Existem filmes que simplesmente ultrapassam o rótulo de mero entretenimento, por sua capacidade de abrir portas e janelas que podem incomodar, e muito, a quem assiste a eles. Valsa com Bashir (Waltz with Bashir, 2008), é desses filmes que merecem atenção especial por sua maneira fantástica de lidar com a dor. E fantástico, aqui, refere-se muito mais a uma possibilidade de despertamento de interesse que à qualidade daquilo que desperta a fantasia, ainda que essa segunda acepção também seja apreciavelmente encaixável ao longa de Ari Folman.
A narrativa dessa animação israelense falada em hebraico está voltada para o cotidiano do próprio Folman, que participou da Guerra do Líbano, ocorrida nos anos 80, e que não consegue se recordar do quanto aqueles dias foram um pesadelo em sua vida. Com isso, ele passa a procurar alguns de seus amigos próximos, na tentativa de reconstitui aquilo que viveu e que, em algum aspecto, lhe foi tão cruel. Na sequência inicial, fica muito claro que o filme é uma mescla de lembranças e de realidade que tomam a vida do diretor, também protagonista. Aliás, esse detalhe da história já merece destaque: Folman se recriou em uma versão animada, e assumiu o posto de personagem principal para colocar na tela seus dilemas e seus questionamentos. Ao mesmo tempo que esse personagem é sua própria computadorização, também é uma espécie de alter ego seu. Nesse sentido, torna-se possível acreditar que o cineasta, além de expor suas feridas abertas de uma forma original, permitiu-se utilizar como a representação icônica do desespero do ser humano pela memória.
O início do filme já apresenta a duplicidade sonho / verdade, com uma sequência em que um personagem é perseguido por 26 cães raivosos. Os animais são corpulentos, e correm atrás de um homem desesperado. Logo, descobre-se que se trata de um sonho do amigo de Folman, que o conta para o diretor, e esse acontecimento é a mola propulsora da ação do filme. Depois de contar suas imagens oníricas, ambos concluem que o sonho pode ter relação com a experiência vivida por eles na guerra. Mas a grande questão é que Folman não se lembra de nada do que aconteceu nesse período, e sua necessidade de recordações leva-o a confrontar vários amigos do passado, para quem faz perguntas insistentes.
A partir das conversas do diretor com uma série de personalidades, o espectador nota que Valsa com Bashir é um filme híbrido de animação com documentário, pois, de um lado, as imagens forma criadas pelo computador e, do outro, as discussões e os personagens que aparecem na tela são realíssimos. O resultado final acaba por caracterizar a produção como um devaneio multicolorido com espasmos de realidade que fascina, espanta e incomoda em certos momentos. Folman aborda uma temática cruenta, que requer um tratamento delicado ou não, a depender da escolha do diretor. No caso de Valsa com Bashir, a opção dele pela animação parece ser pelo fato de os desenhos funcionarem como atenuantes da visão aterradora de cenas reais de guerra, bem como permite uma liberdade maior na exposição dos cenários de que este celuloide (afetivamente falando) é composto.
Folman navega pelas águas profundas do depositário de vivências de que é feita a memória, num trajeto distinto de um contemporâneo seu: Horas de verão (L’heur d’été, 2008), que retrata os conflitos entre memória e novidade sob o prisma da família. O documentário animado traz para o cinema discussões interessantes a esse respeito, e brinda o público com algumas imagens estranhamente belas, que repousam sobre os olhos do espectador com uma intensidade quase acintosa. Há uma certa sequência que é repetida várias vezes no filme: a que mostra garotos nadando em uma praia, que não é situada nem no tempo nem no espaço, e que leva a crer que seja uma reminiscência intermitente que acomete o diretor-personagem. Aqueles adolescentes que aparentam ter seus 15 ou 16 anos são seres humanos que talvez não tenham a exata noção do peso de responsabilidade que está sobre seus ombros. Aqueles jovens talvez sejam Ari Folman e seus amigos.
Tamanho apuro visual e cuidado na direção e na montagem, entre outras qualidades notáveis, fizeram o filme ser um dos cinco finalistas entre os indicados ao Oscar de melhor filme estrangeiro em 2009, concorrendo com títulos como Entre os muros da escola (Entre les murs, 2008) e A partida (Okuribito, 2008), e perdendo para este último, que também era digno tanto da indicação quanto da vitória. O realizador executou uma edição bastante adequada, que permite ao espectador entrar em uma ambiência de pura incerteza, que é como o próprio Folman se sente. Ao longo da projeção vão sendo feitas entrevistas que colocam o grande tema do filme em relevo, e uma das mais interessantes é a que relata um processo de indução de lembranças feito por pesquisadores. Eles apresentaram imagens quaisquer a alguns voluntários, sendo que nenhuma delas fazia parte de suas vidas. Mas, devido a um mecanismo empregado na pesquisa – que quem assiste ao filme descobre qual é, pois ele é explicado – passaram a acreditar que aquelas lembranças eram suas. Esse trecho do filme, bem como outros, demonstram que as convicções de Folman são delineadas de forma subliminar, e cabe ao espectador acreditar ou não nelas.
Como na vida, nada do que é capturado pelo olhar é subjetivo, e em Valsa com Bashir essa tese é reforçada pela bela composição imagética orquestrada pelo diretor. O filme serve ora de acalento, ora de fonte de angústia, bem como nossas memórias nos servem. Para quem não sabe, o título do filme é uma referência a Bashir Gemayel, um líder miliciano e político do Líbano, falecido em 1982, que foi eleito presidente do país, mas sequer chegou a assumir o mandato, pois foi assassinado antes disso, durante a Guerra Civil Libanesa. Na animação / documentário, ele é apenas a ponta de um iceberg metafórico que se traduz em uma deambulação constante e inevitável de um esteta da imagem por sua identidade, usando a memória como diapasão do autoconhecimento.
17 de jan. de 2011
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