A geração que aprendeu a conviver cotidianamente com a tecnologia faiscante dos meios de comunicação tem um representante à altura desde o lançamento de Scott Pilgrim contra o mundo (Scott Pilgrim vs. the world, 2010). O longa-metragem dirigido por Edgar Wright (Todo mundo quase morto) é um brinde audiovisual para espectadores sedentos de uma história inventiva, não tanto em termos de conteúdo, mas de forma. Nas mil aventuras do personagem-título, encarnado pelo esquálido Michael Cera, evidenciam-se muitos dos conflitos que tipificam a segunda transição etária da vida de uma pessoa: a passagem da adolescência para a idade adulta.
Tão logo o filme começa, percebe-se sua grande inovação: a história de um rapaz que se apaixona por uma garota não muito convencional e tem de enfrentar os “fantasmas” de seus ex-namorados é narrada em ritmo de videogame, recurso que confere extrema agilidade à trama. A tela é quase um parque de diversões para Wright, que utiliza ícones, divisões de cenas e até balõezinhos de pensamento dos personagens em abundância, resultando em um apelo visual inédito em termos de filmes para o público jovem e de cinema, de uma maneira geral. Mas elas, por si só, não respondem pela atratividade que esse filme exerce. Há outros elementos envolvidos na alquimia que gera a sua qualidade.
O realismo que paira sobre cada sequência é outro fator que soma pontos a Scott Pilgrim contra o mundo. O protagonista é um garoto como qualquer outro que passa por nós pela rua ou pelos corredores de uma universidade. Nesse ponto, o tipo físico longilíneo de Michael Cera ajuda bastante a tornar seu personagem mais crível. Afinal, o chamado “cinemão” já pulverizou demais seu público com rapazes dignos de serem comparados a Adônis, tão distantes de um universo mais palpável para a maioria dos jovens que procuram por um entretenimento sob a forma de imagem. A seu favor, o filme também a série de referências que faz à música e aos jogos desses tempos hodiernos, as quais vêm batidas em uma grande liquidificador e são arremessadas de modo que dão liga e se integram à narrativa.
Basicamente, esse é um filme sobre como é difícil lidar com o passado de alguém a quem se acabou de conhecer. Scott cai de amores por Ramona Flowers (Mary Elizabeth Winstead), uma garota que conhece em uma festa, e fica decidido a tê-la, mesmo que ainda seja namorado de uma outra garota, fanática por cultura de mangá, como logo fica notável para o público. E conhecer Ramona é apenas o começo de uma incrível jornada que o rapaz viverá, pois ele descobre que a menina tem sete ex-namorados que virão de encontro a ele para sabotar seu relacionamento com a jovem. A partir da entrada do primeiro desses ex-namorados, no concurso em que a banda na qual Scott toca participa, fica claro o teor algo fabulístico da obra, que lida com as questões do coração metaforicamente, ganhando o espectador logo nas primeiras cenas. Os créditos de abertura também são muito charmosos, e apresentam o elenco de forma criativa e interessante. Aos poucos, a história vai ganhando em contornos dramáticos, trilhando ora esse caminho mais sisudo, ora o caminho da comédia franca e descompromissada. Eis outra qualidade de Scott Pilgrim contra o mundo: sua despretensão assumida. Talvez por conta desse caráter despretensioso o filme se permita ser leve sem ser descerebrado. Os jovens representados aqui têm tutano, e pesam e pensam em suas decisões com certa parcimônia, embora também tenham sua dose de irresponsabilidade.
A cada novo (ou nova) ex-amor de Ramona que aparece em sua frente, Scott se vê confrontado com a necessidade premente de enfrentar seus medos e limitações autoimpostas para assumir um relacionamento efetivo com a garota. Ele tem de dar inúmeras provas de amor e coragem toda vez que, nos lugares mais improváveis, aparece um dos fantasmas que ainda assombra o coração de Ramona. Em essência, é um filme bastante simples, que alia uma história bem contada a um visual rico, que contribui para despertar o interesse de um público que gosta de se reconhecer naquilo a que assiste. Quando o filme foi exibido no festival do Rio, a procura pelas sessões foi grande, e ainda não se tinha uma certeza sobre quando ele estrearia na cidade. Ao final da mostra, ele tinha se tornado um dos grandes sucessos de público, que teve sua sede por tramas que representam com propriedade o mundo das indecisões dos recém-chegados à fase adulta aplacada. E, para gáudio dos que não puderam acompanhar a trama em sua passagem pelo Festival, sua estreia em circuito comercial carioca ocorreu apenas alguns meses depois.
Por meio de um olhar minimamente aguçado, é possível perceber que Scott Pilgrim contra o mundo é um filme totalmente de seu tempo. Um tempo em que as várias mídias dominam o cotidiano dos jovens e adultos, que não imaginam suas vidas desvencilhadas delas sob hipótese alguma. Uma vez tendo-as conhecido, não concebem-se longe delas. E o longa incorpora essas tecnologias de ontem e de hoje para pincelar o quadro de uma geração que está sempre conectada e que aprendeu a usar a descartabilidade como critério essencial para nivelar seus relacionamentos interpessoais. Isso torna inadmissível uma união duradoura, e até mesmo o vocábulo “namoro” soa como aprisionador. E, assim, nessa conjuntura de obsolescência programada, vão minando suas chances de permanência e ligação a outrem, característica que está explícita no trabalho de Wright.
O filme é cheio de participações especiais de atores que já tiveram uma incursão anterior no universo dos nerds ou dos super-heróis. Brandon Routh, por exemplo, sai-se muito bem na pele do ex-namorado vegano de Ramona, que dá muito trabalho para Scott em sua luta. O ator viveu o Super-Homem em sua mais recente versão e, aqui, empresta seu tipo físico malhado para encarnar um cara que raciocina com os músculos, e é derrotado pela inteligência de Scott e pela armadilha em que cai com sua própria dieta. Jason Schwartzman é outro que oferece um bom desempenho como o último dos inimigos do protagonista, que oferece resistência ainda maior à derrota que os anteriores. O ator esteve no elenco de Viagem a Darjeeling (The Darjeeling limited, 2007), firmando parceria com Wes Anderson, expert em tramas inteligentes. Vale citar também a presença de Kieran Culkin entre os coadjuvantes, na pele de um dos melhores amigos de Scott, com quem ele divide a casa e os desvarios. Conforme vai se aproximando de seu fim, o longa se firma como um retrato vertiginoso e verossímel da urgência de crescer e aprender, e passa longe da receita de bolo que desabona tantos filmes que se colocam pretensamente no subgênero de filme jovem. E pensar que tudo começou apenas com um rascunho de história em quadrinhos...
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