A cada novo olhar lançado por Ingmar Bergman sobre aspectos vários da natureza de homem, sua perspectiva se mostrava ainda mais acurada. Com um cinema do qual uma série de diretores é tributário declarado, não há como se manter impassível ante os seus retratos contundentes das vicissitudes moldando o ser humano. Em A fonte da donzela, o realizador sueco se deebruça novamente sobre a temática da Idade Medieval, que já rendera poucos anos antes uma obra-prima chamada O sétimo selo. Filmada em 1959, a trama gira em torno de uma família tipicamente medieval, com sua crença na vontade soberana de Deus para explicar todos os fenômenos da natureza.
Nesse contexto, já é possível vislumbrar que Bergman se propõe, mais uma vez, a tratar de um tema que é recorrente em sua filmografia: a crise da fé. É ela que vai permear toda a história, de duração inferior a uma hora e meia. Os pais são católicos fervorosos, convencidos de que a filha adolescente deve ser criada segundo os mais rígidos preceitos da religião cristã. Töre (Max Von Sydow), o pai da jovem, é casado com Märeta (Birgitta Valberg), a mãe, e eles incumbem a menina de levar velas para acender em homenagem à Virgem Maria, em uma igreja que fica na região. Essa família vive na Suécia do século XIV, um período em que a população estava dividida entre o cristianismo e o paganismo, tendo sido o segundo incorporado pelo primeiro paulatinamente. Para chegar ao seu destino, a menina tem um longo caminho a
percorrer, e o faz montada em um cavalo pertencente à família, já que o casal é dono de uma propriedade rural.
Karin (Birgitta Pettersson), a filha adolescente do casal, é uma jovem bastante arquetípica, em se tratando do ambiente em que está inserida: sonha em se entregar para um único homem, que será aquele que ela amar verdadeiramente, e com quem poderá se casar e ter filhos. Como se percebe, é a emergência de um velho dogma do catolicismo, que apregoa o sexo apenas depois do casamento. A menina é a imagem clara da pureza, reforçada o tempo todo por sua postura de devoção a Maria e por sua obediência sem questionametos aos pais. Bergman fez uma escolha feliz ao escalar a jovem atriz para dar vida a personagem, e soube expor a fragilidade de que necessitava para fazer com que o público se torne seu cúmplice e se choque com a tragédia que se lhe abate.
Antes que o fato cruel suceda, no entanto, Bergman se preocupa em dissecar os meandros da fé que nutre aquela pequena família, expondo seu cotidiano de muito trabalho e de um temor no invisível que quase beira a alienação. Diferentemente do que se possa supor, contudo, o diretor não dá à Idade Média a antonomásia clássica de "Idade das Trevas". Não em seu sentido mais corriqueiro, pelo menos. E, com a progressão da narrativa, chega-se à conclusão de que não é mesmo essa a abordagem do cineasta. Se há trevas naquele período, não significa que elas sejam exclusivas dele. A condução do filme faz perceber que, onde houver o homem, sempre haverá espaço para sentimentos e atitudes negativas, como a violência, a crueldade, a lascívia e o sadismo, ainda que em estado latente. Tal consideração permite que se faça um paralelo entre a situação verificada na tela e a conjuntura atual.
É importante salientar que Bergman refuta qualquer traço de maniqueísmo com A fonte da donzela, preferindo lançar suas observações sobre o caráter dual do homem. Voltando ao enredo do filme, é no caminho para a igreja que Karin sofre com a tragédia. Ela é abordada por dois pastores de cabras, que a estupram sem qualquer piedade e, em seguida, ela é assassinada por eles. A sequência é apresentada por Bergman pacientemente, e mistura uma certa dose de crueza com um quê de poesia, caracterizando o cineasta como um exemplar raro entre os seus, já que não está interessado em simplesmente filmar a violência por si só. Como em um filme posterior, Da vida das marionetes, em que analisa exaustivamente o episódio do assassinato de uma prostituta, aqui ele dedica alguns bons minutos a assinalar até onde um homem pode avançar em seu instinto de mais baixa vileza. Como um verdadeiro esteta da imagem, Bergman compõe um quadro de pura angústia e desolação ao apresentar ao espectador a morte dolorosa daquela personagem tão angélica.
O questionamento às instituições religiosars atravessa todo o filme, e reforça o apreço do realizador pelo tratamento das dúvidas a respeito da existência: por que estamos aqui?, qual o sentido de viver e morrer?, se Deus existe, por que não se comunica?, entre outras questões geradoras de inquietude. Seguindo-se à morte de Karin, vem uma grande e terrível coincidência sobre a família, que não entende porque a menina demora tanto a voltar para casa. Os mesmos pastores que foram responsáveis pelo assassinato da adolescente de 15 anos vão prosseguindo em sua caminhada, até que chegam à casa de Töre e Märeta para pedir-lhes comida e água. A mãe já se encontra aflita, pois não tem notícias da filha e quer que ela volte, o que faz com que o marido procure tranquilizá-la, lembrando-lhe que a garota já dormiu na cidade em outras ocasiões em que fora à igreja.
Não tarda, porém, para que os pais de Karin constatem que a menina está morta, o que se traduz na percepção de que os pastores estão com a roupa que a filha vestia quando de sua partida. Ao relatar o fato a sós para o marido, instaura nele um forte desejo de vingança, do qual ela também se torna imediatamente partidária. A partir daí, o filme ganha contornos ainda mais obscuros, acentuada pela fotografia de Sven
Nykvist, seu habitual colaborador, o diretor captura com sua câmera observadora o desenrolar da fúria de Töre contra os homens que desonraram e tiraram a vida de sua filha. No fim das contas, A fonte da donzela se estabelece como um inteligente debate sobre o valor da fé cega, e até que ponto a bondade pode resistir ao ataque do mal, mostrado sob a forma de uma alegoria, com a família que tem sua felicidade destruída por obra de malfeitores. Assistir ao filme atiça a necessidade de se discutir a respeito do tema, e é mais uma prova concreta de que Bergman sempre foi talentoso em espiar as agruras da condição humana, dessa vez, por meio de uma teia soturna de coincidências.
2 de out. de 2010
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