23 de fev. de 2011

Ternura, comoção e alento em História real

É bom quando um certo diretor se mostra capaz de presentear o público com um filme bem escrito, dirigido e encenado, já que se tem uma sensação prazerosa a fruir. Assim ocorre com História real (The straight story, 1999), um trabalho diferenciado de David Lynch. O diretor carrega consigo uma marca autoral muito forte desde o início de sua carreira, que ocorreu com Eraserhead (idem, 1977) e, 22 anos depois de seu primeiro trabalho, oferece uma proposta mais modesta de cinema, mas, nem por isso, inferior às suas obras pregressas. Trata-se de uma narrativa mais sóbria e contida de um cineasta habituado às peripécias audiovisuais, vide o filme supra-citado e também outros como Veludo azul (Blue velvet, 1986) e Coração selvagem (Wild at heart, 1990).

História real agrega ao currículo de Lynch uma mostra de sua versatilidade ao apresentar a simpática figura de Alvin Straight (Richard Farnsworth), um senhor de idade avançada e teimosa proporcional ao seu tempo de vida. Ele mora apenas com a sua filha Rose (Sissy Spacek), uma mulher devotada aos cuidados com o pai, que demonstra seu amor por ele em pequenos gestos carinhosos e sutis. O alento de Alvin é passear pela sua cidade, localizada em uma região campestre, no interior dos Estados Unidos. Tudo vai bem e sem grandes emoções até que lhe chega a notícia de que seu irmão, com quem não se comunica há anos, está gravemente doente. Essa é a deixa para que o idoso coloque em prática a resolução de ir visitá-lo, e surge em cena aquele que talvez seja o maior índice de exotismo da trama, se não o único: Alvin não dispõe de um automóvel para cobrir a distância de centenas de quilômetros que o separa de seu irmão. Por conta disso, ele resolve empregar seu velho cortador de grama como transporte para chegar até ao estado que seu irmão habita.
A decisão tomada pelo personagem abre espaço para que sua dedicada filha questione até mesmo sua sanidade, já que ninguém em juízo perfeito seria capaz de utilizar um aparelho daquele como meio de transporte. Mas Alvin prossegue em sua atitude, e se despede da filha em uma sequência que é a primeira de várias outras que decerto despertarão a comoção do público. Com isso, o filme ganha contornos de road movie, pois o protagonista tem uma longa trajetória montado sobre aquele cortador de grama absolutamente pitoresco para uma viagem. Através desse percurso empreendido por Alvin, Lynch encontra uma abertura para tratar das relações afetivas com uma delicadeza pouco esperada em se tratando de seu tipo de cinema. É um feito e tanto para ele, pelo que demonstra que é capaz de surpreender público e crítica com um enredo cativante e contido até certo ponto.
À medida que vai trilhando seu caminho, Alvin vai se deparando com variados tipos, alguns com verdadeira vocação para o abandono e sedentos de afeto em seus corações. Exatamente como a jovem grávida que ele encontra logo no começo de sua odisseia particular, a quem dá conselhos sábios, assim que descobre sua situação complicada. A convivência entre eles se dá por poucas horas, o suficiente para encher de ternura aquele coração desamparado que ela carrega em seu peito, e para fazer Alvin pensar que sua empreitada já está começando a valer a pena naquele momento. Esse é outro instante de comoção gerado pelo filme, que conquista seu espectador de mansinho, e se instala no coração definitivamente até que chegue ao seu final. História real tem a seu favor ainda o roteiro bem escrito de John Roach e Mary Sweeney, que valoriza sobretudo a interpretação dos atores para um texto que soa sempre sincero e emocionante. A narrativa nunca resvala para a pieguice, o que é um risco grande, levando-se em conta o argumento que o diretor tem nas mãos. Com isso, os personagens demonstram o quanto podem ser frágeis e limitados e, por isso mesmo, palpáveis aos nossos olhos.

Lynch dedica boa parte do tempo de seu filme a espiar com sua câmera a viagem de Alvin. Basicamente, o longa é sobre o caminho trilhado por ele, e essa característica induz a plateia a se conscientizar que o mais importante não é a chegada a um ponto determinado, mas o percurso em si. O jargão “viagem emocional”, que tanto se encaixa em filmes dessa natureza, reafirma sua força aqui, já que a longa estrada que Alvin tem pela frente é a deixa para uma rememoração ora lírica, ora soturna de suas primaveras. O filme apresenta um aparentamento com uma obra monumental do cinema: o belo Morangos silvestres (Smultronstället, 1957), em que também há um senhor viajante que entra em contato com as memórias de uma vida longa e encontra vários personagens cativantes pelo caminho. Lynch não é menos idílico que Bergman no trato com seu protagonista, e dá a chance de Richard Fansworth brilhar com folga na tela. Em praticamente todas as cenas ele está presente, e domina a ação com o talento incontestável de um veterano. É impossível não sentir um pingo de emoção que seja diante de sua atuação magistral.
Infelizmente o ator faleceu apenas 1 ano depois de filmar com Lynch, e deixou uma contribuição longa ao cinema, com uma carreira que começou ainda na década de 40, em títulos como Forja de heróis (This is the Army, 1943), passando por Ressurreição (Ressurection, 1980) e Louca obsessão (Misery, 1990). Acompanhar cada minuto de sua atuação impecável nos 112 minutos de História real é um presente e tanto para os fãs de um cinema que destaca as pessoas, e não tanto os heróis, como vem ocorrendo nos últimos anos – vide a proliferação de tramas adaptadas do universo das HQs. O seu trabalho foi minimamente reconhecido com uma indicação ao Oscar de melhor ator em 2000, que ele perdeu para Kevin Spacey, que disputava com Beleza americana (Amercian beauty, 1999).
Um senão do filme é o pouco tempo de permanência de Sissy Spacek na tela. A sua personagem sofre de dislalia, e exala uma necessidade de cuidado que leva a um carinho especial por ela. A atriz encarna com muito talento e propriedade uma mulher frágil, com necessidades como a de qualquer um de nós. A narrativa do filme chega ao seu final quase junto com o fim da viagem de Alvin, que leva o seu anseio por um último contato com o irmão às raias da loucura. É então que temos a chance de ver, ainda que por um lampejo, o bom desempenho de Harry Dean Stanton na pele de Lyle, que motivou todo aquele périplo do protagonista. O abraço apertado que eles dão assim que se reveem coroa todo o esforço feito por Alvin, e a certeza de que família não se escolhe, mas se ama incondicionalmente.

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