10 de ago. de 2011

Feridas abertas a cicatrizar em A vida secreta das palavras


A cineasta catalã Isabel Coixet gosta de abordar dramas humanos com um toque de esperança. Em Minha vida sem mim (Mi vida sin mí, 2003), contou a história de uma jovem mãe que se vê diante da iminência da própria morte. A trama, em si desprovida de originalidade, ganhou uma dimensão belíssima sob suas lentes. A vida secreta das palavras (La vida secreta de las palabras, 2005) é seu terceiro filme, e nele ela volta a se debruçar sobre a narrativa de uma grande tragédia particular que altera uma vida. A protagonista é Hanna (Sarah Polley), uma enfermeira extremamente introspectiva que não sabe o que fazer de sua vida quando não está trabalhando. Ela carrega consigo uma dor muito forte, como é possível supor desde o início do filme, mas não se sabe exatamente qual seja a sua causa. Ela é funcionária de uma indústria têxtil, e seu comportamento misterioso impede qualquer aproximação dos colegas da empresa. Ela conserva sua aura de distância o tempo todo e, quando é colocada de férias, não consegue ficar em casa descansando. Com isso, acaba indo cuidar de um homem acidentado em uma plataforma de petróleo. Esse homem atende pelo nome de Josef (Tim Robbins), e sofreu queimaduras em um acidente de trabalho. Como Hanna, ele é reservado e pouco afeito ao contato com estranhos, mas passa a contar com a ajuda da moça enquanto seu estado geral não lhe permite autonomia plena.

É no encontro entre essas duas pessoas tão distantes e, ao mesmo tempo, tão semelhantes, que a narrativa de A vida secreta das palavras se desenvolve. Em pouco menos de duas horas, somos confrontados com a necessidade que todo ser humano tem de estabelecer conexões com alguém, tanto pela via da amizade quanto pela via do amor. Os dois protagonistas estão inicialmente fechados em seus mundos e em suas dores particulares, mas vão aprendendo que lidar com o sofrimento alheio pode ser uma boa maneira de mitigar parte de sua dor individual. Em um de seus textos, Clarice Lispector afirma que, quando buscamos salvar uma pessoa, no fundo, estamos tentando salvar a nós mesmos, na esperança de obter algum tipo de recompensa pelo bem praticado. Talvez seja esse o caso de Hanna: em sua tentativa de se salvar da própria dor, ela escolhe voluntariamente ajudar alguém que se encontra em uma situação talvez pior do que a dela. Instala-se, portanto, uma profunda simbiose entre os personagens, que passam a estar irreversivelmente unidos dali em diante. Coixet aposta nos silêncios que comunicam, nos olhares que transmitem mensagens e o estado de espírito de quem os lança, tornando A vida secreta das palavras um filme cheio de sentimento, que fala ao coração e à alma.

A diretora retoma aqui sua parceria com Sarah Polley, com quem trabalhara em Minha vida sem mim. Novamente, a dobradinha entre elas é acertada, já que Polley demonstra a tristeza no fundo do olhar que a personagem pede. Sua Hanna é arredia, envolta em uma nuvem de ostracismo autoimposto que, ainda assim, consegue cativar Josef. Há muito de um no outro, e essa identificação quase muda entre ambos é a tônica de um filme que pode transmitir a impressão ilusória de ser um drama romântico com uma chuva torrencial de lágrimas que precede uma bonança chamada final feliz. É um risco que se corre ao se ver diante de um filme com um pôster que coloca os protagonistas abraçados e em estado de paixão latente, o que não é exatamente o que se vai desenvolvendo ao longo da narrativa. As canções auxiliam à percepção da pungência contida no filme, cuja força está atrelada principalmente às atuações viscerais dos personagens principais. Entretanto, também há que se comentar o ótimo trabalho dos coadjuvantes defendidos por Julie Christie e Javier Cámara. Ambos contribuem para a maximização do peso dramático da história, interpretando pessoas que terão participação decisiva em algum momento da trajetória dos protagonistas, que estão aprendendo a se encontrar um no outro.



A produção traz nomes que normalmente figuram em filmes de nacionalidades distintas. Ter Javier Cámara em um filme falado em inglês e dirigido por uma catalã é, no mínimo curioso. E ver Tim Robbins em seu primeiro papel relevante depois de Sobre meninos e lobos (Mystic river, 2003) também é uma grata surpresa. Ainda temos a colaboração dos irmãos Pedro e Augustín Almodóvar, exercendo a função de produtores e conferindo ainda mais relevância ao trabalho proposto por Coixet. Muitas cenas pairam no ar e permanecem na cabeça do espectador mesmo depois de muito tempo do fim da sessão. Elas são resultado do ótimo trabalho entregue pela direção de fotografia de Jean-Claude Larrieu, que também é um colaborador que trabalha novamente com a cineasta. Ela soube escolher muito bem suas parcerias, que culminaram na realização de um filme de aspecto permansivo. Há muitos espaços para a reflexão, que tornam A vida secreta das palavras um filme de passagens difíceis, capazes de sensibilizar espectadores mais afeitos à observação de sutilezas. Ele forja paisagens tristes, que contaminam o estado de ânimo dos personagens e focalizam o que há de mais desalentador em suas trajetórias. Aqui, há um segredo a ser desvendado, cujas pistas vão sendo semeadas ao longo do enredo, e que podem ser descobertas pelo espectador antes que o personagem que o carrega fale dele explicitamente. Não importa, pois Coixet não se vale dele como um elemento para prender a atenção e surpreender, mas para que se perceba o quanto podemos nos fechar diante de um acontecimento fatal, e o quanto alguém próximo pode se condoer ao se dar conta daquilo que se enfrentou.

O acalento para que os sonhos de Hanna renasçam e floresçam com intensidade reside na pequena comunidade oceânica na qual ela passa as férias cuidando de Josef. É na convivência diária com ele que seus medos mais cruéis vão se dissolvendo, e ela se deixa levar por aquela atmosfera de redescobrimento que o local proporciona paulatinamente. No encontro com o personagem de Javier Cámara, ela vai se dando conta de que a vida pode ter mais sabor mesmo em meio a desgostos, e que ela não precisa comer somente arroz, frango e maçãs, como faz diariamente. Ali, isolada da maior parte das pessoas e tão perto de outras que lhe vão fazendo bem, a protagonista pode ter a exata noção de que a felicidade está relacionada à companhia. Em seus momentos de desespero, com suas feridas abertas que insistem em não querer cicatrizar, o contato com aqueles dois homens que ela conhece em seu trabalho voluntário e temporário despertarão essa consciência. Um dos diálogos mais marcantes de todo o filme acontece perto do final, quando Hanna e Josef já estão completamente interligados, ela lhe diz que não poderá se manter perto, pois chorará tanto que inundará a vida dos dois com um rio de lágrimas. Gentil, ele diz que não se importa, pois aprenderá a nadar. Encaixada ao contexto preparado por Coixet, a cena é capaz de gerar intensa comoção e soluços abafados.

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