25 de out. de 2010

Rotinas insossas quebradas por um visitante em “Whisky”

O cinema latino-americano é frequentemente associado a pequenas histórias narradas de formas simples, sem grandes arroubos visuais ou viradas mirabolantes em seus roteiros. Para alguns, é demérito. Para outros, é uma qualidade preciosa. Seja como for, Whisky, longa-metragem rodado em 2004, merece ser conferido, para que as conclusões de cada um possam ser tiradas. Não há nada de extraordinário no filme de Juan Pablo Rebella e Pablo Stoll. Pelo contrário. Whisky é sobre a vida de Jacobo (Andrés Pazos), um pacato dono de uma pequena fábrica de meias que mora em Montevidéu, capital do Uruguai, e leva a vida de maneira estranhamente repetitiva.
Essa característica de sua personalidade é assinalada o tempo todo pelos diretores, que compõem quadros semiestáticos, bastante rígidos, de seu cotidiano insosso. Por várias vezes, vemos a sua chegada à fábrica, sempre com a câmera um pouco afastada da cena, até que o protagonista surge em cena. Ele abre as portas de seu estabelecimento, e é sempre esperado por Marta (Mirella Pascual), sua leal funcionária. É com ela que ele troca as poucas palavras que pronuncia, numa relação marcada pela distância, e que é muito mais profissional que de amizade, apesar de estarem juntos há tantos anos naquele negócio. Fica claro para o espectador que eles não têm nada de surpreendente a apresentar, e que podem ser equiparados a qualquer um de nós. Mas é exatamente nessa observação discreta de fatos banais que reside o triunfo de Whisky, cujo título, a propósito, desperta interpretações equivocadas a respeito de seu conteúdo.
A explicação para ele vem de forma sutil, bem depois da metade da história, como o público atento poderá perceber. Assim como perceberá a solidão de Jacobo, que vive em uma pequena casa, sem qualquer companhia, desde a morte de sua mãe. Ele já é um sexagenário, e tem na fábrica de meias a sua única fonte de alegria. Tudo se modifica em sua vida comum quando ele recebe a notícia de que seu irmão Herman (Jorge Bolani) irá visitá-lo. Assim como Jacobo, ele tem uma fábrica de meias, e vive há anos no Brasil. Saber que seu irmão está prestes a voltar faz que o sentimento de competição de Jacobo aflore novamente, e lhe dá uma ideia algo inusitada. Ele propõe a Marta que se passe por sua esposa durante o período em que Herman estiver na cidade, para mostrar ao irmão que está muito bem, obrigado, com direito a uma dedicada companheira. Marta aceita a proposta, de maneira bastante resignada, diga-se de passagem, como se fosse mais uma de sua obrigações como funcionária.
O impulso dado pela chegada de Herman é um dos maiores rebuliços da narrativa, que caminha a passos curtos, sem sobressaltos. Herman parece ser a única fonte de calor em meio a personagens tão apáticos, e sua rivalidade com Jacobo é apresentada de maneira discreta, muito mais perceptível nos diálogos frios e nos olhares atravessados que, vez por outra, eles travam um com o outro. Marta, por sua candura e suas poucas palavras, é uma espécie de troféu ostentado por Jacobo, que inventa para si até mesmo uma lua de mel com a “esposa”. Tudo para evitar que Herman descubra a farsa que os dois armaram. Na tentativa de serem o mais convincentes possível, Jacobo e Marta vão a um fotógrafo, e tiram uma foto para demonstrar que são uma casal feliz e estável. É durante essa sessão de fotos que o título do filme é pronunciado, e eles dizem “whisky” para que passem a impressão de estar sorrindo. Essa mesma palavra voltará a ser dita por eles, quando estiverem em companhia de Herman, que também fotografa com o suposto casal.
Whisky tem o mérito de se mostrar como um drama intimista, cujo foco é na estrutura profunda de cada um de seus personagens. A trama segue um fluxo lento e cativante e, mesmo que a plateia não se veja como capaz de agir tal qual os protagonistas, é possível compreender o porquê de eles adotarem suas respectivas condutas. Em meio à aparente frieza de Jacobo, Marta e Herman é perceptível uma fagulha de humanidade, que faz cada um deles ser extremamente verossímel. À sua maneira, cada qual está em uma zona de conforto, da qual é forçado a sair. A aproximação de Marta e Jacobo, com vistas a enganar Herman, não é suficiente para que eles consigam esboçar uma relação mais empolgada. Rebella e Stoll flagram essas aparências sufocantes, e a força das conveniências que impedem de ir além. O trio de personagens acaba sendo enredado por uma mentira que, para se sustentar, precisa de mais e mais mentira sucessivas. E o roteiro simples, também escrito pelos diretores e por Gonzalo Delgado, valoriza as interpretações naturalistas de Andrés Pazos, Mirella Pascual e Jorge Bolani, capazes de matizar com propriedade os estágios de percepção da realidade que vão atravessando seus respectivos personagens.
Em resumo, Whisky é um filme que fala da artificialidade das relações humanas na contemporaneidade. Muitas palavras não ditas, bloqueios sentimentais, impessoalidade e a distância mesmo quando parece que se está tão próximo. Os três protagonistas são a encarnação dessa dificuldade de se chegar ao outro, que tanto aflige as pessoas nos dias hodiernos. Fala-se muito em liberdade, mas o homem não deixou totalmente de lado a sua essência conservadora. E esse conservadorismo se manifesta quando se está diante de situações novas, como é o caso de Jacobo, Marta e Herman. A alternativa para tal situação talvez possa ser espargir nossos medos ao lidar com o outro.

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