Gostem ou não, Woody Allen continua lançando um filme por ano. E esse ritmo invejável para muitos realizadores se mantém há mais de duas décadas, confirmando o quanto o novaiorquino é pródigo em construir e entregar retratos precisos de seu tempo e das pessoas. Nos últimos anos, o diretor tem migrado para diferentes locais a fim de se reinventar. Após filmar três vezes seguidas em Londres, de onde saíram Ponto final (Match point, 2005), Scoop – O grande furo (Scoop, 2006) e O sonho de Cassandra (Cassandra’s dream, 2007), Allen recebeu um convite do governo espanhol para rodar um filme em Barcelona, e o resultado é o filme cujo título já resume boa parte de sua sinopse.
Vicky Cristina Barcelona (idem, 2008) é mais um atestado do quanto Allen pode ser competente e nos surpreender. O longa é uma declaração de amor à cidade de Antonio Gaudí, arquiteto da Sagrada Família, obra inacabada que se ergue imponente por lá, e que também serve de cenário para a história do filme. Vicky (Rebecca Hall) e Cristina (Scarlett Johansson) são duas amigas de temperamentos contrastantes que decidem passar suas férias em Barcelona. Logo que o filme se inicia, após os clássicos créditos de abertura de quase todos filmes de Woody Allen, um narrador, outra figura recorrente na filmografia do diretor, ambienta o público no cotidiano e na personalidade das amigas. Entendemos que elas se dão muito bem e têm opiniões semelhantes em vários assuntos, mas divergem radicalmente no plano dos relacionamentos amorosos.
Vicky preza a estabilidade no amor antes de mais nada, e não consegue conceber a ideia de um romance fugaz, com prazo de validade. Sua segurança é seu maior bem. Ela está em Barcelona para concluir sua tese sobre a cultura hispânica, e está de casamento marcado com um noivo bastante sem graça que compartilha de sua maneira totalmente convencional de encarar a vida. Cristina, por outro lado, não sabe o que quer, mas sabe o que não quer, como bem nos informa o narrador. Ela vem tentando a carreira de atriz – e, mais uma vez, uma pitada de metalinguagem aparece no enredo de um filme de Allen - , mas ainda não conseguiu a chance que tanto espera. No amor, é capaz de viver as maiores loucuras possíveis, sem medo de se lançar ao abismo mais profundo. Durante essa breve descrição do narrador, que toma uns 5 minutos do filme, Allen usa o recurso comum de dividir a tela em dois para acentuar as disparidades existentes entre as personagens.
Então, o espectador é transportado para a atmosfera quente e atordoante de Barcelona, uma cidade que exerce o papel de coadjuvante de luxo, suplantando Nova York, amada do diretor, com talento indiscutível. Uma vez no lugar, as amigas logo se envolverão com Juan Antonio, um famoso pintor espanhol que tem tanto talento com suas telas quanto para arrumar confusões. Seu ar galanteador chama imediatamente a atenção de Cristina, que está louca para viver uma aventura excitante na cidade. Vicky, por sua vez, não quer nem sonhar em ser infiel a seu noivo, e também trata de desencorajar sua amiga a ceder a qualquer investida daquele desconhecido. Elas acabam descobrindo que Juan Antonio vem de um processo de separação traumático e escandaloso de Maria Helena (Penélope Cruz), uma mulher tão sedutora quanto desequilibrada. E saber disso só aumenta o interesse de Cristina por Juan Antonio.
O pintor acaba abordando as duas em um restaurante pouco depois da visita delas à sua nova exposição, e causa diferentes reações nas amigas com suas cantadas nada veladas. Ele lhes convida para passar um fim de semana em Oviedo, pequena cidade próxima, para comer, beber e amar, basicamente. A oferta soa ultrajante para Vicky, que declina dela imediatamente, mas encanta Cristina com tamanha objetividade. Ali, ela já está convencida a dizer sim, mas ainda precisa persuadir Vicky. Na sequência em que Juan Antonio tenta convencê-la, surge uma das tiradas mais geniais do filme. Vicky diz que não pretende comprar a ideia de fazer sexo vazio com um desconhecido, ao que Antonio replica: “Sexo vazio? Você se deprecia tanto assim?”, demonstrando a incisividade do pintor para arrebatar a amiga resistente. Não demora muito mais para que ela seja convencida, mesmo que diga que está indo apenas para acompanhar Cristina.
É interessante notar que Allen oferece mais um denso estudo de personagens por meio de uma roupagem cômica. Para quem acredita que as comédias não podem servir de reduto para a reflexão crítica, Vicky Cristina Barcelona está aí para provar exatamente o contrário. As duas amigas se apresentam como dissonantes no quesito paixões, mas não são fruto de uma caracterização esquemática. Na verdade, elas podem ser encaradas como dois lados de uma mesma moeda. À maneira alleniana, Vicky e Cristina encarnam a dualidade do ser humano, que a maior parte do tempo opta por ostentar somente um determinado aspecto de sua personalidade, o que não anula sua capacidade de ser e/ou parecer o oposto ou apenas o discrepante daquilo que é ou aparenta. Durante a aventura das amigas em Oviedo, Cristina cai nos braços de Juan Antonio, que não tem a mesma facilidade para arrastar Vicky para a cama. De alguma maneira, o comportamento evasivo e arredio de Vicky incita Juan Antonio.
Até aqui, o filme já ganhou o espectador com a forma leve e descontraída com que a sua trama é contada. Mas as neuroses nossas de cada dia têm espaço garantido na obra de Allen, e aqui ela atende pelo nome de Maria Helena. Até certa altura, a personagem é apenas citada, até que ela entra em cena e chama toda a atenção para si. A ex-mulher de Juan Antonio é vivida pela talentosa Penélope Cruz, que vem se firmando como uma das grandes intérpretes de sua geração, ao lado de nomes como o de Kate Winslet, Julia Roberts e Juliette Binoche. Sua Maria Helena transpira loucura, uma loucura deliciosa de se ver e ouvir. Inconformada com o fim de seu casamento com Juan Antonio, ela quer de qualquer maneira voltar a viver com ele. E, logo, instaura-se um relacionamento a três: ela, Juan Antonio e Cristina passam a viver juntos, o que choca Vicky. A estada das amigas acaba se estendendo, e cada uma delas trata de lutar para manter suas vidas nos eixos. Mas no fundo, sabem que estão correndo para a desestabilidade com passadas compridas.
Depois da entrada de Maria Helena em cena, Vicky Cristina Barcelona ganha definitivamente ares alomodovarianos. Assim, a homenagem de Allen a gêneros e a diretores se faz concreta novamente. O realizador esquadrinha a cidade espanhola com minúcia, e evidencia em sua paleta de cores múltipla as inúmeras possibilidades de desdobramento do desejo de seus personagens. Fica nítido para o público que todos ali buscam uma identidade que os faça se sentir em seu próprio centro, mas, no fundo todos estão completamente perdidos. Barcelona serviu perfeitamente como pano de fundo para uma história que mexe com os sentidos, e é libidinosa como poucos trabalhos produzidos por Woody Allen. Nesse filme, ele dirige Scarlett Johansson pela terceira vez, fato que fez muitos apontarem a atriz como sua nova musa, e até mesmo como sua Mia Farrow do século XXI. Talvez seja exagero dizer isso. Não que Johansson não seja ótima atriz e não se enquadre com precisão no universo alleniano – o que dizer da ótima dobradinha entre eles em Scoop – O grande furo? Mas Allen rodaria seus dois filmes seguintes sem a presença de Johansson: Tudo pode dar certo (Wheathewer works, 2009) e Você vai conhecer o homem dos seus sonhos (You will meet a tall dark stranger, 2010), elegendo outra loura para um dos papeis principais neste último: Naomi Watts.
Um comentário que se faz necessário sobre a interpretação de Scarlett Johansson é que sua Cristina é facilmente perceptível como o alter ego feminino de Woody Allen. Cada atitude da personagem remete ao trabalho de Allen como ator, o que também se reflete em seu gestual. Cristina representa um sopro de vivacidade naquele personagem que está sempre à volta com fracassos amorosos, com pílulas para dormir e seus ataques psicológicos, pois é mais jovem. Por outro lado, por ser uma mulher, seus problemas parecem ser em quantidade ainda maior. Diferentemente de Vicky, sua maior virtude talvez seja a exposição clara de seus ímpetos, bem como a consumação quase imediata de todos eles. Mas este talvez seja também o seu maior defeito. Lá pelas tantas, quando o filme já passou de sua primeira hora de duração, é Vicky quem começa a questionar sua vida tão regrada e, ao mesmo tempo, tão insossa. E esse questionamento acabará lançando a moça em um envolvimento amoroso com Juan Antonio, quase ao mesmo tempo em que se dá seu desenlace com Cristina, que sente, mais uma vez, que uma relação triádica com ele e Maria Helena não é o que ela quer realmente. Por conta dessa aproximação entre Vicky e Juan Antonio, seu noivado fica ameaçado, perdendo completamente o sentido.
Em sua essência, Vicky Cristina Barcelona pode ser entendido como um filme sobre pessoas com suas vidas vazias em busca de um preenchimento interior que não conseguem encontrar. É possível até mesmo dizer que se trata de um drama disfarçado de comédia. Allen optou novamente por dar uma condução cômica à trajetória de duas amigas que começam como diametralmente opostas, mas que, com o avançar da narrativa, têm novas possibilidades de lidar com a vida sendo aventadas pelo roteiro esperto do cineasta. O filme é um brinde à vida e às inúmeras propostas que ela pode oferecer, mas também é um novo encontro de Allen com suas obsessões, como a inevitabilidade da morte, a frustração do sexo e ao clamor pela arte como tábua de salvação que, aqui, vem encarnada na figura do artista Juan Antonio. A ida do diretor para uma cidade tão solar e, por isso mesmo, mais quente, só lhe fez bem. Cada minuto desse filme é impregnado de um lógica simples, apesar de envolta em um certo pessimismo: tudo o que nos resta é, cientes da impossibilidade de burlar a morte, viver bem pelo tempo que temos.
12 de jan. de 2011
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