28 de jan. de 2011

“O refúgio”: uma crônica moderna da falta de rumo

Do diretor François Ozon, verdadeiramente, podem se esperar muitas surpresas. Um dos nomes mais ativos do cinema francês contemporâneo, ao lado de Christophe Honoré, ele dirige quase um filme por ano, vide as datas de seus últimos trabalhos: Amor em cinco tempos (5 x 2, 2004), O tempo que resta (Le temps qui reste, 2005), Angel (idem, 2006) e Ricky (idem, 2009). A esses, vem se somar O refúgio (Le refuge), filmado no mesmo 2009 de Ricky. Para sua protagonista, Ozon elegeu Isabelle Carré. Ela personifica Mousse, uma jovem tão sem rumo quanto bela.

Mousse é namorada de Louis (Melvil Poupaud), e esse romance é tão intenso quanto destrutivo para os dois. A abertura do filme já coloca essa observação em evidência. A câmera do diretor apresenta um grande plano-sequência de Paris à noite, com ruas movimentadas, gente indo e vindo. A noite, por si só, já carrega consigo, dentre outras características, o sombrio, o soturno e o sorumbático. Depois de um ou dois minutos de exibição dos créditos, com uma espécie de voo rasante no metrô parisiense, chegamos a um quarto onde estão os protagonistas. Mousse e Louis tomam uma alta dose de drogas, e aquele elemento de fuga da realidade lhes dá o desejo de fazer sexo. Eles já não têm por onde se drogar, mas Louis encontra uma maneira de injetar a droga e levar ambos a um êxtase fabricado e fugidio.
No dia seguinte, eles estão exaustos sobre a cama, e Louis é o primeiro a despertar. Movido pelo desejo irracional de se drogar, ele procura onde introduzir a heroína que consome, e só encontra uma veia no seu pescoço. A cena que mostra o consumo de drogas do personagem é forte e impactante, demonstrando que Ozon não estava interessado em se eximir de apresentar uma realidade acachapante, incômoda. Aquela acaba sendo a última dose de Louis, que morre poucos minutos depois de overdose, deixando Mousse “viúva” e desorientada com a ausência repentina do namorado. A partir desse acontecimento de contornos fatídicos, O refúgio começa a se delinear, num ritmo parecido com o de uma gestação: lento e gradual. Afinal, a gravidez é um tema que aparece com toda a força no longa, pois Mousse descobre, logo depois da morte de Louis, que espera um filho dele. Significa, portanto, que uma parte do namorado ficou com ela, o que assegura a continuidade de sua semente.
Por conta dessa gravidez, Mousse entra em forte conflito interno, e pensa inicialmente em um aborto. Mas logo acaba se encantando – discretamente – com a possbilidade de ser mãe, e decide levar a gestação adiante. Mas que fique bem claro que a decisão da personagem advém de uma impossibilidade de levar sua vontade inicial a cabo. Ela hesita tanto entre ter ou não o bebê que, quando se dá conta, a gravidez já está bastante adiantada, e não há mais como voltar atrás. Com isso, o título do filme se torna justificável, pois Mousse decide passar os meses de espera da criança em uma casa distante do frenesi citadino. Lá, ela pretende encontrar a paz necessária para seu autoconhecimento e para uma vida menos desregrada. Entretanto, Mousse acaba se comportando de modo reprovável para uma grávida, não deixando de consumir drogas, o que faz de suas atitudes uma fonte de angústia constante para o espectador, que assiste com impotência à sua pouca afeição ao filho que carrega no ventre.
Ozon se arriscou ao fazer O refúgio. O roteiro, escrito em parceria com Mathieu Hippeau, valoriza sobretudo os vácuos narrativos, entregando o descontentamento da protagonista com sua realidade de forma pouco palatável. Sabemos que Mousse não desejava aquela gravidez, e o norte do filme é exatamente o fardo e, ao mesmo tempo, a delícia de ser mãe. Mesmo que dure apenas 88 minutos, o longa pode soar cansativo para quem não está habituado a histórias melancólicas. Sim, se há uma palavra capaz de sintetizar o espírito do filme, essa palavra é melancolia. O realizador de 45 anos lança um olhar dolorido para a história de vida de uma mulher sem rumo, e estende sua observação algo gélida para toda uma juventude contemporânea.

Com isso, ganha como primo-irmão um conterrâneo de Jean-Pierre e Luc Dardenne: A criança (L’enfant, 2005). O vencedor da Palma de Ouro de melhor filme em Cannes também retrata uma juventude perdida e vazia, e usa a chegada de um filho para evidenciar a inabilidade de jovens protagonistas para lidar com os cuidados necessários advindos com a paternidade e a maternidade. Ozon demonstra uma filiação ao estilo da dupla de diretores ao investir em uma abordagem um tanto distante da história, focando suas lentes na vida de Mousse com uma certa isenção de julgamento, mas transfigura seu olhar em algo terno, por mais que a personagem esteja muito aquém do que se espera de uma genitora. Como os Dardenne, Ozon não se ocupa de dar lições de moral, mas apenas em contar sua história.
E a rotina pacata de Mousse se altera com a chegada de Paul (Louis-Ronan Choisy), o irmão de Louis, que é homossexual, fato que vai render um desdobramento importante à trama posteriormente. Ele quer estar perto da jovem, e os dois acabam construindo uma amizade muito bonita, já que Paul parece ver no filho que Mousse espera a continuação de seu irmão, de quem não andava tão próximo ultimamente. Inicialmente arredia à presença de outra pessoa em seu lugar seguro, ela acaba condescendendo em abrigar o rapaz por ali. E não tarda para que um sentimento maior que a amizade brote em seu coração. Desse sentimento, porém, derivam atitudes sem floreios, que apenas evidenciam a enorme carência emocional e afetiva que paira sobre aquela futura mãe.
O refúgio é um filme singelo, destituído de peripécias narrativas, que transmite uma mensagem de constante desconforto e imprime uma sombria realidade ao cotidiano angustiante de uma mulher de beleza e desamparo igualmente intensos. Com todo o enredo girando em torno da gravidez da protagonista, Ozon realizou um desejo que alimentava há alguns anos: falar sobre a gestação. É curioso saber que Isabelle Carré estava mesmo grávida quando atuou no filme. O fato representa uma interpenetração da ficção na realidade, e gera o questionamento, ainda que embrionário: até que ponto a maternidade pode significar uma mudança de horizonte na vida de uma mulher? O final chega para coroar a total falta de perspectiva de Mousse, e se afasta do que Hollywood preceituaria como happy end. Melhor assim. A realidade de Ozon é menos sublime, mas é mais plausível.

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