8 de fev. de 2011

“Apenas o fim” e a desconstrução do amor por meio da palavra

O cinema de tempos em tempos gosta de lançar olhares de afetividade para o campo das relações amorosas. Muitos diretores fazem dessa temática um terreno tão fértil que pavimentam suas carreiras apenas em torno dela. Assim acontece com Wong Kar-Wai, realizador de pequenas joias como Amor à flor da pele (In the mood for love, 2000) e Um beijo roubado (My blueberry nights, 2007), só para citar dois exemplos. Entre os diretores recentes, Matheus Souza é mais um a se debruçar sobre o assunto, o que o levou a conduzir o singelo Apenas o fim (idem, 2008).



O filme é um retrato do amor que realça o que ele tem de mais nefando: sua mutabilidade. Sim, antes de se esvair o amor passa por constantes metamorfoses, como passam os amantes, ou talvez porque passam os amantes. Amantes que aqui são simbolizados nas figuras algo emblemáticas de Gregório Duvivier (Antônio) e Érika Mader (a namorada de Antônio), que são jovens e comuníssimos, reflexos de um tempo e de uma geração que aprendeu a pautar suas relações pela palavra escrita (vide redes sociais e sites como MSN, Orkut, blogs e Facebook). Nada em sua personalidade parece se diferenciar daquilo que se enxerga em outros garotos e garotas de sua idade, os 20 e poucos anos. Por conta disso, eles despertam como sentimento primeiro no espectador uma certa identificação – muito mais da parte dos nerds, é bom que se diga.
A trama é das mais simples, podendo ser resumida em uma ou duas frases: uma garota decide ir embora e vai encontrar o namorado pela última vez, tendo apenas uma hora para fazer um balanço do tempo em que eles ficaram juntos. Calcado nessa premissa, Matheus presenteia muito mais os ouvidos que os olhos do público, pois seu longa de estreia é uma clara demonstração de apego à palavra. Durante os 80 minutos da história, os personagens falam sem parar, demonstrando muito do que são por meio dos diálogos que travam um com o outro. Apenas o fim foi construído no melhor estilo “uma câmera na mão e uma ideia na cabeça” resultando em um cinema autoral de verve alleniana, o que se verifica em vários aspectos.
A começar pelo perfil de Antônio, que se delineia em poucos minutos de projeção: o personagem é a composição arquetípica do cara perdedor, que não se dá bem com as meninas por um porte físico atlético ou por um charme irresistível, mas pela insistência e pela conversa inteligente. Além disso, Antônio é dominado em vários momentos pela insegurança, que o leva frequentemente à insensatez no trato com sua namorada, cujo nome jamais é mencionado. Qualquer eco que leve à uma associação com a persona criada por Woody Allen não é pura coincidência, pois o próprio Matheus contou que parte de sua inspiração vem dos filmes dirigidos pelo veterano novaiorquino. Esse aspecto torna Apenas o fim um pouco mais prazeroso para quem é fã de Allen, mas cabe assinalar que o filme de Matheus não é um mero decalque da produção alleniana.


O roteiro, escrito também por ele, tem uma linguagem muito própria, e que reflete com competência notável o modo de expressão típico da juventude contemporânea, embora em certos momentos fique específico demais, circunscrevendo-se a um grupo de jovens cariocas da Zona Sul viventes dos anos 2000. Tal opção feita pelo cineasta, entretanto, é absolutamente legítima, pois lhe permite lidar com aquilo que conhece bem. Afinal, Matheus é cria dos pilotis da PUC, famosa universidade privada situada no bairro da Gávea, um dos mais aprazíveis do Rio de Janeiro. Ele estudou ali e conhece cada ponto da geografia ricamente arborizada do ambiente. Nesse ponto, nota-se mais uma semelhança do “discípulo” com o mestre Allen. A Nova York amada e idolatrada do realizador vetusto também é constantemente retratada em seus filmes, evidenciando a intimidade que ele tem com seu lugar do coração.
Nas falas de Antônio e sua namorada, também não faltam referências explícitas a filmes, desenhos animados, séries e personagens que marcaram o romance dos dois, e que podem servir de espelho para muitos jovens casais. De alguma maneira, os diálogos deles sintetizam aspirações e frustrações de uma juventude que não se reconhece há muito nos enlatados hollywoodianos, que insistem em instituir um padrão de comportamento para essa faixa etária e que são mandados para solo estrangeiro para ser empurrado goela abaixo de platéias totalmente heterogêneas. E a maneira como as conversas dos protagonistas são conduzidas exala fluidez e causam um sorriso de canto de boca no espectador, que podem se tornar gargalhadas a depender da sua receptividade. Em dado momento da história, ambientada integralmente no campus da universidade em que eles estudam, uma menina passa, mas apenas eles a veem, e a namorada de Antônio diz que ela tem cara de que elegeu como filmes prediletos Diário de uma paixão (The notebook, 2004) e Um amor para recordar (A walk to remember, 2002), que são vistos depreciativamente pela protagonista e por Antônio.
Eles também brincam com outros ícones de quem viveu sua infância no início dos anos 90, citando a Vovó Mafalda, que apresentava um programa de desenhos pela manhã e que, na verdade, era um homem. Antônio demonstra sua indignação com o fato, alegando que é inadmissível um dos seres mais carismáticos de seu tempo de criança ser um homem travestido de mulher. A maneira como eles dialogam evoca outro diretor que tem forte apego à verborragia, e que atende pelo nome de Domingos Oliveira, esse sim um patrício de Matheus Souza. Como o cineasta setentão, o jovem Matheus se mostra inclinado a analisar as causas e consequências da dissolução de um amor pelo viés da longa conversa. Com seus diálogos, ele dialoga diretamente com a obra do realizador de Separações (idem, 2002) e Feminices (idem, 2004), que aborda com semelhante enxutez as agruras da vontade no que tange ao relacionamento entre duas pessoas que se amam. No caso do relacionamento de Antônio e sua namorada, cabem várias neuroses e terceiras e quartas pessoas, muitas mais advindas da parte dela e que atordoam o rapaz. Ele, aliás, tem medo de tudo, de aranhas a altura, o que contribui para caracterizá-lo como o loser que foi mencionado antes.
No fim das contas, Apenas o fim é um filmes descontraído dentro dos limites da escrita e da filmagem de um realizador iniciante e introvertido, que transpira a agonia jovem de cada dia, não esgotando as possibilidades de diálogos com a obra de outros colegas de ofício já septuagenários. A estreia de Matheus Souza na direção é louvável, e vem se somar à boa safra recente que se tem verificado no cinema brasileiro dos últimos anos. Domingos Oliveira, em cuja fonte ele bebe, elogiou bastante o rapaz, quando o filme foi exibido no Festival do Rio de 2008, chegando a dizer que Matheus poderia tranquilamente ser seu filho, pois persegue as mesmas inquietações que tomam o seu cinema. Com uma declaração dessas vinda de alguém tão experiente, há que se atentar com os próprios olhos para a trama juvenil sincera e cheia de frescor que o novato engendrou.

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