4 de ago. de 2011

O signo da cidade e a fina trama que enreda seres humanos


Estigmatizado por uma parcela dos espectadores, o cinema brasileiro comprova sua versatilidade com títulos que destoam do binômio violência + favela que embriaga os sentidos de muitos diretores, e mostra que pode ir muito além de tiroteios e perseguições policiais, que também têm sua validade na tela, mas não são a única possibilidade para a sétima arte nacional. O signo da cidade (idem, 2007) existe, entre outras coisas, para fugir desse chavão. Dirigido por Carlos Alberto Riccelli, que optou pelo exílio em Los Angeles há décadas, o longa-metragem espia a vida de pessoas ordinárias e suas tentativas de manutenção de sua dignidade pelas ruas de São Paulo. É bom que se diga, de antemão, que o diretor se propõe a dialogar com uma bela tradição de filmes-painel, ao colocar em cena vários personagens cujas trajetórias, de uma maneira ou de outra, serão entrecruzadas pelas charadas irônicas ou trágicas lançadas pelo que se convencionou chamar destino. E o polo que fará essa união de caminhos é Teca (Bruna Lombardi), uma astróloga que apresenta um programa noturno de rádio, no qual atende a ouvintes transtornados por dilemas morais, amorosos e existenciais que carecem de aconselhamento. Como na vida, aqui acaba sendo mais fácil ouvir e seguir as palavras de um estranho.

Com base nesse argumento, Riccelli desenvolveu um filme de alma brasileira, pelos dramas que aborda, mas de corpo universal, pela estética algo estrangeira que imprimiu às sequências e também à narrativa. É notória a aproximação de seu trabalho com títulos como Short cuts – Cenas da vida (Short cuts, 1993) e Magnólia (Magnolia, 1999), para citar duas referências mais imediatas. Além disso, ele elege a capital paulistana como palco para as ações, e a transforma em personagem de cenas e momentos emblemáticos. Riccelli também dialoga aqui com o Paul Haggis de Crash – No limite (Crash, 2005), sendo muito mais bem-sucedido que o cineasta, entretanto. A colcha de retalhos bem pensada é fruto do roteiro bem azeitado escrito por Bruna Lombardi, que firma uma bela parceria com o marido da vida real. Sua protagonista não é absoluta, dividindo a importância com todos os demais personagens que vão sendo apresentados. Na verdade, como o título do filme denuncia, a grande protagonista do filme é a cidade de São Paulo, com suas possibilidades de desencontros e sua dose de crueldade com aqueles que nela habitam. São muitos homens e mulheres lidando com perdas e reveses dos quais muitas vezes parecem não ser capazes de se recuperar totalmente

A própria Teca vive seu drama particular por não conseguir estabelecer um elo de comunicação com o pai Aníbal (Juca de Oliveira), que está em estado terminal de uma doença grave. Aqui, vem à tona novamente a questão do perdão perto do fim da vida, uma temática que oferece, por si só, certa cota de sentimentalismo, mas que é vista de modo profundamente humanos por Riccelli, que não poupa seu talento ao investir em cenas fortes, com diálogos sinceros e comoventes. Sabe-se que a linha que separa a emotividade da pieguice é extremamente tênue, e o diretor é capaz de ficar atrás da primeira do início ao fim. Impressiona o apuro visual do filme, que se faz quase todo em período noturno, fotografado pelas lentes preciosas de Marcelo Trotta, que não se preocupa em apresentar uma visão edulcorada da cidade, mas em auxiliar o cineasta a contar sua histórias com fortes tintas realistas. Todas as histórias retratadas em O signo da cidade guardam uma porção de verossimilhança, sem grandes exageros dramáticos. Além disso, o roteiro não é pautado pelas estripulias narrativas a que outros profissionais da área se habituaram, como é o caso de Guillermo Arriaga e seus textos filmados por Alejandro González-Iñarritú. O diálogo de Riccelli é com a sensibilidade e o realismo mais sutil, ainda que haja passagens dotadas de grande densidade, como as que envolvem um personagem que ganha a vida como travesti, interpretado com impetuosidade por Sidnei Santiago, um ator que ainda tem pouca visibilidade no cinema, mas que já esteve em outros filmes, como Os 12 trabalhos (idem, 2006), de Ricardo Elias.



Como a grande estrela aqui é a própria cidade, são vários os atores que têm chance de mostrar bons trabalhos. Boa parte do elenco também tem uma carreira televisiva, o que possibilita a muitos espectadores ter um juízo de valor negativo, supondo que haja em O signo da cidade um ar de especial global de fim de ano. Mas esse não é mesmo o caso desse longa-metragem, que traz Graziela Moretto, Eva Wilma, Denise Fraga e Malvino Salvador como outros rostos conhecidos. Este último, normalmente canastrão em seus trabalhos nas novelas, desenvolve seu personagem de maneira comedida, como o roteiro pede, e seu envolvimento com Teca se dá de maneira crível e discreta, até culminar em cenas de grande intensidade dramática. A veterana Eva Wilma, porém, é quem mais surpreende com sua personagem e seu segredo amoroso que pode mexer com a concepção do público. Suas poucas aparições em cena são suficientes para assegurar que se trata de uma grande atriz oferecendo um grande trabalho e conferindo ainda mais dignidade ao filme. Quem também participa da produção como um jovem cheio de conflitos internos e Kim Riccelli, o filho único do casal. Uma incrível mistura dos pais, ele debuta na tela grande com segurança e maturidade, despojando-se de amarras interpretativas e apostando na naturalidade para dar vida ao seu personagem.

Fica evidente ao longo do filme que o lado melancólico da cidade é o mais patente aos olhos do diretor e da roteirista. Há inúmeros momentos de tristeza, desespero, desalento e desorientação rondando os homens e mulheres de O signo da cidade. Todos eles estão inseridos na perspectiva que norteia o longa e lhe serve de slogan e também de fala para o personagem de Malvino Salvador: Está tudo escrito mesmo ou a gente pode mudar? Essa base de cunho semelhante à filosofia de botequim tem sua validade, e Bruna Lombardi trata de buscar a escavação da máxima por meio de muitas pessoas que vêm e vão, que passam perto de uns e outros. A certeza de que somos protagonistas de nossas próprias vidas e coadjuvantes das vidas alheias, para além de qualquer centelha de pieguice, e válida e verdadeira, como tudo indica no filme, e que se comprova o tempo todo.

Nenhum comentário: