Considerado como combalido, o cinema italiano contemporâneo ainda pode dar grandes mostras de vitalidade, como demonstra Caos calmo (idem, 2008), filme de estreia de Antonio Luigi Grimaldi, que conta com roteiro de Nanni Moretti. A simples menção do nome do segundo na ficha técnica do longa-metragem já é um chamariz para quem já ouviu falar de O quarto do filho (La stanza del figlio, 2001), trabalho que rendeu a Palma de Ouro a Moretti em Cannes. De fato, há muita competência na realização desse filme, que, como aquele dirigido por Moretti, trata mormente da questão da perda.
Se em O quarto do filho o protagonista Giovanni (o próprio Moretti) mergulhava na dor e no arrependimento ao experimentar a dura realidade de conviver com a morte do filho que se estava revelando problemático, em Caos calmo ele dá vida a Pietro Paladini, que tem de lidar com a terrível perda de sua esposa. O filme começa com uma sequência em que o personagem passa uma manhã na praia acompanhado de seu cunhado, lazer que é interrompido quando Pietro percebe que há uma mulher prestes a se afogar. Ele se lança nas águas para salvá-la, e consegue o feito. Enquanto isso, a câmera visita a casa do protagonista, e o espectador percebe que a mulher dele está morrendo e, ao que parece, o fato é inevitável. Essa é a grande ironia da história: enquanto ele salva uma mulher desconhecida, sua companheira de anos falece, de certa forma, escapando de suas mãos.
Ao chegar a casa, Pietro é informado do que aconteceu, e assim se inicia seu processo lento e silencioso de entendimento de sua sorte e de conformidade com a perda. O luto do personagem norteia toda a narrativa que se alinhava no filme, que é uma adaptação do romance homônimo de Sandro Veronesi. Trata-se de um drama comovente para espectadores afeitos a reflexões densas sobre os mistérios da vida, e encará-lo pode ser como estar diante de um espelho para quem já precisou se habituar à ausência de um ente querido. Um aspecto que logo chama a atenção é a reação plácida de Pietro à morte de Lara. De certa forma, é uma maneira de esclarecer um lugar-comum acerca dos italianos, que sempre são tidos como histriônicos e expansivos. Em vez de lacrimejar e vociferar, o personagem começa a buscar modos de compreender porque ele não estava em casa quando o fato trágico ocorreu e, somado a isso, ele tem de cuidar de sua filha única de dez anos, fruto de seu casamento.
Para ser honesto com o espectador em potencial de Caos calmo, fica registrado aqui que esse não é um filme que se pauta pela ação. A câmera de Grimaldi espia o sofrimento mudo de Pietro, que não parece capaz de verbalizar a dor que sente, e encontra refúgio para sua chaga psicológica na observação lenta e paciente de pessoas que vêm e vão. Como tem de levar sua filha à escola todos os dias, ele aproveita os intervalos longos entre o início e o fim das aulas da menina para contemplar o cotidiano de gente simples que passa por ali. Logo, ele vai acabar reencontrando Eleonora Simoncini (Isabella Ferrari, de Um dia perfeito), a mulher que resgatou das águas, e dar início a um romance de contornos desalentadores com ela. A cunhada de Pietro, Marta (Valeria Golino, de Respiro) é outra mulher que passa a rondar sua vida, mas o personagem é daqueles que cosem pra dentro, como disse Clarice Lispector certa vez.
O sofrimento de Pietro é tão interiorizado que nem parece existir, mas ele está ali: lento, latente, lancinante. E o envolvimento de Pietro com Eleonora se concretiza em uma cena de sexo entre eles de duração relativamente longa, com dose de violência e paixão. No fundo, nota-se que aquela atitude é apenas uma forma do protagonista de se realizar com o êxtase erótico. Em vez de excitar, a cena gera comoção e desconforto emocional.
A carreira de executivo é colocada em enésimo plano por Pietro, que só se interessa por encontrar as raízes de sua amargura e tentar extirpá-la. Por seu caminho, passam pessoas que tenham encorajá-lo a recomeçar, mas é mais simples falar que fazer. Caos calmo ensina que a dor não deve ser cultivada, mas precisa ser vivida dia após dia, até que seja absorvida e eliminada. O grande mérito do filme é apostar nesse ciclo lento e silencioso de reinvenção afetiva de Pietro, resultando em um conto moderno e sincero sobre o valor que passamos a dar a quem já se foi. A morte, ano após ano, continua sendo um assunto delicado, e Grimaldi coloca o dedo na ferida ao entregar um filme que sonda os escombros resultantes a viuvez inesperada de seu protagonista. A música é outro detalhe no qual o filme ganha pontos. Ela ficou a cargo de Paolo Buonvino, que fez um trabalho notável, privilegiando as composições incidentais, que assinalam brilhantemente a tragédia particular de Pietro.
Nanni Moretti também merece ser elogiado por seu trabalho de ator. Na pele de Pietro, ele não acumula a função de diretor, e tem tempo de sobra para reinar em cena, aparecendo quase o tempo todo na história. Afinal, o filme é dele, e cada minuto de sua presença na tela evidencia sua capacidade de mimetismo na introdução na realidade de um homem comum, que cria um mecanismo estranho para aceitar a morte da esposa: da observação de pessoas levando suas vidas banais ele extrai forças para dar novos passos, e reavaliar sua trajetória. Em que pese alguns instantes claudicantes do filme, um resultado que pode ser atribuído ao fato de o cineasta ser um iniciante, o ritmo de Caos calmo é, no geral, incomodamente melancólico. Grimaldi repete com esse filme sua parceria com Moretti, já que ele fora dois anos antes o diretor de produção de O crocodilo (Il caimano, 2006), último filme de Moretti até o momento. Agora, o italiano tem a oportunidade de dirigir a faceta ator do veterano, e extrai uma interpretação memorável dele.
Em linhas gerais, a experiência de se assistir ao filme pode ser bastante enriquecedora do ponto de vista do contato com uma realidade nefasta que assola o cotidiano de alguém que tinha a quem mais amava. Em nenhuma passagem da história aparecem cenas de flashback apresentando momentos felizes do casal quando Lara era viva. Com isso, a abordagem do diretor, decalcada do romance, torna-se, ao mesmo tempo, asséptica e terna. Asséptica por não se converter jamais em torrente de lágrimas – o que também seria absolutamente legítimo, pois cada um sabe a dor que sente – e terna por humanizar a figura de Pietro a cada fotograma, apoiado em um elenco de coadjuvantes que cumpre com louvor a missão de servir de ponto de apoio ao personagem na sua jornada rumo ao entendimento de seu mal. Ao fim da projeção, fica no coração o sentimento de que, com a perda, vem a necessidade de reinvenção. E da reinvenção, surge o mimetismo, repelente da falta de vontade de viver.
26 de jan. de 2011
Assinar:
Postar comentários (Atom)
Nenhum comentário:
Postar um comentário