Filmado no ano de 2003, As invasões bárbaras é um exemplar precioso de bom cinema originário de um país do qual poucas produções no chegam: o Canadá. Felizmente, os espectadores brasileiros puderam ter acesso à obra, realizada em conjunto com a França, e que dá continuidade à história que o cineasta Denys Arcand havia começado a narrar em 1986, quando lançou O declínio do império americano. Nesse longa, um grupo de amigos se dividia entre homens e mulheres, reunindo-se em lugares diferentes, para discutir sobre os mais variados temas, mas privilegiando sempre o aspecto político em suas conversas. Enquanto os homens
preparavam um jantar numa casa de campo, as mulheres se refestelavam em uma academia de ginástica, onde podiam falar à vontade sobre homens, e eles sobre elas. Como o próprio título evidenciava, a questão central desse diálogos era a falência de um domínio que já não comportava em si todos os anseios e necessidades de uma geração, a mesma que havia, duas décadas antes, mostrado sua faceta mais incendiária num certo mês de maio.
Em As invasões bárbaras, Arcand prossegue esquadrinhando os medos, dilemas, alegrias e mazelas de que é composto o ser humano, mas, dessa vez, com uma fagulha ínfima de esperança, que já vinha entrando em estado de decomposição no filme anterior. Diferentemente de O declínio..., entretanto, em que todos os personagens tinha igual peso na narrativa, o centro da trama desse filme está em Rémy (Rémy Girard), que é o grande responsável pela nova reunião dos amigos. Se antes eles eram mais jovens, e não abriam mão de expor suas aspirações com a certeza de que as alcançariam, agora o discurso de cada um é bastante marcado pela modalização em cada frase. A grande temática do longa é a implosão de sonhos que vinham sendo alimentados ao longo do tempo, mas que foram sendo apagados pela força das circunstâncias contrárias. Todos eles se reencontram depois de serem informados por Sébastien (Stéphane Rouseau), o filho de Rémy, sobre o estado grave do amigo, que está na fase terminal de um câncer.
Nem é preciso dizer que o novo encontro entre eles é marcado pela melancolia, já que, de uma maneira patente, o tempo se mostra implacável e cruel com cada um, que não apresenta mais aquele doce brilho da juventude. E o que move esses amigos é, novamente, a verborragia. O roteiro, a cargo do próprio Arcand, parece ter sido
escrito para ser dito em uma curva melódica descendente, reafirmando a certeza de que nada é mais como antes, nem voltará a ser jamais. Fica evidente a tese de que todos mudamos o tempo todo, e que não podemos evitar a passagem do tempo. O ataque às Torres Gêmeas do World Trade Center, ocorrido em setembro de 2001, apenas dois anos antes das filmagens do longa, também entram em pauta, e justificam o título utilizado na produção, também entrando em pauta como um índice de que o fim de todas as coisas acaba chegando, inevitavelmente. Ao contrário do que possa parecer, no entanto, Arcand repele qualquer traço de sentimentalismo barato no reencontro de Rémy com seus amigos. Os diálogos travados entre os personagens são de uma atualidade incrível, e refletem exatamente a condição humana de nossos dias. Não há personagens planos em As invasões bárbaras, pois cada um apresenta suas várias facetas a cada instante da trama.
Desde o início do filme, percebe-se que a relação entre Rémy e Sébastien é bastante tumultuada, e isso é exteriorizado na forma como eles se tratam. Tal dissonância entre pai e filho se deve principalmente ao fato de Sébastien ter se transformado exatamente naquilo que Rémy mais detesta: um alto executivo de uma multinacional, a verdadeira encarnação do “american way of life”, tão repudiado por ele em suas aulas de história. É daí que surgem os embates homéricos que vão permeando a complicada relação deles. Vale ressaltar que as conversas entre os amigos é sempre bastante despudorada, já que eles não se privam de falar sobre assunto algum, tendo sempre um teorização a respeito daquilo sobre o que estão falando. Desse modo, o texto flui como água de nascente, sem qualquer freio ou obstáculo à naturalidade. No ano de 2004, o filme eleito o representante franco-canadense na corrida pelo Oscar de melhor filme estrangeiro, e acabou faturando o prêmio, uma láurea importante que acentuou o interesse do público pela obra.
Mas, independentemente do fato de ter sido premiado, As invasões bárbaras é um filme de valor inestimável, pois toca em temas graves, sem medo de expor feridas que cicatrizam com dificuldade, e que todos procuramos manter escondidas. Para quem assistiu a O declínio do império americano - pré-requisito para esse filme, aliás, fica nítido que o avanço dos anos trouxe muitas dessas feridas ao grupo de amigos. Se antes os sonhos eram tidos como praticamente certos de se realizar, agora todos estão cientes de que não foram plenamente capazes de mudar o mundo com suas concepções inovadoras. Nas entrelinhas de suas conversas, eles exalam um forte conformismo, que se agrava com a evolução da doença de Rémy. É por ele e para ele que todos estão novamente unidos, e é a sua condição física que acaba deflagrando um série de conflitos e reconciliações, inclusive com Sébastien. Com isso, vem a certeza de que, no fim da vida, a constatação da impotência humana parece ser remediada apenas pela proximidade daqueles que amamos.
15 de out. de 2010
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