14 de ago. de 2011
Investigações sobre a incerteza em Luz de inverno
Quando dirigiu Luz de inverno (Nattvardsgästerna, 1962), Ingmar Bergman já tinha no currículo a profunda investigação sobre a crise da fé chamada O sétimo selo (Det Sjunde inseglet, 1957), que arrebata ainda hoje a população cinéfila por suas qualidades notáveis. Ele também já dirigira A fonte da donzela (Jungfrukällan, 1959), um ensaio a respeito dos abalos que os justos podem sofrer sobre a terra. Com a chegada da década de 60, o cineasta se lançou no empreendimento de construção da chamada Trilogia do Silêncio, cuja abertura se deu com Através de um espelho (Såsom i en spegel, 1961) e prosseguiu com o filme citado inicialmente. A exemplo do anterior, esse segundo exemplar é um mergulho intenso nos recônditos da alma humana, com o aparente intuito de desnudar os temores e recalcitrações oriundas da natureza humana, em constante estado de variação e reorganização. Claramente, é mais um filme que se origina da inquietude de Bergman no que tange aos mistérios relativos à esfera divinal.
Como em tantos outros trabalhos, Luz de inverno traz uma nova colaboração do diretor com Gunnar Björnstrand e Max Von Sydow, os atores mais recorrentes de sua filmografia. Aqui, eles personificam, cada qual a seu modo, o desespero da incerteza sobre o caminhar da vida e do mundo. O primeiro é Thomas Ericsson, o pastor de uma pequena cidade que ministra as missas em bom latim, como convinha ao tempo em que a narrativa se situa. A sua intimidade com a vida cristã, entretanto, não o impede de estar atravessando uma intensa crise espritual, que deriva, em parte, da notícia de que a China está investindo em bombas nucleares. Esse mesmo fato está respondendo pelo abalo das convicções do segundo personagem, Jonas Persson, um simplório pescador que procura por respostas no pastor, sem imaginar, inicialmente, que ele possa lhas dar. O argumento do filme é tão-somente esse, e é mais do que suficiente para, ao longo de pouco mais de uma hora, Bergman transborde sua conhecida busca por entender o mundo ao redor e o silêncio de Deus, um conteúdo que, de uma forma ou de outra, atravessa toda a sua obra, sempre tão sinestésica e atemporal.
A simplicidade que se reveste de uma grande profundidade é um dos grandes trunfos do filme. Em entrevista recente, o realizador afirmou que, na verdade, ele não criara uma trilogia como dissera à época dos tais filmes, mas que dissera que era uma série pelo fato de as trilogias, naquele momento, estarem muito na moda. O comentário do diretor soa um tanto evasivo, pois, no fundo, os filmes guardam muitas afinidades entre si, podendo, de fato, ser pertencentes a uma trilogia. Especificamente em Luz de inverno, a potência dramática é verificada nos diálogos doloridos que são travados entre os personagens. Eles são a demonstração do uso hábil da palavra feito pelo diretor. Ela é, por assim dizer, sua grande arma, aliada à imagem, para exumar suas dúvidas e galvanizá-las nas figuras daqueles homens, sendo, cada um deles, um alter ego seu. Jonas busca palavras de conforto em Thomas (note-se a semelhança fônica com o nome de Tomé, o discípulo que precisava ver para crer), mas o pastor é incapaz de emiti-las, por seu estado também ser o de desalento. Não tardará para que aquele homem encontre um meio de dar cabo de seu desespero, fato que será noticiado pelos lábios de uma outra personagem.
O longa-metragem também traz mais uma parceria entre Bergman e Sven Nykvist, seu diretor de fotografia predileto. Mesmo que os filmes a cores já fossem uma prática comum naquele momento, o cineasta continuava insistindo em dirigir se valendo das variações de cinza, validando mais uma vez a tese de recorte da realidade associada ao preto e branco, especialmente na contemporaneidade. Vale comentar que Luz de inverno foi rodado durante a Guerra Fria, período no qual o mundo assistia à gana de dois lados do planeta por conquistar um espaço total. Essa sanha desmedida
do ser humano por poder e domínio é fatal para as crenças dos dois personagens, que se apresentam como fragmentos da personalidade do próprio diretor. Ainda que não seja necessário recorrer à vida pessoal do autor de uma obra nem saber o que ele quis dizer para entendê-la, pode-se perceber que há traços autobiográficos na obra, ao menos no que diz respeito à religiosidade abalada que atravessa o contexto do filme. Bergman era filho de um pastor extremamente rígido e, apesar dos espasmos de incerteza por que sua fé passava, nunca conseguiu abandonar totalmente a ideia da existência de Deus e de sua soberania. Semelhantemente, outros filósofos inquiriram acerca da figura divina, inicialmente refutando-a, para posteriormente acolhê-la, concluindo que é indispensável haver um ser maior que tudo para responder pela criação.
A tensão paira o tempo todo sobre Luz de inverno, cujo título transmite a poesia sensorial oferecida por Bergman em seu trabalho. Como em uma obra teatral, os diálogos são a grande força do filme, e confirmam a filiação do diretor também a essa forma de expressão artística. A encenação dos atores, de farto talento, ajuda a compor um quadro de busca por aquilo que se perdeu. Na condição de paladino da crença em Deus, Thomas deixa a desejar, deixando transparecer, inclusive, seu envolvimento com uma mulher, papel defendido com graciosidade e sofreguidão por Ingrid Thulin, uma das atrizes mais belas de seu país e de sua geração. Nos dois encontros entre os personagens, resvalam os fortes laços que os unem, que podem deixar estupefatos certos espectadores. Como sugere a trilogia em que o filme estaria inserido, o silêncio é bastante valorizado em Luz de inverno, o que significa dizer que as reverberações internas de Thomas, Jonas e Märta ganham espaço. Ouve-se o sons das águas do lugarejo afastado em que transcorre a trama, esquadrinha-se as imagens associadas àquele espaço quase remoto. Os rostos de cada um deles, vislumbrados em belos closes, assinalam a expressão da desesperança, e a realidade partida do homem que se dá conta de que não possui a inteireza que se pensava possuir em séculos pregressos. Todos estão em estado de constante procura, como quem busca reunir seus cacos e se fiar em alguma instância superior.
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