A exemplo do que começara Michelangelo Antonioni no ano anterior, 1960, Ingmar Bergman se propôs a iniciar um estudo meticuloso sobre os meandros da falta de comunicação entre os seres humanos. Se Antonioni idealizou e concretizou a sua Trilogia da Incomunicabilidade, Bergman trouxe à existência a sua Trilogia do Silêncio. Entre elas, há vários pontos de convergência, a começar pelo interesse claro por investigar por que estamos fadados à completa solidão, mesmo que tenhamos interlocutores para contar nossos problemas e outras fontes de inquietude. Com isso, os diretores adentraram um terreno incômodo e, por vezes, sombrio e aterrador.
Através de um espelho (Såsom i en spegel, 1961) abre a trilogia de Bergman, que se completa com Luz de inverno (Nattvardsgästerna, 1962) e O silêncio (Tystnaden, 1963). Os três filmes são independentes entre si no que concerne às tramas, mas todos se relacionam do ponto de vista das temáticas que os atravessam, e que perpassam a obra bergmaniana como um todo. Neles, estão presentes o vazio da existência, as incongruências da vida a dois, o questionamento da fé, o siêncio aparente de Deus, o fascínio pelos mecanismos que regem a loucura e o flagrante às máscaras de que todos nos apoderamos no trato com o outro. Para dar espaço ao debate dessas questões atordoantes, a trama de que o diretor lança mão é protagonizada por um casal que vai passar alguns dias em uma casa perto da praia.
O casal atende pelos nomes de Martin (Max Von Sydow) e Karin (Harriet Andersson), e está vivendo uma crise sem precedentes em seu relacionamento. A grande causa dessa crise são os constantes surtos psicóticos de Karin, que parece enxergar uma realidade paralela, e vem desagastando Martin com seus acessos de loucura. Na tentativa de encontrar um suposto equilíbrio, que talvez nunca tenha existido realmente, eles decidem passar um período de férias na tal casa, que se situa em uma ilha distante. Ali também estão David (Gunnar Björnstrand) e Frederik (Lars Passgård), respectivamente o pai e o irmão de Karin, que estão cientes do quadro emocional da jovem.
Utilizando-se da ilha como uma espécie de microcosmos das relações interpessoais de que todos dependem, Bergman começa a alinhavar uma poderosa radiografia dos sentimentos conflituosos que podem surgir na convivência entre as pessoas, e o faz sem deixar pedra sobre pedra. O diretor evita a obviedade no enredo, e conduz a trama em um ritmo linear, mas nem por isso, o caminho se torna mais fácil. A trama é dolorida, e o espectador mergulha junto com Karin em sua mente frágil, perturbada, e o roteiro escrito pelo próprio diretor sublinha o tempo todo que a fronteira entre sanidade e loucura é por demais tênue, e que ninguém está livre de se tornar refém dos seus pensamentos. Bergman também acerta ao escapar da abordagem maniqueísta, já que Martin não é tão-somente um marido devotado, mas também esconde sua parcela de egoísmo diante da lenta agonia da esposa. É seu sogro quem revela essa porção de sua personalidade, quando, em um passeio de barco em que somentes eles estão, lança-lhe na face a palavra, demonstrando que sabe que ele não tem sido, de fato, o melhor companheiro para sua filha.
Como em todos os filmes de Bergman até o final da década de 60, a fotografia de Através de um espelho é em preto e branco, e reporta o público para a Suécia desse tempo, não permitindo, entretanto, que se considere uma realidade distante, seja no tempo, seja no espaço. Depois de tantos anos, o cinema do talentoso diretor não ficou datado, pois os conflitos que ele aborda ainda encontram guarida no coração do homem contemporâneo. Ao longo da narrativa de Através de um espelho, ele nos desafia a procurar o fio de razão que nos orienta, e desmonta uma série de convicções que muitos temosa respeito do que é ser normal. Em momento algum a trama perde o fôlego, mas requer uma atenção acurada, pois as possibilidades de entendimento daquilo que está se passando com Karin são levantadas sutilmente nos poucos diálogos travados entre os personagens.
Nesse filme, o realizador trabalha mais uma vez com seus atores-fetiche, todos figuras recorrentes em sua longa obra. Max Von Sydow, por exemplo, vinha de uma série de colaborações com o diretor, começando com O sétimo selo (Det Sjunde inseglet, 1957) passando por Morangos silvestres, (Smultronstället,1957) O rosto (Ansiktet, 1958), No limiar da vida (Nära livet, 1958) e A fonte da donzela (Jungfrukällan, 1959). Como habitué da filmografia do diretor, ele se insere perfeitamente na atmosfera incômoda em que Bergman coloca seus personagens, e demonstra todo o seu talento para interpretar um personagem dúbio, que revela sua frivolidade à medida que a narrativa prossegue, e é então que seu lado sombrio se descortina par o público. Gunnar Björnstrand é outro que frequentemente aparece na lista de filmes de Bergman, tendo estado igualmente presente em O sétimo selo como um artista circense que beirava a ingenuidade, além de ter estado em outras obras pregressas do diretor, como Noites de circo (Gycklarnas afton, 1953) e Sorrisos de uma noite de amor (Sommarnattens leende, 1955). Ele imprime vitalidade em seu desempenho como um pai que preza pela felicidade da filha acima de tudo, e que trava embates memoráveis com o genro em prol do bem-estar dela.
Por mais paradoxal que esse comentário possa parecer, o cinema de Bergman está constantemente demonstrando o quanto se atrela à palavra, por mais que se proponha a investigar o peso do silêncio sobre as relações humanas. Os personagens de Através de um espelho se veem confinados a uma ilha, onde se confrontam o tempo todo, ainda que muitas vezes pelas vias da sutileza. Aquele cenário acaba por instaurar conflitos velados, e a fazer esvair todo o verniz que torna os indivíduos empedernidos. O diretor não se furta de ir além em termos de abordagem da dor individual, que também pode ser compreendida como universal. O filme fala de Karin, Martin, David e Frederik, mas também fala de qualquer um de nós, a cada vez que tentamos sublimar o questionamento da existência com mil artifícios.
Apropriadamente, Bergman se vale da metáfora do espelho, um reprodutor tão fiel da realidade que, ao capturá-la, devolve sua imagem invertida. Oriundo do latim speculum, o vocábulo é largamente espargido ao longo da narrativa desse filme, demonstrando que há um pouco do outro em nós, bem como de nós no outro. O cinema, por sua vez, também é o espelho que por muitas vezes nos reflete, ainda que, aos nosso olhos, possa ser enxergado com hipermetropia ou qualquer outro erro de refração. O longa é um caso raro entre os concorrentes ao Oscar. Foi indicado na categoria de melhor filme estrangeiro em 1962, da qual saiu vencedor, representando todo o esplendor da cinematografia sueca. Em 1963, recebeu uma nova indicação, dessa vez na categoria de melhor roteiro original, pela qual saiu igualmente vitorioso. As láureas entregues a este trabalho estimulante coroam o esforço de Bergman como um realizador que, a cada filme, depurava seu estilo único e inquietante, mergulhando intensamente nos recônditos da alma.
26 de fev. de 2011
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