26 de jul. de 2011

Manderlay e o prosseguimento da desconstrução de um mito


Depois de dar início a uma provocativa reflexão sobre os aspectos negativos da cultura dos cidadãos estadunidenses e sobre o componente de vileza inerente à natureza humana com Dogville (idem, 2003), Lars Von Trier prosseguiu com sua trilogia “EUA – Terra das Oportunidades”. O resultado é Manderlay (idem, 2005), uma nova ocasião para que o cultuado realizador dinamarquês exponha feridas abertas e desagradáveis com seu cinema. Esse trabalho é mais um exemplar de sua inquietude como cineasta, e de como essa arte pode manifestar, através de diferentes dispositivos de representação, abominações cometidas pelo lado negro do homem. Com certas semelhanças estruturais e narrativas com seu trabalho anterior, Manderlay também traz características próprias, fortes o suficiente para que o filme não seja classificado como apenas mais do mesmo. Entre as mudanças, entretanto, está a substituição de Nicole Kidman por Bryce Dallas Howard para o papel de Grace. Nesse segundo filme, a atriz ruiva assume o posto de protagonista, como se assim tivesse sido desde sempre. Nos bastidores, sabe-se que o fato se deve ao modo extenuante com que o diretor trabalha, que teria enfadado Kidman. Mas há também a versão que dá conta de que a atriz não teria encontrado espaço em sua agenda para estar na produção.
Seja como for, a segunda parte da trilogia – até hoje ainda não concluída, diga-se de passagem – começa exatamente de onde a anterior havia parado. Depois de deixar a cidade de Dogville, Grace chega, acompanhada de seu pai, vivido por Willem Dafoe, a uma nova localidade, que dá nome a esse filme. Ali, ela descobre o funcionamento de um regime escravocrata em franca expansão, ainda que esse modo de produção nefasto tenha sido abolido há muitos anos. Ali também estão alguns personagens remanescentes do primeiro filme, que aparecem em novas funções, como a Madame (Lauren Bacall). Em pouco tempo, Grace tentará tomar as rédeas da situação, mas novamente será confrontada com pequenas e grandes crueldades naquele ambiente que não é o dela. Novamente, os cenários são apenas sugeridos, signo de uma proposta radical de diluição entre as fronteiras entre a encenação cinematográfica e a teatral. Na verdade, Manderlay é o nome de uma fazenda, e o ano em que se passa a história é 1933, pouco tempo depois da Grande Depressão. E ao buscar interferir nas relações entre patrões e empregados da fazenda, Grace depara com uma estrutura muito maior do que ela imagina.
Em 139 minutos, Von Trier oferece o que faz de melhor: instigar e provocar, com um enredo que vai se revelando muito mais intrincado do que parece. Por mais que tenha aprendido a dar vazão ao seu lado mais violento, Grace ainda precisa lidar novamente com a hostilidade dos outros, e se afirmar como mulher em um ambiente declaradamente machista. Por ela, passam homens como o asqueroso Wilhelm (Danny Glover) e o dúbio Timothy (Isaach de Bankolé), que forçá-la-ão a adotar uma conduta mais ofensiva. Todos, de alguma forma, contribuem para a continuação do processo de embrutecimento de Grace, que já teve a chance de conhecer o quanto seus semelhantes podem ser terríveis. O diretor demonstra novamente que toda obra de arte é, em última instância, um retrato do ser humano, e não faz filmes com a intenção de entreter. Sua filmografia pregressa, da qual constam títulos como Os idiotas (Idioterne, 1998) e Dançando no escuro (Dancer in the dark, 2000), não envereda pelo caminho da simplicidade, mas sim pelo esquadrinhamento da complexidade do ser humano, que não é facilmente classificável. Pelo contrário, qualquer julgamento sobre uma pessoa é mormente circunstancial, como também acontece com os personagens.



Os bastidores do filme estão envoltos em polêmicas. E a maior delas talvez seja a cena que mostra a morte de um burro, o provável motivo da saída de John C. Reilly do elenco. O ator jamais se pronunciou a respeito do fato, deixando incógnita a verdade sobre o que realmente o tirou da produção. Além disso, nove dos doze atores que interpretam escravos no filme são ingleses, já que os estadunidenses se recusaram a participar, inconformados com o conteúdo da obra. É mais uma prova do quanto Lars Von Trier pode gerar desafetos na tal Terra das Oportunidades que tanto critica e alfineta aqui. O diretor também vai contra seus próprios princípios artísticos ao eleger um cenário para sua narrativa, diferentemente do que propunha no Dogma 95, manifesto lançado em meados da década retrasada em que apregoava, junto a Thomas Vinterberg, a abolição de construções de cenários e o uso de trilha sonora que não fosse do próprio ambiente. Pois Manderlay é quase inteiramente filmado em um galpão na Suécia, como o foi Dogville, além de se passar em vários outros países, como Dinamarca, Holanda e Alemanha. A decisão do diretor demonstra sua capacidade de autorreinvenção como realizador, capaz de ultrapassar os limites a que ele mesmo se impôs de forma brilhante, aliando talento e maturidade crescente.
Aqui, percebem-se novamente certos recursos que o realizador já havia utilizado no primeiro filme, como a estrutura da narrativa dividida em capítulos e a narração em tom sarcástico de John Hurt. Essas similitudes, além das outras já mencionadas, auxiliam a percepção de que há uma unidade por trás da abordagem do diretor. Ao se valer novamente de vários recursos empregados antes, Von Trier assinala um viés especificamente provocativo com os dois filmes, componentes de uma trilogia que ainda permanece em aberto. Ele prometera Washington para 2007, mas os anos se passaram e o projeto ainda não se tornou realidade. De lá para cá, ele dirigiu outros filmes, Anticristo (Antichrist, 2009) e Melancolia (Melancholia, 2011), ambos apresentados para a plateia de Cannes. Mas a esperança de que essa terceira parte venha continua viva. E no caso específico de Manderlay, notabiliza-se, comentando mais uma vez a protagonista, o quanto ela abandonou a postura de servidão do primeiro filme para se valer de uma arrogância pretensamente bem intencionada. A personagem poderia ter continuado nas mãos de Nicole Kidman, que tem muito mais anos de estrada e experiência que Dallas Howard, mas é evidente o empenho da ruiva em se apropriar de um dos seus primeiros papéis de destaque. No mais, resta a certeza de que, afora certas irregularidades em doses sutis, estamos diante de um novo e grande monumento à inquirição.

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