23 de ago. de 2011

Sangue negro, a ganância perscrutada e depurada




Afeito aos retratos humanos emblemáticos e monumentais, Paul Thomas Anderson construiu um épico individual através de Sangue negro (There will be blood, 2007), seu um de seus trabalhos mais recentes. O diretor decidiu concentrar seu foco narrativo na figura de Daniel Plainview (Daniel Day-Lewis), um homem que pode ser facilmente considerado o espelho da ganância desenfreada e da solidão escolhida como filosofia de vida. Aqui, Anderson prossegue com a aproximação intensa de um protagonista absoluto, tal qual fez em Embriagado de amor (Punch drunk Love, 2002), e se distancia do painel de tipos que construiu em Boogie nights – Prazer sem limites (Boogie nights, 1997) e Magnólia (Magnolia, 1999). Entretanto, se no filme estrelado por Adam Sandler sua abordagem era muito mais inclinada para o lado cômico, em Sangue negro ele investe sua proposta de uma forte carga dramática. Fica claro para o espectador desde o início da história que Daniel é um misantropo convicto, que chega a declarar, a certa altura da narrativa, que odeia a maioria das pessoas.

O filme é a deixa para que o realizador trate de um sentimento que está recoberto de juízo negativo, mas que pode estar presente com muito mais intensidade na maioria dos indivíduos. Outrossim, ele reaviva o debate entre fé e ceticismo, confrontando seu protagonista com um pastor que atende pelo nome de Eli Sunday (Paul Dano) – o sobrenome do personagem soa logo como um trocadilho assaz irônico. Com base nesses dois grandes temas e nesses dois personagens, Anderson trilha um caminho de grandiosidade, ainda que, em determinado momento, o marasmo venha acometer a obra de modo irreversível. Não há como negar que as discussões levantadas por Sangue negro têm grande pertinência. Mas há que se lamentar que haja uma sensação de que a teoria parecia melhor do que a prática. São parte de um juízo de valor altamente subjetivo, que não chegam a comprometer a narrativa de um modo geral. Por outro lado, nota-se que a duração do filme é excessiva. A prolixidade é cara ao cineasta, mas nunca havia sido tão dispensável quanto nesse filme. O enredo se alonga em demasia, abrindo espaço para o enfado e a grandiloquência desnecessária. À época de seu lançamento, os elogios foram praticamente unânimes, mas não é levianamente que se afirma que este seja um caso de filme superestimado.

Ressalvas feitas, vale reservar um parágrafo inteiro para comentar a atuação preciosa de Day-Lewis. A metamorfose do ator em personagem é incrível, e demonstra a grande competência de um profissional bissexto. Depois dele. Só Sean Penn pode ostentar o título de ator mais raro no cinema estadunidense contemporâneo, o que é uma verdade dolorosa de se constatar. Ambos são dos melhores atores de sua geração, e coroam os filmes em cujo elenco estão de uma qualidade inenarrável. Voltando a Day-Lewis, sua composição como um homem que beira a repulsividade em tantas ocasiões, manifestando sua pobreza de espírito em contraste com sua riqueza material. Daniel Plainview é o retrato arquetípico do vazio do ser humano, impossível de ser preenchido com ouro e bens, ou com petróleo, a obsessão do personagem. Por mais autoajuda que esse comentário possa parecer, ele encontra respaldo na vivência diária de cada um, mais cedo ou mais tarde. O explorador de terras é a prova viva de que o afeto e a tranquilidade não se compram com moedas cunhadas com níquel nem com papéis retangulares coloridos que se convencionou valorizar para que se tenha um passe para o mundo.



Sangue negro foi comparado, com evidente exagero, a Cidadão Kane (Citizen Kane, 1926), ao qual se assemelha pelo fato de este também ser um épico sobre a ascensão de um homem ordinário. Contudo, ainda não foi dessa vez que o cinema estadunidense produziu uma obra que se equiparasse àquela; não por uma questão de qualidade indiscutível de Cidadão Kane, mas por uma aparente dissonância de propósitos entre o filme de Orson Welles e o de Anderson. Há uma outra falha grave na condução do segundo: o roteiro deixa entrever certa porção de maniqueísmo, subjacente aos confrontos diretos ou velados entre Plainview e Sunday, demonstrando um certo apelo tendencioso na perspectiva do diretor. A propósito, Sangue negro vem depois de um hiato relativamente longo do diretor. Cinco anos separam o filme de seu anterior. Nesse ínterim, ele auxiliou seu amigo e mestre Robert Altman, colaborando na finalização do último filme do grande artista, A última noite (A praire home companion, 2006). O resultado final desse trabalho é aquém do que Embriagado de amor – o filme precedente – alcançou. A comparação pode soar díspar, mas uma observação um pouco mais atenta dá conta de elaborar a percepção de que ambos os filmes tratam de sujeitos deslocados, em busca de uma direção para suas vidas em desordem interna. Um deles segue a via cômica. O outro, se embrenha na porção dramática.

Curiosamente, Daniel Day-Lewis se tornou fã de Paul Thomas Anderson depois de assistir a Embriagado de amor, e Sangue negro só foi rodado porque o ator aceitou o convite para estar no elenco do filme. Deriva da poderosa direção de atores e do grande talento de Day-Lewis a grande qualidade do longa-metragem, além da presença magnética de Paul Dano em cena. O jovem exercita sua capacidade dramática com desenvoltura, e oferece uma interpretação e um personagem totalmente diferentes do que fez em Pequena Missa Sunshine (Littel Miss Sunshine, 2006), que era seu filme mais representativo até aqui. A intensidade do ataque de Anderson à religião se manifesta sobretudo na fala de Sunday, um tanto quanto enviesada. De qualquer maneira, e paradoxalmente, a força do filme também reside nesses diálogos, que, em última instância, podem ser possibilidades de leitura e tomadas de posição individuais. Aliás, o primeiro diálogo só acontece após pouco mais de 10 minutos de filme, o que confere ao plano de abertura uma aura contemplativa e também angustiadora. Ali está a quintessência do homem decaído e desalojado de um lugar seguro que lhe dê guarida.

O transcorrer do fio narrativo do filme agiganta as sua potencialidades, mas também evidencia seu aspecto regular. Escrito pelo próprio Anderson a partir de Upton Sinclair, autor do livro no qual a obra se baseia, o roteiro sofre engasgos e espasmos desnecessários, que acabam quase sempre sendo cobertos pela interpretação devastadora de Day-Lewis como um homem tão irascível. Ele é o grande trunfo que o diretor tem nas mãos para empreender sua jornada de observação de alguém em estado de busca permanente. Aliados a esse detalhe, estão alguns belos planos uma trilha sonora incrível assinada por Jonny Greenwood, que calcificam a história e lhe asseguram um tônus dramático importante. Há grandes momentos em Sangue negro, que podem responder pelo impacto do espectador. Todavia, à semelhança do vazio que parece perseguir Plainview o tempo todo, o filme deixa a sensação residual de que poderia ter sido mais enxuto e de ter fechado certas portas entreabertas. Seu contemporâneo, Onde os fracos não têm vez (No country for old men, 2007), trata de questões parecidas, como a violência e a brutalidade, e chega a um resultado final mais apreciável. Em síntese, sobra a certeza de Anderson foi feliz ao colocar na tela uma grande metáfora para a ganância, que aparece perscrutada e depurada.

Nenhum comentário: