língua inglesa é somente o apelido carinhoso da protagonista. Na verdade, não há sequer noivos no filme para que esse nome seja justificado. Tudo pode dar certo é mais um caso na longa galeria de equívocos de nomenclatura em língua portuguesa da produção alleniana. O título original pode ser traduzido livremente como “Vale o que der certo”, o que combina muito mais com a perspectiva algo pessimista que o diretor lança sobre o filme. Batizado como foi no Brasil, parece muito mais ingênuo e simplório.
Conhecendo um pouco do enredo, fica mais fácil compreender o motivo da eficácia do título selecionado pelo próprio Allen. O protagonista da história é Boris Yellnikoff (Larry David, ótimo), um físico nuclear aposentado que passa o tempo dando aulas de xadrez ao ar livre. Convicto de que seja a pessoa com mais visão em todo o mundo, ele se dá o direito de insultar seus alunos sem a menor cerimônia, o que permite ao público entrar em contato com o texto inspirado do também roteirista de mão cheia. Boris é cheio de rituais e manias, algumas com um certo fundamento científico, como lavar as mãos pela duração de um Parabéns pra você, o que, segundo alguns médicos, é o tempo recomendado para eliminar os germes. Nota-se aí, portanto, umas das várias recorrências da obra de Allen: o personagem principal que é refém de manias e sempre se vê preocupado com doenças. Espectadores atentos saberão fazer uma ponte entre Boris e o Mickey de Hannah e suas irmãs (Hannah and her sisters, 1986), que é um dos exemplos mais fortes desse tipo na carreira do diretor.
Voltando a Boris, sua rotina cheia de xingamentos de pouquíssimos amigos vai se transtornando quando chega em sua casa a simpática Melodie (Evan Rachel Wood), uma jovem caipira que pede guarida a ele depois de fugir da casa dos pais. O relacionamento entre eles se desenvolve na base da hostilidade de Boris e na doçura incondicional de Melodie, que não tardará a dissolver parte da carapaça do velho rabugento – eles acabam se casando. Allen aproveita a trama como deixa para destilar sua verve irônica e sempre afiada, e insere referências eruditas que muitos leigos certamente não entenderão, como é o caso da teoria das supercordas, que, em resumo, postula que tudo o que há no mundo são movimentos vibratórios de grandes cordas imaginárias. Essa é uma das teorias mais aceitas atualmente para tentar explicar o que havia no Universo antes do Big Bang, e chega a dar nó na cabeça quando estudada com um pouco mais de profundidade.Para Boris, é uma das várias formas de expressão de seu sentimento de superioridade perante todas as pessoas que o cercam, inclusive sua esposa Melodie.
Um recurso bastante interessante utilizado por Allen com esse filme é uma subversão clara a uma das regras basais do cinema. Desde o seu surgimento, é imprescindível que se mantenha a ilusão no espectador e nenhum personagem olhe diretamente para a câmera. Desprezando esse conceito, Boris começa o filme falando diretamente a quem está assistindo ao filme, demonstrando que sua história não é nada agradável, bem como a sua personalidade. Allen derruba a quarta parede com essa cena, indo além do que alguns cineastas já fizeram. Esse não é o primeiro filme em que um personagem fala para a câmera, mas é o primeiro em que os outros personagens percebem que há alguém falando para a câmera. A estratégia foi usada semelhantemente por Laurende Dunmore em O libertino (The libertine, 2004), em que o protagonista vivido por Johnny Depp discursa para a plateia dizendo que será muito fácil destestá-lo. Mas, nesse momento, ele é o único em cena, e a sequência forma praticamente um trecho à parte no filme.
A agitada vida conjugal de Boris e Melodie é movida pelos conhecimentos que ele “doa” à jovem, que, apesar de ser constantemente hostilizada pelo marido, devolve-lhe um afeto desconcertante. Sim, no fundo, Boris não é tão mau assim, e Allen demonstra, como de hábito, que há uma essência muito humana em seus personagens. Ainda surgem várias outras peripécias na trama, principalmente depois da entrada de Marietta (Patricia Clarkson) e Brockman (Conleth Hill), os pais da jovem, que se envolvem, cada um, em jornadas particulares de autodescoberta que se revelam surpreendentes para eles mesmos e para o público que acompanha a história. Clarkson sela com Tudo pode dar certo a sua segunda parceria consecutiva com Allen, depois de ter se saído muito bem em Vicky Cristina Barcelona. Aqui, ela se despe em parte da aura de elegância que costuma cercar seus personagens, e encarna uma mulher que começa simples e algo ingênua, mas que acaba por encontrar dentro de si uma coragem e uma sofisticação que desconhecia. Por meio dos pais de Melodie, o roteiro de Allen evidencia que o ser humano está em constantes descontrução e reconstrução, e pode ser vários em apenas um só.
Aqueles que tem algum conhecimento de filmes pregressos do diretor vetusto sabem o que esperar de Tudo pode dar certo. Trata-se de mais uma obra pautada pelos diálogos, o que se configura como uma caracterísitca prototípica do cinema europeu, do qual ele soube se apropriar muito bem ao longo dos anos. O filme não deixa de fora muitos desencontros de várias ordens entre os personagens, e a realidade se assume como um lugar onde os maiores absurdos podem acontecer. Muitos críticos apontam esse longa como uma volta de Allen ao cinema que vinha praticando até antes de Ponto final, com um alter ego mais claro – impossível não perceber que o diretor poderia dar vida ao protagonista – e ambientação da trama na sua adorada Nova York, fazendo do filme uma espécie de volta às origens do diretor. Mas, a bem da verdade, independentemente de ter situado seu cinema em terras europeias nos últimos anos, Allen continua perseguindo as mesmas questões, fazendo delas o norte para sua filmografia, a grosso modo. Estão presentes mais uma vez a falta de sentido da existência, a incapacidade de lidar com a morte, e a salvação na arte, representada na personagem de Patricia Clarkson, que se torna uma nova mulher depois de descobrir o prazer da pintura.
As impressões que o filme causam no espectador são mormente positivas, e ajudam a situá-lo em uma série de discussões que vêm sendo feitas por inúmeros realizadores com igual, maior ou menor êxito, e que demonstram que podem continuar sendo feitas ad eternum, sem que haja um caminho exclusivo para apontar as suas respostas. Em parte, Allen faz um cinema de teor confessional, e compartilha boa parte de suas infinitas angústias filme após filme, fazendo de seu estilo contumaz, ao mesmo tempo, um ímã e um repelente para o público, a depender do apreço que cada um sentir por ele. O fato é que, mais uma vez, ele dá a sua cara a tapa, e sentencia desde o início que nada nesse filme é feito para que seja apreciado, apenas visto. Boris Yellnikoff afirma, tão logo a projeção começa, que não há qualquer razão para que a plateia se interesse por sua história. A sequência acaba sendo uma metáfora audiovisual para a figura de linguagem da preterição, em que, fingido despeito por um determinado assunto, o enunciador vai dele falando.
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