29 de jun. de 2011

Laranja mecânica, um libelo para a demasiada violência


Poucos filmes recebem tão bem a alcunha de clássicos como Laranja mecânica (A clockwork orange, 1971). Sempre lembrado em listas de melhores de todos os tempos, o filme de Stanley Kubrick apresenta indiscutíveis qualidades, seja do ponto de vista técnico, seja do artístico, que também asseguram sua atemporalidade. No foco da narrativa, está Alex (Malcom McDowell, eternizado pelo papel), um jovem que se utiliza da força bruta da violência em detrimento do diálogo para aterrorizar as pessoas na cidade em que vive. O cenário é futurista e cataclismático, evidenciando uma concepção de porvir que se tinha há exatos 40 anos, tempo de vida do filme até aqui. Acompanhado de sua tertúlia, Alex espanca, agride, intimida, esbofeteia, vocifera, coage. Não há limites para aqueles rapazes que perderam há muito o senso de humanidade, aos quais não resta nem mesmo um silvo de protocooperação. Metonimicamente, Kubrick apresenta ao público uma população em estado de decadência e degradação moral, cujas práticas negativas chegam a exalar um odor fétido.
Trilhando esse caminho de semeadura do desespero e do medo, os amigos vão muito longe, até que o governo decide colocar em prática um experimento de lavagem cerebral que pode ser a solução ideal para o fim da violência desmedida. Então, submetem Alex a esse processo, e o resultado é um rapaz passivo a toda forma de provocação que se faz a ele, o que é interpretado como um êxito do processo de “conversão”. Calcado nessa premissa, Kubrick entregou um dos filmes mais memoráveis da história do cinema, que faz jus a elogios e lisonjas, por seu poder de fogo de condução à reflexão. A história de Alex é suficientemente intensa para despertar ponderações a respeito da natureza humana e de sua condição de violência latente. Convenções sociais podem até adormecer certos instintos animalescos, mas não sublimá-los de todo. O que o método utilizado com o protagonista faz é anular mecanicamente um componente que já está impresso na estrutura genética do homem desde tempos imemoriais, e que, em primeira instância, é sua garantia de sobrevivência. Freud, o papa da psicanálise, afirmou que uma das grandes pulsões humanas é a violência, tanto quanto o sexo. Destas duas derivam as ações que praticamos, que nos moldam e que determinam nossas redes relacionais.
O sexo também aparece em Laranja mecânica, especificamente em uma sequência na qual Alex, ainda sob efeito de sua verve cruel, estupra uma mulher em sua própria casa, na presença de seu marido, a quem espanca com a ajuda de seus amigos. A cena é embalada por música erudita, construindo um paradoxo entre maldade e elevação do espírito e caracterizando um dos insights de vigorosa ambivalência proporcionados pelo diretor. O longa causa desconforto por sua crueza, por não se fiar em um discurso edulcorado e por levar à visão aterradora da podridão humana. Guardadas as devidas proporções, há pontos de aproximação entre esse filme e O cheiro do ralo (idem, 2006), por sua capacidade de extrair dos porões dos pensamentos humanos o que há de vileza e degradação. E esse quê de falta de caráter não é uma exclusividade de Alex, mas daqueles que o submetem à tal lavagem cerebral. Depois de se tornar uma espécie de cordeirinho, o rapaz fica vulnerável a qualquer ato de violência que seja cometido contra ele, sendo incapaz de reagir. Indo ao outro extremo, ele passa a ser alvo da fúria de quem um dia esteve sob sua ameaça. Vale ressaltar aqui o desempenho abissal de McDowell, um ator de aparições profusas no cinema, embora com brilho ínfimo se comparado à década na qual se insere esse filme aqui. O próprio Kubrick declarou que jamais teria dirigido o filme se não tivesse a presença do ator no elenco, o que ajuda a atestar sua relevância para a história.
Laranja mecânica é uma adaptação do livro homônimo de Anthony Burgess, que traz marcas autorais importantes e reforça a tese de que, violentos por natureza, os homens necessitam de esteios que balizem suas ações. Entretanto, esse cerceamento ao comportamento violento não deve ser feito por meios artificiais e igualmente agressivos. A tese (palavra que vem do grego e significa “produto colocado”) de que violência gera violência está colocada mais uma vez. O discurso impávido de Burgess, de que Kubrick se apropriou para construir a versão fílmica do livro, reafirma sua validade, e permite ao espectador tirar suas próprias conclusões. Voltando à trilha sonora, ela é uma responsabilidade de Wendy Carlos, colaborador do cineasta em outro filme icônico de sua carreira: O iluminado (Shining, 1980). Além desse, ele é responsável por títulos como um documentário chamado Squish story (1986) e Tempestade de gelo (The ice storm, 1997), sendo este último um filme de Ang Lee que ficou conhecido pela narrativa impactante, sem meios-termos. Carlos também trabalha como compositor, um expediente que ele exerce muito mais raramente, entretanto. No filme analisado, a composição musical é de suma importância, pois dimensiona o espectador para uma ambientação de desvario e desolação que a conjuntura futurista proposta por Kubrick a partir do romance homônimo exige.

Outro aspecto interessante do filme é o fato de o futuro não ser jamais determinado em termos de data. Sabe-se apenas que se trata de um época vindoura, que pode ser de 20, 20 ou 100 anos à frente. E esse futuro é decadente, como aquele que se insinua em Filhos da esperança (Children of men, 2006), que Alfonso Cuarón viria a imaginar exatos 35 anos depois, e que também é uma visão desalentadora de um possível destino da humanidade. O cenário da trama de Laranja mecânica é conhecido – a Inglaterra do futuro – mas ele pode ser estendido para qualquer outra região do mundo, já que o esquadrinhamento da câmera não se reduz aos espaços tipicamente ingleses, numa espécie de tomada da parte pelo todo, como uma sinédoque. O idioma usado pelos personagens também é um caso à parte. Trata-se de uma fusão de línguas diversas realmente existentes (russo, inglês, cockney) denominada Nadsat. É por meio desse idioma artificial que Alex e sua gangue se comunicam, e o grupo é intitulado por eles “druguis”, do russo Друг (amigo). Ele também é narrador do filme, especialmente antes de passar pela lavagem cerebral. Essa fusão de língua faz lembrar o idioma híbrido usado pelos personagens de Código 46 (Code 46), de Michael Winterbottom, ambientado em um futuro também impreciso, no qual os níveis de globalização são tão acentuados que se fala uma mistura de inglês com espanhol e uma pitada de francês.
Kubrick levou a cabo o projeto do filme com um orçamento relativamente modesto, mesmo para os padrões da época em que foi concebido. Foram apenas , milhões de dólares para um filme de 138 minutos com efeitos especiais e uma narrativa complexa, com movimento intrincados e pérolas de reflexão. O filme atinge em cheio o público, que pode amá-lo ou odiá-lo, a depender da perspectiva sob a qual o enxergar. De fato, as atitudes de Alex, muitas vezes, despertam asco, e é possível que o espectador também se defronte com uma torcida interna pela destruição do protagonista, uma prova cabal de que a violência não está apenas no outro, mas em cada um de nós, mais ou menos dosada. Entretanto, o subtexto de Laranja mecânica permite uma leitura inferencial de um libelo para a demasiada violência, para utilizar a linguagem jurídica em que o termo acima citado é sinônimo de acusação. Até que ponto o ser humano pode ir sem freios aos seus instintos? Outros filmes recentes voltaram a trazer à tona essa discussão, como os oscarizados Onde os fracos não têm vez (No country for old men, 2007) e Sangue negro (There will be blood, 2007), concidentemente contemporâneos. O debate proposto pelo filme está longe de ser fechado, e é um típico caso de discussão à qual não se pode passar incólume.

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