9 de jul. de 2011

Wall-E, uma brilhante viagem por um mundo de hipóteses


Os últimos anos cinematográficos têm testemunhado o surgimento de cada vez mais filmes de animação que não se restringem ao campo semântico da infantilidade, provando que filmar para crianças não é sinônimo de filmar para idiotas, como ainda querem alguns profissionais dessa também “indústria”. Prova disso são as animações que, a despeito de seus efeitos visuais profusos, demonstram que em seus âmagos também bate um coração. A Disney/Pixar parece entender dessa questão, e tem-no feito com regularidade em seus últimos representantes, dentre os quais se encontra Wall-E (idem, 2008). O filme, sob a batuta de Andrew Stanton, o mesmo que encantou os espectadores com Procurando Nemo (Finding Nemo, 2003) em parceria com Lee Unkrich, é um achado em termos de narrativa e de encanto imagético. Não há como não se encantar pela trajetória do pequeno robô que dá título à obra, ávido de um encontro consigo mesmo e com aquela que julga ser seu complemento.
Decorre desse detalhe apaixonante a afirmação de que o filme é uma bela animação de tintas existencialistas pensada para um futuro distante e jamais localizado temporalmente. Ao tocar nessa temática, Wall-E deixa de ser um filme apenas pensado para crianças, e consegue se aproximar também de jovens e adultos, que se veem diante de questionamentos que podem atravessar qualquer fase da vida. É claro que o público infantil está interessado nas peripécias que o enredo oferece, mas também elas vêm em uma rotação potencialmente lenta aqui. O olhar de Stanton procura a delicadeza, a poeira cósmica que parece já ter sido varrida do mapa, para quem ninguém mais atenta. A animação versa também sobre a eterna procura do ser humano pela completude, e exibe um herói pleno de humanidade, ainda que seja sempre um robô, fato do qual o espectador acaba se esquecendo com o passar do tempo. Wall-E se une a um certo ogro verde, de outro estúdio, para demonstrar que há muitos traços humanos em protagonistas ditos surreais. Com seus dilemas e conflitos, o personagem traz a quintessência da agonia de existir, que atravessa épocas e, no filme em questão, demonstra-se longe de ser mitigada.
O filme também serve a comprovar que, cada vez mais, o gênero animação não deve ser considerado como à parte, pelo que congrega em si tantos ao mesmo tempo. No caso de Wall-E, salta aos olhos sua caracterização como um drama existencial, que investiga a solidão a que todo ser humano parece estar fadado, mesmo que o diretor a discuta por meio de seres não-humanos. As possibilidades se nos abrem diante dos olhos com a animação, que lembra, em alguns lampejos, a pujança visual de Fonte da vida (The fountain, 2006), em que Darren Aronofsky também tencionou discorrer sobre as interdições impostas pela vida, especificamente no que tange ao amor. Para os meninos e meninas, a animação pode ser facilmente um entretenimento mágico, mas mesmo eles podem se cansar da lentidão que o filme apresenta. No fundo, Wall-E acaba sendo mesmo uma animação para adultos, que se veem retratados em parte de seus anseios e inquietudes na figura do protagonista e de Eva, o robô que povoa os sonhos doces do nosso herói.



A tarefa a que o diretor se impôs é dura. Depois de conferir toques de humanidade a carros no filme homônimo, como fazer de um autômato, já visto como vilão em títulos como Eu, robô (I, robot, 2004) alguém com quem se possa identificar minimamente. E mais: como prosseguir com uma narrativa e a apresentação de seus nós sem recorrer a monstros e a outras entidades maléficas e fantásticas? Wall-E se contrapõe a esses esquemas e entrega uma história com alma, sincera e verdadeiramente cativante. O adorável robozinho é o último remanescente de uma grande leva de robôs que tinha a incumbência de limpar o lixo da Terra enquanto os homens se retiravam em uma nave espacial. A proposta inicial era que eles permanecessem na tal nave durante um período curto, mas o retiro acabou se tornando ad eternum. Enquanto recolhe as sujeiras deixadas pelos antigos habitantes, Wall-E depara com objetos interessantes, que ele vai recolhendo para si, e é chegada da moderna Eva que altera sua rotina pacata de empilhador de imundícies. O componente de identificação despertado pelo personagem é semelhante àquele que Robin Williams desperta na pele de Andrew em O homem bicentenário (The bicentennial man, 1999), um robô que não se contenta com sua própria condição e alça voos mais altos rumo a uma transformação em homem. Até mesmo a paixão que Wall-E passa a sentir por Eva depois de vê-la pela primeira vez é perfeitamente plausível para um homem de verdade, com seus calfrios, reticências e aparvalhamentos. O protagonista que jamais fala, no máximo balbucia o nome de sua amada sofregamente, é a síntese do jovem descobridor do amor, esse sentimento que leva muitos a tatear em busca de uma resposta vinda do outro lado.
Esse dado do protagonista, que passa o filme inteiro apenas gesticulando e caminhando confere à trama um aspecto pantomímico, parecido com o que Sylvain Chomet fez com O mágico (L’illusioniste, 2010), um outro exemplar de animação que pode ser considerada muito mais adulta que infantil. Juntos, os dois filmes compõem uma pequena galeria de obras que versam sobre temas que atingem muito mais que já chegou à maioridade, e vale mencionar também o brilhante trabalho de Richard Linklater em Waking life (idem, 2001), que se apropriou da rotoscopia para entregar um denso estudo sobre a condição humana. Entretanto, Wall-E não chega a ser tão hermético quanto os filmes aqui citados. Sua ambição esbarra prudentemente, por assim dizer, na necessidade de levar o filme a um grande público, mas já serve como amostra de que o cinema em seu componente mais artesanal pode alcançar um número considerável de entusiastas, ao contrário do que preveem as teorias que associam qualidade artística ao quórum pífio de espectadores.
A sensação que atravessa o público durante Wall-E é a de que o mercado de animação pode apresentar exemplares surpreendentes quando quer, e também pode tratar das distâncias entre cada um de nós e o outro com a habilidade de um diretor que sabe mesclar o apuro visual com uma trama bem azeitada e um argumento que remete a antes mesmo de Toy story (idem, 1995), também dirigido por Stanton. Ele partiu de uma premissa tão simples quanto instigante: E se a humanidade fosse embora e se esquecesse de desligar o último robô? À época, havia já um roteiro, mas Pete Docter preferiu dar espaço a Monstros S.A. (Monsters, Inc. 2001), e o projeto de animação sobre o robozinho foi sendo deixado de lado, até que voltasse à tona em 2008. Empregou-se, então, um orçamento de 180 milhões para a construção irretocável do espaço, que é, antes de mais nada, o ponto de vista totalmente subjetivo do diretor, algo estilizado que chama bastante a atenção. Fica patente que todo o esforço e a insistência de Stanton valeram a pena, pois a resultante final não é nada menos do que intensa e inesquecível.

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