O olhar sul-americano frequentemente associa tudo que vem da parte setentrional da Europa como sendo dotado de frieza e distância. No caso da Escandinávia, essa máxima parece ganhar força, já que seus habitantes exalam um certo ar de desapego. Como qualquer mito, esse também é passível de ser derrubado. E pode sê-lo feito de uma maneira não muito convencional, como nos atesta Luzes na escuridão (Laitakaupungin valot, 2006). O filme de Aki Kaurismäki chegou às telas cariocas com um atraso fenomenal de 4 anos, o que é quase um crime, tendo em vista a sua qualidade discreta. Felizmente, porém, ele ganhou uma chance no cinema, ainda que em uma passagem relâmpago.
Kostinen é o seu protagonista, um homem taciturno e de pouquíssimos amigos, bem como de pouquíssimas falas. Sua caracterização física e psicológica fazem-no o arquétipo do loser, termo eminentemente estadunidense que já se estendeu há muito para outras culturas. Ele não é popular, não parece muito disposto a travar diálogos com ninguém à sua volta, e a única pessoa com quem fala nos primeiros minutos de projeção é a dona de um trailer que vende salsichas de vitela das quais ele se alimenta. Ainda assim, são ocasiões praticamente semi-monologais. No trabalho, constantemente é vítima de chacotas, o que parece não contribuir em nada para acender nele um desejo de desforra. Pelo contrário, ele mantém intacto seu comportamento passivo, que beira o afásico.
O trabalho de Kostinen é ser guarda-noturno de um complexo de lojas no centro de Helsinque (que, diferentemente do que muitos pensam, é um proparoxítono no original), e a profissão que executa não lhe desperta qualquer entusiasmo. Aliás, ele é o exemplo de pessoa que acaba sendo uma péssima companhia para gente efusiva, que está sempre disposta a fazer mil coisas ao mesmo tempo. Kostinen vai sempre na contramão desse espírito, e isso chega a gerar uma discussão acirrada com um colega de trabalho, entretanto, nem nessa hora ele chega às vias de fato. A verdade é que Kaurismäki demonstra uma capacidade de incomodar o tempo inteiro com esse filme por meio da inércia em que seu protagonista está embebido. O espectador que acompanhar sua história à espera de uma grande reviravolta talvez não tenha seu desejo atendido pelo diretor.
Aqui, Kaurismäki abre mão de qualquer centelha de grandiloquência para narrar um conto moderno de desalento e autonegação de apenas 78 minutos, que mais parecem 30 devido à sua fluidez, malgrado os índices prototípicos do contrário, como a economia na ação e nos diálogos. Antes de prosseguir com os comentários sinóticos, vale comentar um pouco sobre a carreira do cineasta que levou o filme a cabo. Aki Kaurismäki é irmão mais novo de Mika Kaurismäki, com quem trabalhou como co-diretor no início de sua carreira. Os finlandeses são um exemplo de irmãos cineastas que seguem com suas produções em paralelo, diferentemente do que ocorre com os Coen e os Dardenne, para citar dois exemplos.
O cinema praticado por Aki sofreu algumas influências perceptíveis de nomes como Jean-Pierre Melville e Robert Bresson, e sua filmografia inclui uma versão para Crime e castigo, obra clássica de Fiódor Dostoiévski que foi adaptada para a capital finlandesa atual no ano de 1983 (já não mais tão atual assim...). De lá para cá, ele só vem somando trabalhos premiados pelos festivais mundo afora. Um de seus filmes mais elogiados é A garota da fábrica de caixas de fósforos (Tulitikkutehtaan tyttö , 1990), um filme que já apresenta elementos de um forte pessimismo encabeçando a história do romance malfadado entre uma operária e um homem bem apessoado que a ilude. Alguns anos depois, Aki iniciou sua chamada trilogia “Finlândia” com Nuvens passageiras (Kauas Pilvet Karkaavat , 1996), a história de um casal que perde o emprego e tenta, em vão, obter uma nova colocação no mercado de trabalho. O filme seguinte foi O homem sem passado (Mies Vailla Menneisyyttä, 2002), um de seus trabalhos mais elogiados, que tem como protagonista um homem amnésico depois de apanhar durante um assalto, e que levou o Grande Prêmio do Júri no Festival de Cannes do mesmo ano.
Luzes na escuridão encerra a trilogia, e assinala novamente o que parece ser uma característica das mais marcantes de seus filmes: a fotografia em tons algo expressionistas, coloridas e às vezes berrantes, que são uma espécie de antítese da personalidade fugidia de seus protagonistas, também sempre com uma aura acinzentada sobre suas cabeças desorientadas. Esse aspecto parece ser um elo que confere unidade à sua obra, e chama a atenção de olhos atentos às singularidades imagéticas que podem ser associadas a cada realizador. No caso de Kaurismäki, essa parece ser a peculiaridade que ele ostenta como flâmula, e que ajuda a dimensionar sua narrativa para um cruzamento bem-sucedido entre drama intermitente e fios de alegria dissonante. Voltando à sinopse da terceira parte da trilogia, o cotidiano ordinário de Kostinen aparenta ganhar movimento com a aproximação de Aila (Maria Heiskanen), uma linda loura que o aborda no refeitório de seu trabalho.
Na verdade, Aila é a isca de um grupo de gângsters interessados em roubar a joalheria que se situa no complexo vigiado por Kostinen, e ele parece ser uma presa fácil para os encantos dessa mulher, que não faz muito esforço para ganhar sua confiança. Mas o envolvimento deles não tem nada de arrebatador. Pelo contrário. Como ele, ela parece tomada por um conformismo com a vida que a leva a ter como comparsas homens tão reles. E saber se o encontro de Kostinen com Aila será favorecedor de uma reviravolta interior por parte do personagem é descoberta cabível para quem for assistir ao filme. No fundo, como os demais filmes de Kaurismäki, Luzes na escuridão é um filme bastante simples, em que o diretor optou por uma composição de planos minimalista, bem como nas atuações e nos acontecimentos. Cativar o espectador não é uma de suas metas, e sim introduzi-lo em um universo lento e lasso, que se configura em uma investigação sobre os limites da apatia.
25 de jan. de 2011
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