Acostumado a ambientar suas produções em Nova York, Woody Allen decidiu mudar de ares em 2005, quando dirigiu "Ponto final". Sua tão amada cidade saiu de cena para dar lugar a Londres, um dos recantos mais caros e charmosos de toda a Europa. A mudança não se deu apenas nesse filme, mas se estendeu para seus dois trabalhos seguintes, a comédia "Scoop - O grande furo" e o drama "O sonho de Cassandra". Involuntariamente, portanto, Allen acabou criando a "trilogia londrina". Para além dessa novidade em sua filmografia, o diretor também decidiu abrir mão do jazz, que acompanha quase todos os seus filmes, e utilizou na trilha sonora de "Ponto final" belas óperas.
De fato, esse outro estilo de composição harmoniza melhor com o tom intimista que ele imprime em sua primeira produção inglesa. Allen também se limita a ficar atrás das câmeras, como fizera no ano anterior, em "Melinda e Melinda". Segundo o próprio, ele já estaria muito velho para acumular as funções de ator e diretor em um mesmo filme. Para seus detratores, que o julgam egocêntrico, é uma razão a menos de crítica. "Ponto final" também representa uma novidade no universo alleniano nesse sentido
Ao longo de sua carreira, ele sempre atuou nos filmes que dirigiu e, quando não o fazia, algum ator assumia o papel de seu alter ego. Assim o foi em "Neblina e sombras" (1992), em que John Cusack incorporou seus trejeitos com perfeição, e também em "Celebridades" (1998), filme em que ficou a cargo de Kenneth Branagh a interpretação do indivíduo neurótico, inseguro e tartamudo que protagoniza as ações dramáticas. Mas isso não acontece em "Ponto final". O protagonista desse longa não lembra nem de longe as esquisitices que são tão caras ao diretor. Na verdade, Allen navega por águas mais densas dessa vez. O que não significa dizer que suas comédias de até então não sejam dotadas de profundidade.
Chris Wilton (Jonathan Rhys-Meyers) é o jovem protagonista agora, que deseja ardentemente ascender na escala social. Nem que para isso tenha de abrir mão de alguns princípios básicos que regem a moral humana desde tempos imemoriais. Ele é um ex-tenista que agora sobrevive dando aulas de tênis em um clube. Tem sim, certa dose de inquietude e de hesitação, o que o torna tão humano quanto qualquer um de nós. Ponto para Allen nesse sentido, pois seus roteiros sempre acabam encontrando uma maneira de aproximar os personagens de qualquer um de nós, gerando uma empatia quase imediata nos espectadores. A diferença é que nesse "Match point" (o título original, e também o outro nome pelo qual o filme é conhecido no Brasil) todo o comportamento do personagem é canalizado para uma esfera mais contida, sem as conhecidas pantomimas impressas pelo diretor.
A grande chance de virada na vida de Chris, que então vinha sobrevivendo graças às aulas de tênis que dava em clubes, surge na figura de Tom Hewett (Matthew Goode). Os dois se conhecem numa das idas de Tom ao clube, e Chris fica logo sabendo que aquele jovem é rico e importante na cidade. Não tarda para que haja uma aproximação entre eles, e Chris também descobre que seu mais novo amigo tem uma irmã trintona, que há muito espera por um namorado. Ela se chama Chloe (Emily Mortimer, uma atriz subestimada), e é doce e tímida. A isca perfeita para que nosso jovem se aproveite e alcance sua tão sonhada prosperidade.
E Chris realmente consegue. Pouco tempo depois, eles se casam, para felicidade de todos os envolvidos na história. Mas nada é tão simples como parece, e a complicação atende pelo nome de Nola Rice (Scarlett Johansson), uma mulher sensual e atraente que pode representar um grande perigo na escalada do rapaz. Nola é a futura esposa de Tom e, portanto, futura cunhada de Chris. Um fato importante que se torna um mero detalhe diante da força do desejo que opera sobre eles. Por isso, acabam se tornando amantes dos mais voluptuosos. O mundo externo parece ser esquecido por eles a cada novo encontro furtivo, e Allen não faz por menos em sequência carregadas de erotismo, temperadas com sugestivas árias de ópera, que arrastam a plateia para a posição de cúmplices daquele adultério.
O noivado de Nola e Tom não vai à frente, e Chloe, por sua vez, tem grande dificuldade para engravidar. Com o fim de seu noivado, Nola só pensa em assumir o romance que mantém com Chris. Fica claro a essa altura do filme que a narrativa é marcada pelo tempo psicológico, já que apenas quando o protagonista percebe os fatos e suas consequências que se nota que já se passaram vários meses. Diante da insistência de Nola para que Chris se separe da mulher, o relacionamento entre eles entra numa espiral de discussões e conflitos. Instaura-se então o impedimento moral para o personagem, o que também caracteriza a obra de Woody Allen. O jovem precisa encontrar um equilíbrio entre sua boa vida, rodeado de amigos e de viagens a belos países e seu caso secreto com Nola, que não mais se conforma com sua condição de amante.
A solução encontrada por Chris para seus problemas é, no mínimo, inesperada, tanto em termos de filmes allenianos quanto em termos de cinema em geral e vida cotidiana. Nesse ponto a ausência de julgamento do diretor fica patente, já que ele deixa ainda mais claro com que peças vinha jogando esse xadrez até então para traçar o percurso cheio de percalços de Chris: com os peões da amoralidade. Como muito já se falou em várias críticas a respeito do longa, há em "Ponto final", um diálogo indireto com "Crime e castigo", famosa obra literária de Fiódor Dostoiévski. Essa intertextualidade entre um roteiro seu e o romance da literatura russa já havia sido testada 16 anos antes, quando Allen dirigiu "Crimes e pecados" (1989). A grande questão levantada pelo cineasta é: até que ponto a sorte responde por aquilo que nos acontece ou que deixa de nos acontecer? Em cima dessa indagação, o novaiorquino fez um de seus trabalhos mais brilhantes, talhado por um estilo sofisticado, com diálogos inspirados, mas dessa vez voltados para o drama, que ele mostra também dominar. Além disso, o sentimento de culpa também aparece com grande força na história, mas não necessariamente existindo, por assim dizer.
Acompanhar o desdobramento dos fatos que se seguem à grande encruzilhada na qual Chris se encontra é tentar entender como podemos ser responsáveis pelos nossos destinos, e que muitas das escolhas estão em nossas mãos. Ninguém mais pode ser responsabilizado por nossos fracassos e nossos êxitos a não ser nós mesmos, quando damos poder demais a quem está ao nosso redor, sem que nos demos conta de que a felicidade não está nas coisas nem nas pessoas. Onde então ela estará? Respostas, existem muitas. Mas nenhuma ainda pode ser considerada definitiva nesse mundo de cientificismo e extrema racionalidade.
13 de mai. de 2010
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