Não há qualquer dúvida sobre o tema de Viajo porque preciso, volto porque te amo: o vazio provocado pela sensação de abandono. Um abandono perpetrado pela pessoa amada, que se vai levando consigo parte da pessoa que abandonou. Sim, é um filme sobre distâncias e ausências. Distâncias entre os seres humanos que, mesmo vivendo lado a lado, estão separados por um terrível abismo invisível mantido pela incapacidade latente de se comunicar. Ausências que se manifestam quando cada um descobre que o seu interlocutor não é um mero reflexo seu.
Narrado por um protagonista que jamais mostra seu rosto, cujo intérprete é creditado ao final da exibição como Irandhir Santos, o filme acompanha a trajetória de um homem – que também jamais é nomeado – pelas estradas nordestinas. Ele é um geólogo que, à medida que adentra pelo sertão brasileiro, luta para intensificar seu processo de esquecimento da mulher que o deixou, ao que parece, sem grandes explicações. Essa é a deixa para um longo percurso que, mais do que a execução de um trabalho, é uma viagem que ele faz em busca de si mesmo. Tudo o que é apresentado na tela é filtrado pelo olhar lacrimejante do protagonista.
O longa é uma parceria acertada entre Marcelo Gomes e Karim Ainöuz. Dois cineastas que se tornaram responsáveis por retratos contundentes e, ao mesmo tempo, afetuosos do Nordeste brasileiro: Cinema, aspirinas e urubus (2005) e O céu de Suely (2006), respectivamente. Nessa união dos dois, ele novamente lançam um olhar comovido e comovente sobre uma região tida como problemática em todo o país. E se propõem a refinar essa abordagem usando o minimalismo, traduzido em uma narrativa econômica, concêntrica no que tange ao drama pessoal de um homem que se desloca por se sentir deslocado. Dirigindo um caminhão que leva o material destinado à procura de lugares para a instalação de poços, esse geólogo vê um Brasil de mil cores e caras, de mil gentes e misturas. Um país que está muito longe da pasteurização que se faz habitualmente por estrangeiros, e até mesmo por cidadãos nativos. A frase que serve de título ao filme aparece também dentro da história, e é vista pelo protagonista escrita no para-choque de um caminhão, sendo repetida por ele em voz alta algumas vezes. Para o personagem, aquelas palavras são a síntese de sua condição naquele momento.
Fica perceptível a maneira talentosa com que Gomes e Ainöuz matizam o sofrimento daquele homem, que se vê em todos os lugares, bem com vê a mulher que o deixou. A câmera são seus olhos, que perscrutam o que há de essência naquilo que se vê. A viagem, nesse sentido, se estende para além do óbvio, e afasta a produção da dupla de realizadores do esquema previsível proporcionado pelo circuito descaradamente comercial. Não há, contudo, nada de errado com os filme ditos pipoca. Clarice Lispector afirma, em A via crucis do corpo, que existe hora para tudo, e que isso inclui também a hora do lixo. Mas Viajo porque preciso, volto porque te amo não se enquadra, definitivamente, nessa “categoria”.
Os diretores apresentam outros aspectos que engrandecem o filme. Eles casam uma trilha sonora recheada de músicas bregas (ao menos na concepção centro-sulista) com o estado de desalento em que seu protagonista está imerso. As canções falam de corações partidos, de amores que se foram deixando marcas profundas, e ele se identifica com aquilo tudo. Ao mesmo tempo, o personagem é atravessado por um sentimento de negação ao que se passa com ele, chegando a desqualificar a mulher que o deixou. É como se, assim, ele conseguisse expurgar a falta que ela lhe faz. Além de comover o espectador com um brilho inesperado, por assim dizer, do sertão, Gomes e Ainöuz construíram um longa no qual a ênfase está na palavra. Mais uma vez citando Clarice Lispector, em seu famoso conto O ovo e a galinha, ela trata dessa questão de falar longamente: "Falai, falai, estou cansada". E falar é exatamente o que o protagonista mais faz ao longo de todo o filme. A maior parte do tempo, inclusive, fala sozinho. Aos mais taxativos, pode ser um sinal franco de loucura, mas é a sua maneira de desabafar, fazendo quem asiste ao filme de interlocutor.
Dessa maneira, os realizadores aproximam quem está assistindo ao filme, fazendo que o público seja cúmplice daquela dolorida cruzada rumo à aceitação do fim. Na verdade, essa acaba sendo a grande inquietação do ser humano: saber que todas as coisas, ou pelo menos, a maioria delas, tem um fim. E que, muitas vezes, não está ao nosso alcance modificar essa realidade. A estrada, bem como nós, é testemunha fiel desse percurso, e deixa perceber que, dessa vez, os diretores praticamente abriram mão de um eixo narrativo ou mesmo de um enredo. Interessa muito mais flagrar as estratégias de autoconvencimento de homem sobre uma verdade que lhe é aterradora. E, ao se deidicar somente a isso, Gomez e Ainöuz extraem poesia da banalidade.
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