19 de jul. de 2011

Inverno da alma ou a caçada pela dignidade


Entre os filmes considerados independentes a passar pelo circuito entre 2010 e 2011, um deles chamou bastante a atenção da crítica, que o elogiou e o incensou de modo a classificá-lo como imperdível. Trata-se de Inverno da alma (Winter’s bone, 2010), um trabalho que focaliza uma localidade dos EUA desprovida de glamour e, por isso mesmo, muito distante do famigerado American way of life. A trama é protagonizada por Jennifer Lawrence, que dá vida a Ree Dolly, uma jovem em estado de alerta, tomada pela necessidade de arcar com as consequências devastadoras da desagregação de sua família, que incluem o desaparecimento de seu pai e a insanidade de sua mãe. Ela tem apenas 17 anos, mas já sente o peso da grande responsabilidade sobre as costas. Em meio a esse cenário desolador, a diretora Debra Granik discorre sobre impetuosidade e desespero, mesclados e alternados na figura de sua heroína trágica, uma garota que, de improviso, vê-se diante da perda de seu esteio. Entretanto, por algumas razões, tanto de ordem essencialmente subjetiva quanto de ordem técnica, algo se perde no percurso que Granik se propôs a fazer, fato a se comentar a posteriori.
A diretora investe em um ambiente de aridez, mas uma aridez gélida, por mais paradoxal que seja essa adjetivação. Ree teve de aprender a ser impávida, destemida, para dar conta de proteger a própria dignidade, bem como a de sua família, a quem dedica cuidados em tempo integral. Verifica-se, pela sua aparência desgrenhada, o quanto ela se esquece de si mesma para zelar pela mãe doente e pelos irmãos mais novos. Tal característica da personagem encobre parte da beleza de Lawrence, e permite que seu talento seja evidenciados antes de tudo. Aliás, a grande capacidade de absorção de Inverno da alma está atrelada ao talento incontestável da jovem atriz, que conseguiu arebatar uma indicação ao Oscar da categoria, competindo com nomes como Nicole Kidman e Michelle Williams. A Academia tem uma certa inclinação para reconhecer o trabalho de atrizes que se despem de uma aura de glamour para encarnar uma personagem, como foi o caso de Charlize Theron em Monster – Desejo assassino (Monster, 2004), e com Lawrence não foi diferente.
No filme de Granik, o tema central é a cruzada de Ree pela descoberta do paradeiro de seu pai, que partiu depois de ter deixado a casa da família como garantia de sua liberdade condicional e não deixou qualquer vestígio. É nesse périplo da protagonista que a cineasta investe o tempo todo, fato que, ao mesmo em que torna a ação concêntrica e sem espaços para subtramas que desviem o foco do espectador, tornam o filme excessivamente angustiante, sufocando a percepção do público. Em toda a sua duração, Inverno da alma traz a luta de Ree pela sua dignidade e pela esperança, mas se perde em alguns momentos por se dedicar demais às situações derivadas dessa busca. Quando a personagem encontra seu tio, por exemplo, surge na tela a figura repelente de Teardrop, vivido por John Hawkes, um ator de grande capacidade de mimetismo, algo essencial aos talentosos dessa profissão. Ele assusta e arrepia com seu jogo cênico travado com Lawrence na pele de Ree. Percebe-se, no encontro entre os dois, que ele tem mais a dizer além do que diz, mas é ríspido com ela e assevera que não a ajudará em mais nada. Em muitos momentos, o roteiro, escrito pela própria diretora em colaboração com Anne Rosellini, baseado no livro de Daniel Woodrell, apresenta certa dose de crueldade, especificamente em suas sequências. Uma delas é a que mostra a surra dada em Ree, num dos episódios mais dramáticos de sua busca pela reorganização dos cacos que compõem a história do desaparecimento do pai.



Àquela altura, o público, já em posição de cúmplice da personagem, é desafiado visceralmente a expor sua revolta diante de tamanho ultraje. E há ainda a cena bastante comentada do rio, em que a jovem encontra um corpo que pode ser o do seu pai, e corta as mãos dele. Pode-se afirmar que esse seja o apogeu da aridez impressa pela diretora à narrativa, que não se furta de fartas doses de um dolorido realismo. Para alguns críticos, Inverno da alma foi classificado como uma espécie de tragédia grega, cuja protagonista ganha contornos de heroína clássica ao transgredir os próprios códigos de ética e conduta. É exatamente na fascinante interpretação da atriz, que ultrapassa os limites esperados para alguém tão jovem, que pulsa a força marcante do filme, que guarda um certo aparentamento com outra obra recente, Rio congelado (Frozen river, 2008). Como o filme de Granik, este também é dirigido por uma mulher, Courtney Hunt, e se debruça sobre o dilema moral de uma mulher que precisa correr em direção ao resgate de sua dignidade, vivida pela ótima Melissa Leo. Ambos os filmes exibem um olhar feminino ora latente, ora em estado de plenitude, capturando a nuances sempre discretas das atitudes tomadas por suas protagonistas envoltas por uma espiral de desespero. Um ponto de vista de uma mulher refina certos aspectos da trama, que poderiam ter passado despercebidos por uma direção masculina.
Entretanto, o resultado final de Inverno da alma é oscilante entre o bom e o irregular, sendo sua maior qualidade, como já se comentou, o desempenho abissal de Lawrence, que tem uma esfera de contenção muito pequena à sua interpretação, tendo que se circunscrever às possibilidades delimitadas pelo roteiro. Vale a pena conferir o filme para se dar conta de que há um outro lado dos EUA, diferente daquele a que se acostumou a admirar e desejar ao longo das décadas, difundido por anos de filmes idealizadores da imagem do país. Acompanhar a trajetória de Ree é presenciar um monólogo por vezes silencioso, por assim dizer, e que nunca se volta para seu real interlocutor. Talvez um pouco mais de esmero na composição dos planos, bem como de certas explicações para o desaparecimento do pai da jovem e a loucura de sua mãe, sem que fossem dadas pela via do didatismo, acrescentassem mais pontos ao filme, que chega ao seu epílogo com uma possível sensação de enfado e de ter ido menos longe do que parecia se propor inicialmente.

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