14 de out. de 2010

"Soul kitchen”, uma comédia rasgada com atestado de qualidade

Quando se pensa em filmes cômicos, é frequente a associação com temas banais sendo tratados com superficialidade, interpretados por elencos com uma baixa capacidade de desvencilhamento do personagem que encarnam. A sinonímia, de fato, muita vezes se revela verdadeira, como quando “pérolas” como Não é mais um besteirol americano ou A hora do rango chegam às salas de exibição. Mas nem tudo está perdido nesse nicho onde a sede de divisas parece ser a única força motriz de produtores e ditos cineastas.

Soul kitchen existe, entre outras coisas, para contrariar esse pensamento pessimista, por assim dizer, do senso comum. O mais recente filme de Fatih Akin é uma jogada de mestre em termos de roteiro, atuações, cenários, trilha sonora e andamento, só para citar os aspectos que mais saltam aos olhos do espectador que decidir assistir a ele. Trata-se de uma comédia, mas uma comédia muito mais benfeita que a maior parte dos filmes que entopem os cinemas toda semana. E as qualidades de “Soul kitchen” se mostram logo em seus primeiros minutos de exibição. Na tela, acompanha-se a história de Zinos Kazantsakis (Adam Bousdoukos), um jovem dono de um restaurante que anda mal das pernas, e que dá nome ao longa. Aparentemente fadado ao fracasso, ele pensa em estratégias que visem à arrecadação de dinheiro para tirar o estabelecimento de sua situação precária.
Mas este é apenas um dos vários problemas que vão surgindo, em sucessão, na vida de Zinos. E é a partir daí que começam as sacadas geniais do roteiro do próprio Akin, que se debruça sobre uma conjunção de pequenos acidentes que transtornam a vida do protagonista. São acontecimentos simples, se considerados isoladamente, mas que, juntos, deixam Zinos sem saber que rumo dar às coisas. O roteiro do filme, a propósito, foi premiado no festival de Veneza de 2009, coroando o esforço do realizador teuto-turco em escrever uma trama que navegasse pelas águas do riso. Ele confessou, à época do lançamento do filme na cidade italiana, que teve muitas dificuldades para conduzir a história em que havia pensado, e que percebeu que a comédia é muito mais difícil de ser construída do que o drama.
E Akin vem de dramas pesados antes de Soul kitchen. Ele é responsável por um dos filmes alemães mais catárticos dos últimos anos, o também premiado Contra a parede (2003), exibido com louvor em Berlim, de onde saiu ganhador do Urso de Ouro. Em seguida, entregou um ensaio amargo sobre colapsos civilizatórios chamado Do outro lado (2007), em que aprofundou seus temas favoritos: a dificuldade de comunicação entre as pessoas, o apego às tradições como tentativa de autoconhecimento e a multiculturalidade como aspecto patente dos dias atuais. Por isso, uma incursão do iretor no âmbito cômico poderia ser, no mínimo, escorregadia, já que nem sempre os realizadores são felizes no que tange à versatilidade. Para o deleite dos fãs de um bom cinema, Akin se sai muito bem em sua mudança de rumo, já que, mais do se prestar a um entretenimento e arrancar boas risadas, Soul kitchen é um filme sobre a procura de um lugar num mundo em que a pasteurização de ideias, ações e gostos parece ter atingidos níveis altíssimos. Nas suas entrelinhas, filme tem sempre muito a dizer, e essa é a qualidade de cineastas que, por trás de assuntos triviais, conseguem apresentar visões interessantes sobre a realidade.

Não se trata, porém, de se fazer uma análise preciosista de um filme que, para além de qualquer coisa, não se propõe um ensaio sobre as contradições humanas, como quem quer encontrar algo de subjetivo até mesmo em Todo mundo em pânico, mas de enxergar que, sob uma superfície, pode se esconder um oásis de criatividade. Esse é o caso de Soul kitchen. Na história de Zinos, a cada nova surpresa que se lhe apresenta, ele é confrontado com a necessidade de encontrar um saída plausível para a resolução de seu problema. Além das dificuldades em lidar com os prejuízos que seu restaurante vem causando, Zinos tem de lidar com seu irmão Illias (Moritz Bleibtreu, de O grupo Baader Meinhof), que acabou de obter liberdade condicional. Ele quer um emprego de fachada para se manter livre nas ruas, e pede ajuda ao irmão para d
conseguir arquitetar sua farsa. Some-se a isso o cozinheiro contratado por Zinos para modernizar o cardápio do restaurante, um tipo iracundo e que não admite qualquer opinião sobre sua maneira de trabalhar. O personagem é interpretado por Birol Ünel, que já havia trabalhado com o diretor em Contra a parede, e que repete a parceria com Akin de maneira brilhante. Sua postura de enraivecimento a cada palpite dado por Zinos ou por um de seus funcionários é sempre hilária, e ele acaba sendo, em parte, responsável pela quase falência do restaurante.
A namorada de Zinos se transforma em outro de seus problemas, já que ela decide se mudar para Xangai por conta de um emprego, e o abandona sem a menor cerimônia na Alemanha. Tudo colabora para que ele decida vender o restaurante, antes que sua situação fique ainda mais complicada. Mas um conjunto de pequenas mudanças vai fazer com que os rumos de seu negócio se modifiquem, em mais um virada inventiva de Akin no roteiro do filme. Depois de muita insistência de Zinos, o chef do restaurante decide cozinhar aquilo que ele sempre sugeriu, e um DJ começa a tocar no estabelecimento, animando as noites dali e atraindo a curiosidade de pessoas que ouvem falar do Soul Kitchen. Artistas também ficam interessados pelo lugar, passando a exibir suas obras para os freqüentadores. Todos esses acontecimentos são mostrados de maneira rápida no filme, em uma seqüência embalada pela maravilhosa trilha sonora, um detalhe que sempre chama a atenção na obra de Fatih Akin, reforçando o clima de tudo-ao-mesmo-tempo-agora injetado na trajetória do protagonista. Como na vida real, ele vai do inferno ao paraíso quase sem escalas, dando uma guinada importante.
No que concerne à música, vale lembrar que Akin dirigiu um documentário em que caminhava pelo cenário musical turco, apresentando a produção de um país que ainda é visto por aqui com estereótipos. O filme se chama Atravessando a ponte – O som de Istambul (2006), e comprova a maturidade do realizador em traçar retratos da mescla de influências que rege os contatos interpessoais nos dias em que vivemos. E a música desempenha um papel importante também em Soul kitchen, podendo ser considerada como quase um personagem da narrativa. Akin impõe ao filme um ritmo bastante acelerado, entregando diálogos ágeis e inteligentes, que são capazes de deixar o público com um sorriso de satisfação no rosto a cada novo fotograma, já que ele sabe como trabalhar a palavra exatamente a favor da reação que deseja causar em sua platéia. Em sua duração, o filme traz um pouco de drama, mas a preponderância é da comédia, que se mostra muitas vezes rasgada, mas sem um laivo sequer de mediocridade.

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