18 de fev. de 2011

Lidando com os reveses e as redescobertas em Agora ou nunca

Mike Leigh é um diretor que gosta de chegar ao âmago da dor, o que o torna um cineasta meticuloso no tratamento de dramas humanos, dando-lhes um dimensionamento realista e quase palpável. Em Agora ou nunca (All or nothing, 2002), essa característica de seu cinema é perceptível, e fica difícil não reagir dolorosamente à história que ele apresenta ao público. O filme começa manso e discreto, com seus créditos em letras verdes, enquanto vemos ao longe, em um corredor, uma jovem aparentemente obesa que cuida da limpeza do lugar. Uma idosa passa por ali, e ignora o aviso da menina sobre o piso molhado. Ela é apenas a primeira personagem de uma família comovente.

O diretor não se preocupa em expor rapidamente os componentes dessa família, preferindo apresentar apenas perfis sutis de cada um, para compô-los ao longo de toda a duração do filme. Mais tarde, descobriremos que aquela jovem se chama Rachel (vivida por Alison Garland), e que é filha de Penny (Lesley Manville) e Phil (Timothy Spall) e irmã de Rory (James Corden). Também ficaremos sabendo que a vida desse quarteto não é nada simples, e que eles moram em uma espécie de conjunto habitacional no subúrbio londrino. Cada dia é de grande luta para eles, exceto para Rory, que não mostra disposição alguma para encarar um trabalho e, assim como a irmã, está com excesso de peso.
Enquanto Penny ganha o pão diário como caixa de supermercado, Phil é um conformado motorista de táxi, cuja apatia transpira a olhos vistos. Algo naquela família não vai bem, já que, cada membro transparece uma estranha falta de ânimo, cada qual à sua maneira. Aos poucos, vamos conhecendo mais habitantes daquele conjunto, personagens circunlóquios que têm suas próprias tramas. Cada um deles, entretanto, apresenta um entrelaçamento, ainda que tênue, com as vidas de Penny, Phil, Rachel e Rory. A começar por Maureen (Ruth Sheen), a colega de trabalho de Penny, que tenta de várias maneiras injetar alegria ao cotidiano da amiga e também vizinha, mas que também lida com dias sombrios em seu próprio.
O interessante de se notar naquele círculo de pessoas é que todos são trabalhados pelo roteiro de forma a jamais se mostrarem como planos, o que é um risco no caso de alguns, como a menina que trabalha cuidando da sujeira de uma casa de repouso que nunca tem tempo para se cuidar e ter uma boa autoestima, e do rapaz gordo que não se interessa por nada além de comer e dormir. Felizmente, o Leigh roteirista afasta a possibilidade de um tratamento estereotipado para eles, preferindo retratá-los com uma humanidade que os torna bem próximos da realidade. Além da família protagonista cujos dramas individuais se alternam em importância na tela e da amiga de todos, surgem, ainda, Donna (Helen Coker), a filha de Maureen, e Carol (Marion Bailey) com sua filha Samantha (Sally Hawkins), cujas vidas orbitam em torno dos dilemas diários com os quais Phil e companhia são confrontados. Donna e Samantha são rivais declaradas, e sua disputa se materializa na figura repulsiva de Ron (Paul Jesson), o namorado da primeira, para quem Samantha não hesita em jogar charme.
Agora ou nunca é um filme que não poupa os olhos e os ouvidos do espectador com diálogos e cenas pesadas. As relações familiares conturbadas são o grande polo gerador dessas sequências incômodas, que jogam na tela uma realidade desagradável, difícil de lidar. Rory trata a mãe com estranha agressividade, respondendo com grosseria às suas perguntas, assim como Donna é extremamente rude com Maureen e Samantha maltrata Carol. Cada um desses três lares é uma espécie de microcosmos de uma sociedade doente, que ajuda a levar o público a um estado de alerta sobre a condição de suas próprias famílias. Leigh não poupa a plateia em momento algum, fazendo que seus fotogramas demonstrem uma verdade cortante. Não há como não se condoer com as situações apresentadas, bem como desejar intervir nelas em busca de uma solução de ordem prática.
E as histórias de feições cataclismáticas só ganham em intensidade á medida em que o enredo avança, pois um dos membros da família principal manifesta uma doença que obriga diretamente os demais a se reaproximarem, e Donna tem de lidar com descoberta de uma gravidez que afugenta seu namorado e revela sua faceta mais desprezível. A partir de então, os personagens que pareciam encapsulados em uma certa embriaguez moral que os impedia de prosseguir são colocados diante da necessidade de revisão de seus comportamentos. Todos precisam lidar com uma busca pelo rompimento do conformismo, a começar por Penny e Phil, que deixam suas posturas de vítimas e de coadjuvantes de suas vidas. É nessa nova atitude de cada um, sempre com passos verossímeis e nunca tão repentinos, que Agora ou nunca cresce, e afirma a potência dramática contida em seu título, diferente em palavras do original (“Tudo ou nada”), mas cujo sentido é igualmente o de carência de mudança.
Em seus 128 minutos de duração, o longa é conduzido de forma magistral por Mike Leigh, um profissional que sabe contar uma história comovente e que não está preocupado em florear nada naquilo que apresenta. Esse é um filme pesado, que requer uma boa dose de resistência do público, que pode se ver agoniado em vários momentos diante dos desdobramentos que ocorrem na história. Agora ou nunca fala de gente desalentada, que parece conformada com uma vida medíocre e cheia de reveses, mas que apanha mais um pouco e acaba redescobrindo suas potencialidades para exorcizar seus fantasmas interiores e recobrar forças para modificar suas trajetórias. Sem necessariamente encaminhar tudo para um final feliz, o realizador conduz à reflexão de que um dia após o outro pode ser suficiente para reestruturar aquilo que se encontra em estado de franca desintegração, tornando o seu subtexto assaz otimista, a despeito da dor que se observa em cena.

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