No ano de 2005, o olhar cinéfilo se voltou para a Espanha, que apresentou ao mundo mais um bom exemplar de sua produção fílmica. Depois de vencer muitos prêmios importantes, "Mar adentro" se consagrou definitivamente faturando o Oscar de melhor filme estrangeiro. Sem falar em vitórias no Goya, a versão do Oscar daquele país. Natural que se questione quais são as qualidades que fizeram desse filme ganhador em tantas frentes distintas. Seu argumento é dos mais questionadores e polêmicos, e isso pode explicar, em parte, seu poder de comoção e atração sobre as plateias. Mas o longa não se resume a isso.
No centro da ação está Ramón Sanpedro (Javier Bardem), um homem marcado por uma tragédia que o consome há anos a fio. Ainda na juventude, quando era atleta, sofreu um acidente muito grave, que o deixou tetraplégico e, por conseguinte, o condenou a uma cama em seu quarto. Com isso, perdeu a liberdade que tanto amava, e que é essencial a qualquer ser humano que se preze. Desde o episódio terrível até hoje, transcorreram-se nada menos do que 26 anos. Para qualquer pessoa, esse período todo confinado em praticamente um único ambiente, e com a possibilidade de movimentos mínimos, é desolador. Para Ramón não é diferente.
Tanto é difícil para ele estar preso a uma cama por tannto tempo que seu grande desejo é poder morrer com dignidade. Sim, "Mar adentro" versa sobre um tema bastante espinhoso, do qual a grande maioria de nós fugimos peremptoriamente: a eutanásia. E um assunto tão delicado só pode ser tratado com muita delicadeza, como o faz Alejandro Amenábar, diretor do longa. Em seu currículo, ele apresenta poucos títulos, mas o suficiente para ser lembrado como um diretor de relevância. São dele "Morte ao vivo", uma investigação sobre o uso de violência exacerbada no cinema, "Preso na escuridão", um ensaio tenso sobre a memória - que geraria pouco tempo depois uma refilmagem nos EUA, "Vanilla sky" e "Os outros", ótimo exemplo de como um bom suspense não depende de insights estroboscópicos.
Depois dessa breve apresentação de sua obra pregressa, fica um pouco mais simples entender o porquê da grande qualidade de "Mar adentro". Amenábar parte de um tema árido para levar seu público a uma reflexão profunda a respeito do direito de viver e de morrer de cada indivíduo. O primeiro é dado a todos mas, quanto ao segundo, ainda encontra uma série de reservas, tanto entre os membros da sociedade, quanto perante a lei. A questão da eutanásia é pesada, mas o cineasta consegue atenuar sua intensidade inserindo sequências que beiram o poético. Numa trama em que há um personagem privado de sua capacidade de andar, correr, e pedalar, cenas que trazem seu voo imaginário sobre os campos abertos de sua pequena cidade são a porção de singeleza de que o enredo necessita.
Ramón trava uma luta na Justiça para conquistar o direito de morrer em paz, por meio da eutanásia. Assim como acontece com o público, sua decisão gera opiniões divididas, e há dois polos opostos com os quais ele dialoga, justificando sua escolha para quem é contra sua vontade, como é o caso de Rosa (Lola Dueñas, uma pitada de dulçor no filme), uma mulher simples que não admite que ele tenha tanto controle sobre seu prróprio destino. O ato de Ramón é de muita coragem, e faz a discussão sobre ser ou não legítimo uma pessoa com incapacidade permanente morrer pelas mãos da Medicina extrapolar os limites das quatro paredes da sala de cinema ou da sala da casa de quem está assistindo ao filme. Afinal, a tese defendida através do roteiro, também a cargo de Amenábar, é justa? Cabe ao espectador decidir, favoravelmente ou não, sobre o assunto.
Com seu discurso lúcido, mesmo depois da idade avançada, Ramón é capaz de convencer qualquer um da correção de sua escolha, e trava diálogos muito interessantes com os interlocutores que dele se aproximam. Ao seu lado está sua advogada, que luta com unhas e dentes para que seu direito de morrer seja realizado. Por tratar da eutanásia, "Mar adentro" acaba convocando a Igreja Católica e outros setores da sociedade. A mobilização que provoca é um de seus méritos.
Não se pode deixar de destacar também a atuação irrepreensível (esse adjetivo já se tornou um lugar comum) de Bardem. Desde sua primeira parceria com Almodóvar, em "Carne trêmula", ele já vinha mostrando que é um ator de primeiro time (ops, outro lugar comum), sendo capaz de traduzir belamente emoções tão destoantes quanto a alegria e a inquietude com igual talento. Sua caracterização para viver o personagem com muito mais anos do que ele também é bastante acertada, colaborando para que o filme se torne ainda mais bem realizado. Recentemente, "Mar adentro" ganhou uma espécie de primo-irmão vindo da França, "O escafandro e a borboleta". No filme de Julian Schnabel, como aqui, o protagnista passou por um grande revés que lhe trouxe a paralisia. Mas, diferentemente de Ramón, ainda crê que viver vale a pena. São discussões parecidas, mas com abordagens distintas. O grande acerto de "Mar adentro" é fazer com que pensemos no que é estar vivo, e no quanto ainda podemos dar valor à vida.
7 de mai. de 2010
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