28 de out. de 2010

“Conto de inverno”, um filme sobre as complicações do amor e o desencanto

Em sua carreira como crítico de cinema, Eric Rohmer logrou um prestígio notável, que o fez figurar entre os fundadores da lendária Cahiers du cinéma, revista que ajudou a formar uma geração de amantes da sétima arte. Depois, decidiu enveredar pela senda maravilhosa da direção de filmes, iniciada com O signo do leão (Le signe du lion, 1959), para o qual elegeu como seu protagonista o talentoso Bruno Ganz, no papel de um homem que descobre que seu meio-irmão herdou toda a fortuna deixada por sua tia rica. O filme, entretanto, não obteve sucesso entre o público. Esse foi apenas o primeiro exemplar de uma filmografia longa, cujos títulos estão distribuídos por cinco décadas, comprovando a força do diretor para se manter na ativa.
Rohmer se tornou bastante conhecido por conta de certas particularidades como cineasta. Em seus filmes, a palavra tem lugar de honra, reinando absoluta sobre qualquer possibilidade de ação contínua dos personagens ou de reviravoltas do roteiro. O realizador francês se debruça sobre os diálogos, acima de tudo, e essa marca o fez ganhar alguns detratores, e outros tantos entusiastas. Suas tramas são geralmente simples, e fáceis de se acompanhar, mas costumam fugir de uma previsibilidade que levaria a assistir a um filme seu como “pacote pronto para se despachado”. São filmes curtos, que raramente ultrapassam os 100 minutos de duração, mas que podem ser apreciados como o lento derreter de uma geleira: absorventemente, dando a impressão de que levam muito mais tempo para chegar ao fim. Ele também compôs o time de diretores que construiu a chamada Nouvelle Vague, de que também foram expoentes François Truffaut, Jean-Luc Godard e Claude Chabrol, que também tiveram um passado de críticos.
Essas peculiaridades apontadas anteriormente se somam a outra que torna sua obra singular: ao longo de sua carreira, Rohmer (nascido Jean-Marie Maurice Schérer, em 1920) construiu séries de filmes que formam um conjunto de reflexões sobre a instabilidade da natureza humana. Os principais deles são a série “Comédias e Provérbios”, de que fazem parte A mulher do aviador (La femme de l’aviateur, 1980), Um casamento perfeito (Le beau mariage, 1982), Pauline na praia (Pauline à la plage, 1983), Noites de lua cheia (Les nuits de la pleine lune, 1984), O raio verde (Le rayon vert, 1986) e O amigo da minha amiga (L’ami de ma amie, 1987). Em comum, os filmes tem a característica de versar sobre a volubilidade dos sentimentos, especialmente o amor, que faz com que as pessoas se mostrem frequentemente entediadas com suas rotinas, e pensem em alternativas para modificá-las. No caso de Pauline na protagonista é insegura e indecisa, mas se mostra firme quanto a saber como quer viver o amor. E, desde o seu início, o filme é marcado por muitos dálogos. Já no início da década de 90, Rohmer decidiu investir em uma outra série de filmes, intitulada “Contos das quatro estações”. Trata-se de um quarteto de longas cujos títulos apontam, cada um, para uma das estações do ano, filmados, aparentemente, em ordem aleatória, tanto se considerarmos a ordem natural das estações no Hemisfério Norte quanto no Hemisfério Sul. Ei-la: Conto da primavera (Conte de printemps, 1990), Conto de inverno (Conte d’hiver, 1992), Conto de verão (Conte d’èté, 1996) e Conto de outono (Conte de automne, 1998). Em cada um dos filmes, uma estação do ano é o pano de fundo para uma história de encontro de um protagonista consigo mesmo, tentando rever passos de sua trajetória. Em Conto de inverno, essa protagonista é Félicie (Charlotte Véry), uma mulher linda e romântica que vive uma história de amor tão intensa quanto fugaz com Charles (Frédéric van den Driessche), um homem charmoso que mexe com sua cabeça. Mas a relação entre eles é suplantada pelo fim das férias de verão, fazendo cada um ir para o seu lado. O principal motivo dessa separação é uma confusão no momento em que eles trocam seus endereços. É a partir daí que começa o inverno de Félicie, que se vê em um período de desolação, à procura de novas companhias que a façam esquecer aquele homem que tanto a encantou. Não tarda para que ela tenha um caso com um homem mais velho, o que nos é mostrado depois de uma passagem de tempo de cinco anos. Ao mesmo tempo, ela mantém uma relação amorosa com um intelectual chamdo Löic. A incompletude que sente, porém, é perene, o que a deixa sempre com a cabeça em Charles. Além disso, há um fruto do amor entre os dois, que é o filho que Félicie carrega consigo.
A grande questão que atravessa a trajetória da personagem é: o que poderia ter acontecido caso ela não tivesse se perdido de Charles? É essa dúvida mortal que a consome, e a faz buscar alternativas que a levem ao esquecimento de seu passado idílico. O espectador que já passou por uma fase de dor de cotovelo certamente será capaz de compreender o inverno atravessado por Félicie, em maior ou menos grau. Ao longo desse período por que a personagem passa, Rohmer destila fartas doses de verborragia, bem ao gosto francês. Essa particularidade desse país é exponenciada para muito além do que se vê em outros filmes, e faz com que grande parte do público se afaste do seu cinema. Trata-se de uma tremenda injustiça, pois o diretor sabe nos envolver com suas palavras, levando à reflexão sobre as relações humanas, seja o amor, seja a amizade.
Como curiosidade, vale ressaltar que Rohmer foi professor de Letras, e chegou a escrever um livro chamado Elizabeth. Esse detalhe de sua biografia corrobora seu amor pelas palavras, que nos é tão visível a cada filme seu. O realizador faz com seus longas o que, na concepção clássica de cinema, é inconcebível: seus diálogos quase nunca são colocados com a função de dar prosseguimento à narrativa, mas funcionam como um eixo de exposição de ideias sobre temas universais. A serviço de Conto de inverno também está uma fotografia excelente, que embevece os olhos. O filme se passa na época do Natal, quando o espírito de hipocrisia brota nas pessoas. Rohmer também examina esse detalhe, e o conjunto da obra faz com que Conto de inverno seja mais de um de seus filme memoráveis.

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