
E o tipo para levantar essa discussão é Johnny Marco (Stephen Dorff), um ator de filmes de ação (termo cada vez mais vulgar) que leva a vida na maciota, por assim dizer. Ele é o arquétipo das celebridades da cultura de massa, que arrasta um séquito de súditos pelos espaços que percorre, mas que esconde uma essência inócua, reforçada pelos dias e noites de tédio que vivencia, um após o outro. Talvez a expressão máxima desse comportamento entediado e entediante se configure em uma cena apresentada logo no princípio do longa: enquanto está deitado na cama de um dos muitos hotéis por que passa, ele assiste a duas irmãs gêmeas e louras se desdobrando na pole dance. Mas a imagem delas, em vez de lhe causar excitação, deixa-o sonolento. Elas terminam o que foram fazer ali de modo protocolar, arrumando seus objetos em seguida, e Johhny fica estático em sua cama, dominado pelo sono. A sequência ganha uma quase repetição minutos depois, quando elas voltam a dançar e, dessa vez, encantam o ator.
O comentário sobre essas duas cenas já pode servir para encaminhar o espectador para a percepção de que Um lugar qualquer é construído por meio da delicadeza, que serve como uma aura para a trajetória algo dilacerante vivida por Johnny Marco. Coppola está interessada muito mais no homem que no astro, e isso fica claro nos primeiros fotogramas. Como fez em Encontros e desencontros, a diretora desconstrói o aspecto artístico de seu protagonista para entender o que se passa em seu âmago. O filme apresenta um ritmo propositalmente arrastado, que contribui para que se note que o cotidiano de Johnny não é nada glamouroso, mas sim aflitivo para ele, que tem de cumprir uma agenda interminável de compromissos relativos à promoção de seus filmes.
A possibilidade de revisão de seus passos se instaura na figura adorável de Cleo (Ellen Fanning), a filha única de 11 anos do ator, que vai visitá-lo. Inicialmente, ela passa poucos dias com ele, como parte do acordo feito com a mãe da menina, e logo se percebe o quanto ela é capaz de injetar alegria à rotina monótona do pai. Há uma cena que traduz bastante o espírito de análise do tédio feito pela cineasta, quando Johnny leva a filha para uma de suas aulas de patinação no gelo. Os planos-sequência que mostram a garota deslizando na pista se alternam com a expressão cansada do protagonista, que antes de chegar ali nem sabia exatamente que a menina se exercitava naquele esporte, confundindo-se e perguntando a ela sobre o balé. Sofia se detém por um bom tempo no espetáculo particular na menina, e esse é um dos elementos que pode servir de justificativa para alguns espectadores classificarem o filme simplesmente como “chato”. No fundo, trata-se de uma obra permeada por simbolismos, que fazem uma ponte entre em cinema palatável e outro mais angustiante.
A convivência entre Johnny e Cleo torna-se mais intensa depois que, sem mais nem menos, a mãe da garota pede para que o pai tome conta dela por tempo indeterminado. Então, ela passa a acompanhá-lo em suas viagens de trabalho, e trafega no universo esnobe das “estrelas” que ele enfrenta todos os dias. Cleo se mostra uma menina madura e responsável, que nunca se deslumbra com os ambientes chiques e caros que eles frequentam, talvez por já estar plenamente habituada e inserida neles. Por meio desse contato mais estreito, a vida de Johnny ganha mais vivacidade, e Sofia demonstra mais uma vez um apreço por retratar uma relação paternal, dessa vez literal, diferentemente do que fizera em Encontros e desencontros. Aliás, Um lugar qualquer guarda semelhanças nítidas com seu filme retrasado. A diferença é que, nesse último, a diretora dá um tratamento mais minimalista tanto à composição de planos quanto de personagens, apostando em uma economia que pouco se encontra no chamado cinema mainstream.

Por aspectos que já foram elucidados, o filme vencedor do Leão de Ouro no festival de Veneza pode ser considerado superior a Encontros e desencontros, que é um exemplo claro de filme superestimado. A intenção de Sofia com Um lugar qualquer parece ser basicamente a mesma que teve ao dirigir Bill Murray e Scarlett Johansson como protagonistas outrora: lançar um olhar afetivo para corações desalentados. E esse seu longa vem depois de Maria Antonieta, cuja recepção hostil em Cannes faria qualquer diretor rever sua carreira. De alguma maneira, nota-se que ela não quis arriscar, ao preferir escrever e dirigir um filme que trata de uma temática que lhe é tão próxima. Talvez seja um pouco exagerado dizer que Cleo seja um alter ego de Sofia, mas a realizadora é um exemplo concreto de criança que aprendeu a crescer em meio à rotina de filmagens e viagens, como filha de Francis Ford Coppola que é. Ela aprendeu, ainda que à revelia, a lidar com a ausência do pai a maior parte do tempo, e essa também é a realidade de Cleo, que é muito mais compreensiva que qualquer outra garota da sua idade, diga-se de passagem.
Um lugar qualquer se constrói mormente de silêncios e de olhares de cumplicidade que vão se estabelecendo entre a menina e seu genitor, o que tornam a experiência de assistir ao longa-metragem um delicado exercício de observação paciente. Há muitas cenas icônicas, que merecem ser comentadas, como a que mostra a equipe de maquiagem do filme que Johnny estrela preparando o molde para sua caracterização como um idoso. Sofia gasta vários minutos mostrando o personagem ator preso naquela máscara sufocante, empregando-a como metáfora para um cotidiano de incompletude que sua carreira de intérprete lhe gera, cuja saída talvez esteja no travamento de relações afetivas mais estreitas. A sequência da tal máscara causa aflição aos nervos de quem se dá conta da necessidade que urge diante do beco aparentemente sem saída em que aquele homem se colocou.
Sofia é bastante feliz no uso da metalinguagem, um elemento que se presta a inúmeros olhares, e vem sendo analisado e utilizado com rendimentos díspares por meio da filmografia de cineastas de diferentes estirpes. Em Um lugar qualquer (título que não traduz exatamente o original, que seria algo como "algum lugar"), o olhar é encantador, e repleto de momentos ternos e sublimes. Não há muitas respostas prontas aqui, mas o apontamento para caminhos que talvez possam ser uma possibilidade de encontro consigo mesmo ou com o outro. Na cena da premiação do ator em uma cerimônia italiana, a diretora mostra com humor o deslocamento e o descolamento de Johhny Marco daquela rotina risível de compromissos, e seu olhar para a filha que está na plateia parece clamar por um socorro urgente. Ali, eles já estão na fase do entendimento algo telepático, até culminar em outras duas cenas memoráveis: o banho de sol dos personagens no hotel, que existe de fato e onde a própria Sofia já se hospedou com o pai, e o mergulho na piscina em que eles brincam de tomar chá. O filme chega ao seu final com uma nova sequência de estrada, dessa vez mostrando que a bússola do personagem talvez tenha encontrado finalmente o seu norte.
Um comentário:
épico
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