Para olhares minimamente atentos, é notável que, durante sua longa carreira, Woody Allen vem fazendo constantes homenagens a gêneros e diretores com diferentes com uma habilidade verdadeiramente notável. Em vários filmes, é possível flagrar essas homenagens e/ou diálogos travados pelo realizador novaiorquino. Logo no início de sua carreira atrás das câmeras, ele dirigiu uma série de longas que faziam alusão à comédia física, a um tipo de humor muito voltado para as gags (piadas), num ritmo
rápido e rasteiro. Esse lado é bem representado por Um assaltante bem trapalhão (Take the money and run, 1969) e Bananas (idem, 1971). Allen também se aventurou, de maneira bastante peculiar, no terreno da ficção científica, quando dirigiu O dorminhoco (Sleeper, 1973), e fugiu do lugar-comum ao dialogar com a comédia romântica no legendário Noivo neurótico, noiva nervosa (Annie Hall, 1977), cujo título é português é repudiado pelos fãs da obra, e que, realmente, não faz muito sentido.
Já na década de 80, encontra-se sua menção aos filmes à moda antiga, representada pelo terno A era do rádio (Radio days, 1987), em que sua infância nos anos 40 parece ser o motor principal da narrativa. É um filme bastante afetivo, em que reinam as lembranças de um tempo que não volta mais. Allen também sempre buscou um diálogo com a obra de Ingmar Bergman, que se verifica em uma série de seus filmes, como é o caso de A última noite de Boris Gruschenko (Love and death, 1975), Interiores (Interiors, 1978), Setembro (1987) e A outra (Another woman, 1988). Nesses longas, com exceção do primeiro, as tramas centrais são dramáticas, e o cineasta fala sobre a dificuldade de comunicação entre as pessoas, numa clara alusão à filmografia do realizador sueco. E, de alguma maneira, Allen acaba dialogando também com a Trilogia da Incomunicabilidade de Michelangelo Antonioni.
Nos anos 90, o diretor prestou uma divertida homenagem aos musicais ao lançar Todos dizem eu te amo (Everyone says I love you, 1996), um filme desengonçado e simpático que inverte a fórmula tradicional aplicada ao gênero ao apresentar, entre outras coisas, uma família rica como protagonista, e uma mocinha extremamente volúvel no que diz respeito ao amor. Foi também nos anos 80 que Woody Allen decidiu dirigir uma outra homenagem. Dessa vez, ele se propôs a lançar um olhar diferente sobre os filmes de suspense, e o resultado dessa empreitada é Um misterioso assassinato em Manhattan (Manhattan murder mistery, 1993), em que sua cidade amada está presente no título de uma obra sua, como ocorrera 24 anos antes com Manhattan (idem, 1979). Aqui, ele assume o papel do protagonista Larry Lipton, que é enredado por sua mulher, Carol (Diane Keaton) numa trama de mistério e obscurantismo.
Ela é uma dona de casa entediada que cisma que o vizinho deles cometeu um assassinato, e decide ir até às últimas consequências para provar que está com a razão Para isso, empreende uma louca jornada em busca de evidências que comprovem sua teoria. O vizinho do casal é um simpático idoso, de aparência bastante inofensiva, mas que não convence Carol. Com esse argumento, Allen desenvolve mais uma de suas deliciosas comédias, em que a verborragia dá o tom da ação, que não é, necessariamente, impulsionada pelos diálogos. Os espectadores mais atentos poderão observar que o cineasta cita Alfred Hitchcock, especialmente o de Psicose (Psycho, 1960), o que fica evidente em algumas sequências. Carol é tão incisiva em sua desconfiança que acaba por trazer Larry para seu lado, já que ele também passa a acreditar que o vizinho tem culpa no cartório. A cena que mostra a visita do casal ao apartamento do homem é simplesmente hilariante, pois Carol começa a procurar loucamente qualquer prova material de que ele assassinou a própria esposa. Enquanto isso, Larry tenta manter uma conversa minimamente fluente com o vizinho, falando de assuntos estranhos, com um visível desconforto. Aliás, o riso, nos filmes de Allen, é derivada de situações corriqueiras, nas quais o público consegue facilmente se projetar. De uma maneira ou de outra, há um componente muito humano nos personagens que ele escreve, e Carol e Larry não fogem à regra.
Além de buscarem pistas que deem conta de incriminar o vizinho, eles se aliam a Ted (Alan Alda) e Márcia (Anjelica Houston), uma dupla que tem faro de investigadores e fomenta o desejo de descobrir a “verdade” do casal. Em conversas pelo telefone, Ted dá algumas dicas para que eles consigam capturar o criminoso(?), de forma a se certificar de que estavam pensando o que era certo. Um misterioso assassinato em Manhattan está construído em torno dessa briga de gato de rato entre o casal e o vizinho. Eles perseguem a verdade para fazer uma suposta justiça, mas Allen não está preocupado em esclarecer a mistério tão rápido. Na verdade, a narrativa da história demonstra que isso não é o mais importante, e que há muitas discussões de teor existencialista para se fazer que somente descobrir se alguém é ou não culpado de um crime. O impedimento moral, uma temática recorrente na obra de Allen, está presente aqui novamente, revestida de uma aura de riso.
Mas o riso em seus filmes não tem somente a tarefa de trazer leveza e diminuir a importância de uma boa trama. Os roteiros que ele escreve se encaminham para muito além disso. Em meio à busca desenfreada de Larry e Carol por desvendar o mistério, há tempo para se refletir sobre a instituição casamento. Sempre com uma dose de humor bastante peculiar, é bom que se diga. Um misterioso assassinato em Manhattan é o primeiro filme de Allen depois de sua separação traumática da atriz Mia Farrow, com quem vinha trabalhando sistematicamente há 13 filmes. O último, Maridos e esposas (Husbands and wives, 1992), é um tratado algo perturbador sobre a dissolução de dois casais que se veem questionando o ideal de felicidade imposto pelas convenções sociais. Com o fim de seu próprio casamento, o diretor voltou a se encontrar com sua parceira de cena de outrora, Keaton, com quem faz uma nova dobradinha, irresistível como as de Noivo neurótico, noiva nervosa e Manhattan.
Com a argúcia de quem entende exatamente do que está falando, mas sem soar pretensioso ou pedante, Allen revisita seus tema preferidos: a morte como realidade patente, da qual não se pode escapar, a instabilidade do amor, que pode se revelar uma armadilha quando menos se espera, as pequenas neuroses que consomem e desgastam qualquer relacionamento humano, seja o casamento, seja a amizade. Lá para a o último terço do filme, quando as loucuras de Larry e Carol chegam ao seu ápice, Allen aproveita para citar diretamente Hitchcock, fazendo menção da cena em que ocorre a perseguição a Norman Bates (Anthony Perkins), dessa vez representada pelo casal protagonista, que faz de tudo para alcançar o vizinho sob suspeita. No final das contas, o que se observa é mais um grande exercício de estilo de um cineasta que já comprovou seu talento para compor quadros verossímeis sobre as vilezas nossas de cada dia.
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