21 de jul. de 2011

Uma releitura de um tempo de aura mítica em Bravura indômita

Indômito é um termo que, em sua acepção adjetiva, refere-se a alguém ou algo que é altivo, destemido, a que ou quem não se pode vencer. A palavra aparece flexionada no feminino no título de Bravura indômita (True grit, 2010), filme recente dos irmãos Ethan e Joel Coen, que vêm experimentando diferentes dispositivos de representação de seu olhar arguto sobre os fatos da vida a cada novo trabalho. Neste aqui, entretanto, eles deixam de lado, de certa forma, a visão obtusa de momentos cotidianos, para apresentar ao público a refilmagem do clássico homônimo de 1969, cujo protagonista era ninguém menos que o legendário John Wayne. Cabe adiantar, entretanto, que os diretores imprimem sua marca ao longa-metragem, afastando o comentário de que tenham feito um mero decalque da obra pregressa. Na verdade, ainda que quisessem fazê-lo, não seriam capazes, dado o transcorrer de quatro décadas, suficientes para alterar a perspectiva sobre o gênero faroeste, minado paulatinamente, ferido de morte pelo alastramento da noção de politicamente correto.



Os Coen alçam ao posto de protagonista, posição que se vai relativizando ao longo da narrativa, o talentoso Jeff Bridges. Ele é o xerife beberrão Reuben J. Cogburn, procurado pela garotinha Mattie Ross (Haille Steinfeld) quando o pai desta é assassinato de modo impiedoso por Tom Shaney (Josh Brolin). A menina demonstra um apurado senso de justiça misturado a um intenso desejo de vingança, e quer a todo custo que Cogburn vá no encalço do malfeitor, sem abrir mão de acompanhá-lo na caçada. A essa altura, o filme já demonstrou o criterioso trabalho de reconstituição de época por trás de cada cenário, bem como a aposta em uma estética de aspecto genuinamente “Velho Oeste”. Cenas típicas de um dia a dia numa região assim, como o enforcamento de três ladrões sem qualquer protelamento, já avisam que Bravura indômita é um filme que faz jus ao seu título, também através dos personagens. Mattie se vê obrigada a lançar mão de toda sua coragem, de que nem ela mesma parecia se dar conta, para negociar com gente ardilosa os bens da família, bem como para encarar a resistência inicial oferecida por Cogburn ao seu pedido de ajuda.
Depois que a dupla embarca na longa jornada rumo à perseguição a Shaney, surge a figura imponente de LaBoeuf (Matt Damon), um policial texano que também está à procura do criminoso, mas por conta de outro assassinato. A grande maioria das cenas, a partir de então, serão desse trio, que demonstra total entrosamento nas sequências dramáticas e uma interdependência entre suas atuações que faz de suas performances um trabalho em conjunto. Os irmãos Coen saúdam os espectadores – fãs ou não do gênero – com um filme empolgante, que se soma a outros rarefeitos que vêm sendo dirigidos aqui ou acolá (lembre-se de Appaloosa - Uma cidade sem lei [Appaloosa, 2008]) e nadam contra uma tendência que parece irreversível. Aqui se verifica a leitura de uma época, atravessada inexoravelmente pelos conceitos, preceitos e preconceitos de uma modernidade em que homem e animal, que vêm se diferençando um do outro através dos tempos, parecem cada vez mais aproximados novamente. Na gramática virulenta dos campos abertos e desérticos do old west não cabem a complacência nem o retroceder, mas sim a certeza da recrudescência que se faz necessária a cada nova configuração de ameaça.
Bravura indômita respira qualidade técnica, graças a montagem frenética, na medida, já que também tem seus momentos de lancinância velada. O filme pode agradar também a quem se interessa por uma boa fotografia, que dá conta de iluminar a paisagem com uma luz discreta, que não se furta de mostrar os rostos vincados dos caubóis destemidos que atravessam rios, passam noites ao relento e defendem a própria sobrevivência com vontade férrea. Esse aspecto da obra é uma atribuição de Roger Deakins, que já trabalhou diversas vezes com os cineastas, em títulos de propósitos e resultados díspares, como O homem que não estava lá (The man Who wasn’t there, 2001) e O amor custa caro (Intolerable cruelty, 2003) e Seu trabalho é muito bem realizado, e demarca os anos de parceria que vem cultivando com os irmãos, expressos no apuro com que captura as imagens, bem ao gosto do que está assinalado no roteiro, a cargo dos irmãos, que se basearam no livro de Charles Portis.


Além disso, é indispensável comentar acerca do ótimo desempenho de Jeff Bridges, que vem experimentando nos últimos anos uma espécie de soerguimento de sua carreira, com sua participação em títulos de qualidade. A qualidade de sua interpretação de Cogburn lhe rendeu a segunda indicação consecutiva ao Oscar de melhor ator; a anterior havia sido por Coração louco (Crazy heart, 2009). De fato, seu xerife é talhado com gestos contidos e um sotaque algo interiorano fantástico. É uma figura diferente da construída por Tommy Lee Jones, que encarnou o xerife Bell em Onde os fracos não têm vez (No country for old men, 2007), mas que tem em comum com este a postura desalentada e descrente diante de uma humanidade cada vez mais feroz e indomável. Seu parceiro de cena, Matt Damon, também é um oásis de talento e qualidade, mascarado pela rusticidade de sua caracterização, que soterra sua beleza e realça sua capacidade de viver tipos distantes de sua realidade, deixando detalhes de seu porte físico na esfera do refugo. É uma pena ele não ter recebido uma indicação ao Oscar de ator coadjuvante. Juntamente com Cogburn, seu LaBeouf transpira coragem ao cavalgar sobre o ungulado que trota velozmente par conduzi-lo ao seu alvo. Some-se a eles o grande Josh Brolin, que vem se firmando como um ator de verve camaleônica, e que firma, aqui, sua terceira parceria com os Coen, a segunda em um longa-metragem.
A edição bem realizada é outro aspecto que cabem a Ethan e Joel Coen, que a assinam sob o pseudônimo de Roderick Jaynes, uma brincadeira que encobre o talento dos irmãos em mais uma área, além da escrita e da direção. Na 83ª edição do Oscar, o filme saiu de mãos abanando, malgrado suas dez indicações. O fato é uma demonstração ínfima do quanto a Academia de Artes e Ciências Cinematográficas pode cometer injustiças, o que também corrobora a afirmação de que nem tudo que seus membros deixam passar é desprovido de qualidades. Aqui, os embates cênicos entre atores de peso respondem por boa dose do interesse na projeção, além dos já comentados aspectos técnicos e da maravilhosa trilha sonora de Carter Burwell, outro colaborador recorrente dos realizadores. Ela ajudar a compor o quadro de um ambiente quase inóspito, que coopera decisivamente para tornar seus habitantes um arquétipo da luta pela sobrevivência e pela honra. Os homens de Bravura indômita juram fidelidade aos seus próprios códigos, e desferem golpes certeiros com as armas de que dispõem para assegurar sua probidade. Tanto Cogburn quanto LaBeouf e Shaney, cada qual à sua maneira, representam e intensidade dramática contida em um gênero cinematográfico sobre o qual muitos insistem em lançar uma mortalha.

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