2 de ago. de 2011

Descontração, charme e leveza em 2 dias em Paris


É cada vez mais comum que atores com uma carreira razoavelmente consolidada se aventurem na direção de um filme, demonstrando competência e dedicação como realizadores. Julie Delpy faz questão de estar na lista, e oferece, para isso, seu 2 dias em Paris (2 days in Paris, 2007), uma comédia leve e descontraída sobre um casal que vive em Nova York mas, antes de retornar para sua cidade, decide passar os tais dois dias na capital francesa. Ela é Marion (Delpy), uma fotógrafa francesa que, ironicamente, tem um defeito na retina que a faz enxergar o mundo como uma espécie de molde vazado, como ela mesma tenta explicar para o espectador logo nos primeiros minutos de projeção. Ele é Jack (Adam Goldberg), um design de interiores totalmente hipocondríaco e paranoico, que se arrisca a falar duas ou três frases em francês. Ambos os personagens são apresentados de modo simpático, atravessados pelo olhar aguçado da protagonista, que também a narradora em off que acompanha as desventuras do casal naquelas 48 horas que parecem intermináveis para os dois.

O filme tem a seu favor a clara despretensão, com algumas falas inspiradas, oriundas da imaginação da faceta roteirista de Delpy, que faz certas piadas politicamente incorretas envolvendo os comunistas, regras de etiqueta e até mesmo a própria nação francesa, de um modo que só uma nativa poderia fazer. A diretora também brinca com certos arquétipos relativos a casais “nerds”, como o são Marion e Jack. Cada um deles carrega consigo certos traços de neurose que transformam fatos cotidianos em peripécias de grandes proporções. No início do filme, por exemplo, eles acabam de chegar de uma estada desastrosa em Veneza, por conta de uma crise alérgica de Jack, que ingeriu camarões na cidade aquática. A quase falta de planejamento do casal para estar em Paris, bem como a dificuldade de Jack com a língua materna da namorada, com quem está há 2 anos, gera uma série de situações com um quê de hilariantes.

Cada instante de 2 dias em Paris é dotado de um insight interessante sobre relações a dois e outras temáticas de maior ou menor relevância, que acabam por transformar a comédia em uma singela carta de amor à Cidade Luz, com seus belos ângulos e paisagens que inspiram a paixão. Além do mais, o filme se vale de uma premissa comum para discorrer com fluidez sobre como pode ser complicado lidar com os defeitos do parceiro, assim como com o seu passado. Esse é o grande problema enfrentado por Jack a cada vez que ele está passeando com Marion e ela encontra alguns de seus vários ex-namorados e não entende absolutamente nada das conversas que ela tem com eles. A agonia vai tomando conta do personagem, que começa a se dar conta de que talvez não conheça tão bem assim a sua companheira. O coloquialismo com que todos se expressam é outro detalhe marcante na composição de 2 dias em Paris. A maioria das piadas surge dos comentários desbocados de um dos dois protagonistas sobre a sua própria relação ou sobre a dificuldade de lidar com os familiares de Marion, que não perdem as muitas chances de zombar do futuro genro e sua ignorância no francês. Em dado momento, o pai de Marion pergunta a ele sobre sua opinião acerca de Renoir, induzindo o design a considerá-lo um escritor, mas ele não cai na armadilha. Na mesma ocasião, um coelho servido como almoço desperta algumas lembranças desagradáveis que remetem à infância do pobre Jack.



Cumpre ressaltar a química notável entre Julie Delpy e Adam Goldberg como seus personagens. Ele foi convidado pela atriz com certa antecedência ao início das filmagens, já que ela pensou no argumento alguns anos antes de transformá-lo em filme. Ainda quase um desconhecido, ele encarna com desenvoltura a figura de um homem cheio de inseguranças, apesar da aparência descolada, que inclui uma barba sempre por fazer e tatuagens no braço. Delpy, por sua vez, encara mais um longa-metragem no qual dá vida a uma personagem que discute a relação com o parceiro, como já fizera duas vezes com Ethan Hawke, ao ser dirigida por Richard Linklater em Antes do amanhecer (Before sunrise, 1995) e Antes do pôr-do-sol (Before sunset, 2004), em que dialogava longamente sobre possibilidades vindouras e perdidas, respectivamente. No caso de 2 dias em Paris, entretanto, é a verve cômica que prevalece o tempo todo, seja pelo inusitado das situações que vão surgindo uma após a outra, seja pelo comportamento destrambelhado do casal, risível por si só. Outro detalhe que vale ser comentado é a presença dos pais da própria Delpy em cena, que dão vida aos pais de Marion. Ambos também são atores, e ela diz nos extras do DVD que não os teria chamado se não o fossem. Esse detalhe também ajuda a conferir mais veracidade às cenas e a compor um quadro familiar interessante na narrativa.

Esse não é o primeiro filme dirigido por Julie Delpy. Ela também é responsável por Looking for Jimmy (2002), sem título em português e sem passagem pelo circuito brasileiro. O que chama mais a atenção no caso de seu segundo filme é a estrutura verborrágica, que privilegia a palavra em detrimento da ação, e se avizinha a um cineasta que a quem as conexões interpessoais por meio do discurso também são caras: Woody Allen. É possível vislumbrar ecos de interpretação alleniana nos trejeitos de Marion e Jack, cada qual à sua maneira. Na verdade, talvez essas sejam as referências mais óbvias no cinema praticado por Delpy em 2 dias em Paris, que flerta com clássicos do diretor, como Noivo neurótico, noiva nervosa (Annie Hall, 1977) nas passagens em que se propõe a discutir sobre a evanescência que pode acometer qualquer relacionamento amoroso, mas da qual alguns podem escapar com sucesso. Os personagens poderiam perfeitamente ter sido escritos por Allen, e reforçam o diálogo que o diretor trava com o cinema europeu, que é a escolha feita por Julie Delpy aqui também. Nos minutos finais, ainda sobra espaço para uma constatação algo cáustica sobre namoros, noivados, casos e casamentos, demonstrando a certeza de que lidar com os defeitos e qualidades do outro é, basicamente, entender que não se está diante de um reflexo no espelho.

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