14 de jul. de 2011
Entreatos do desconcerto em Singularidades de uma rapariga loura
A extensa filmografia de Manoel de Oliveira ganhou mais um exemplar com o lançamento de Singularidades de uma rapariga loura (idem, 2009), baseado no conto homônimo de Eça de Queirós. Em apenas 60 minutos, o diretor conta uma deliciosa história de paixão recolhida e engano que seduz o espectador que se deixar levar pela obsessão de Macário (Ricardo Trêpa) pela jovem que lhe aparece todos os dias na janela. Nasce dessa observação diária uma paixão que o faz de refém, e o leva a prometer a si mesmo que será capaz do que for necessário para alcançá-la. E dessa vontade de ter a jovem decorre um desdobramento que, mais tarde, descobrir-se-á desagradável. É com essa fagulha de trama que o realizador português, o mais velho em atividade, discursa solenemente sobre a falência de certas instituições econômicas e sociais, e sobre o véu que esconde as verdadeiras intenções dos seres humanos, apropriando-se da escrita de um dos autores mais importantes do Realismo.
No transcorrer do enredo, nota-se o estilo inconfundível do diretor, que abusa dos longos planos-sequência, e de um estilo de observação de seus personagens algo hermético, gerador de uma certa inquietude na plateia. O protagonista narra sua pequena tragédia particular a uma desconhecida durante uma viagem de trem, e ela se propõe a ouvir atentamente tudo o que ele tem a dizer. Aquele movimento catártico de Macário é fundamental para ele, que se vê na grande necessidade de compartilhar seu infortúnio com o primeiro interlocutor que lhe der oportunidade. Assim, vamos acompanhando, pela sua ótica, como se deu seu envolvimento com a jovem da janela da frente, e como o relacionamento se desenvolveu dali para frente. Contudo, vale comentar que a trama aparentemente simples é apenas um pretexto para questões mais profundas sejam debatidas pelo roteiro, decalcado de uma obra que enxovalha certos códigos de conduta a que a sociedade se viu obrigada a se apagar com o passar dos anos. No começo do conto, a mulher que ouve as confissões de Macário assume o papel de narradora, detalhe que é modificado no filme, em que é o próprio protagonista quem se encarrega de principiar a narração de suas memórias.
A tal rapariga loura se chama Luísa (Catarina Wallenstein), e ele a conhece depois de começar a trabalhar como contabilista no armazém de seu tio Francisco (Diogo Dória). Uma vez instalado nos aposentos do tio, como ele vai contando à estranha que conhece no comboio, Macário se encanta pela figura enigmática da donzela que faz dele um apaixonado. Nesse momento do filme, a câmera focaliza a personagem sob uma perspectiva distante, envolvendo-a em uma atmosfera de sonho e idealização, que será desconstruída posteriormente, para dar lugar a uma outra concepção relativa à personagem. Somos cúmplice do ponto de vista de Macário, que apresenta sua amada com riqueza de detalhes, e nos leva a compartilhar com ele as impressões que tem sobre a jovem. Com relação aos atores que dão vida aos personagens, uma característica que aparece em outros filmes de Oliveira está aqui também. As atuações de todos soam propositalmente artificiais, como estivessem a denunciar a fragilidade das convenções e a deixar esvair o verniz que recobre o comportamento individual. Todos os personagens, incluindo Macário, denotam uma dificuldade em manter suas aparências, embora alguns a façam com mais êxito. E o diretor ainda aproveita para lançar mão da poesia propriamente dita, em um dos encontros de Macário com Luísa, no qual um dos frequentadores da casa da jovem declama um belo poema de um dos heterônimos de Fernando Pessoa, despertando o senso reflexivo do público para uma obra que se abre em várias possibilidades de leitura, não se confinando ao olhar de um homem em estado de paixão por uma mulher, mas sobretudo, por uma imagem que idolatrou.
No texto de Eça de Queirós, Macário se refere ao caráter da rapariga como sendo tão louro quanto seus cabelos, salientando que o louro é uma cor fraca e desbotada. Assim, o caráter daquela moça também daria mostras de desbotamento, em uma cena simples, perto do final do filme, que evidencia o componente trágico que assola a história do protagonista, e envolve a compra de uma joia. A símile é bastante eficiente, e entrega discretamente o jogo para o público, que pode começar a desconfiar dais tais singularidades da jovem a partir dessa descrição física e psicológica. Manoel de Oliveira imprime ao seu filme um ritmo lento, mas não claudicante, e incorpora a ele umas peculiaridades que são próprias dos contos: a brevidade e a concentração da narrativa em uma única trama, que tem seus desdobramentos mostrados com fluidez e destreza. Raramente, o cinema é tão econômico em duração como neste Singularidades de uma rapariga loura, um filme que brinca com o jogo cênico da luz e das sombras e produz delicados insights reflexivos com sua narrativa de aparente ingenuidade.
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