28 de jan. de 2011

“O refúgio”: uma crônica moderna da falta de rumo

Do diretor François Ozon, verdadeiramente, podem se esperar muitas surpresas. Um dos nomes mais ativos do cinema francês contemporâneo, ao lado de Christophe Honoré, ele dirige quase um filme por ano, vide as datas de seus últimos trabalhos: Amor em cinco tempos (5 x 2, 2004), O tempo que resta (Le temps qui reste, 2005), Angel (idem, 2006) e Ricky (idem, 2009). A esses, vem se somar O refúgio (Le refuge), filmado no mesmo 2009 de Ricky. Para sua protagonista, Ozon elegeu Isabelle Carré. Ela personifica Mousse, uma jovem tão sem rumo quanto bela.

Mousse é namorada de Louis (Melvil Poupaud), e esse romance é tão intenso quanto destrutivo para os dois. A abertura do filme já coloca essa observação em evidência. A câmera do diretor apresenta um grande plano-sequência de Paris à noite, com ruas movimentadas, gente indo e vindo. A noite, por si só, já carrega consigo, dentre outras características, o sombrio, o soturno e o sorumbático. Depois de um ou dois minutos de exibição dos créditos, com uma espécie de voo rasante no metrô parisiense, chegamos a um quarto onde estão os protagonistas. Mousse e Louis tomam uma alta dose de drogas, e aquele elemento de fuga da realidade lhes dá o desejo de fazer sexo. Eles já não têm por onde se drogar, mas Louis encontra uma maneira de injetar a droga e levar ambos a um êxtase fabricado e fugidio.
No dia seguinte, eles estão exaustos sobre a cama, e Louis é o primeiro a despertar. Movido pelo desejo irracional de se drogar, ele procura onde introduzir a heroína que consome, e só encontra uma veia no seu pescoço. A cena que mostra o consumo de drogas do personagem é forte e impactante, demonstrando que Ozon não estava interessado em se eximir de apresentar uma realidade acachapante, incômoda. Aquela acaba sendo a última dose de Louis, que morre poucos minutos depois de overdose, deixando Mousse “viúva” e desorientada com a ausência repentina do namorado. A partir desse acontecimento de contornos fatídicos, O refúgio começa a se delinear, num ritmo parecido com o de uma gestação: lento e gradual. Afinal, a gravidez é um tema que aparece com toda a força no longa, pois Mousse descobre, logo depois da morte de Louis, que espera um filho dele. Significa, portanto, que uma parte do namorado ficou com ela, o que assegura a continuidade de sua semente.
Por conta dessa gravidez, Mousse entra em forte conflito interno, e pensa inicialmente em um aborto. Mas logo acaba se encantando – discretamente – com a possbilidade de ser mãe, e decide levar a gestação adiante. Mas que fique bem claro que a decisão da personagem advém de uma impossibilidade de levar sua vontade inicial a cabo. Ela hesita tanto entre ter ou não o bebê que, quando se dá conta, a gravidez já está bastante adiantada, e não há mais como voltar atrás. Com isso, o título do filme se torna justificável, pois Mousse decide passar os meses de espera da criança em uma casa distante do frenesi citadino. Lá, ela pretende encontrar a paz necessária para seu autoconhecimento e para uma vida menos desregrada. Entretanto, Mousse acaba se comportando de modo reprovável para uma grávida, não deixando de consumir drogas, o que faz de suas atitudes uma fonte de angústia constante para o espectador, que assiste com impotência à sua pouca afeição ao filho que carrega no ventre.
Ozon se arriscou ao fazer O refúgio. O roteiro, escrito em parceria com Mathieu Hippeau, valoriza sobretudo os vácuos narrativos, entregando o descontentamento da protagonista com sua realidade de forma pouco palatável. Sabemos que Mousse não desejava aquela gravidez, e o norte do filme é exatamente o fardo e, ao mesmo tempo, a delícia de ser mãe. Mesmo que dure apenas 88 minutos, o longa pode soar cansativo para quem não está habituado a histórias melancólicas. Sim, se há uma palavra capaz de sintetizar o espírito do filme, essa palavra é melancolia. O realizador de 45 anos lança um olhar dolorido para a história de vida de uma mulher sem rumo, e estende sua observação algo gélida para toda uma juventude contemporânea.

Com isso, ganha como primo-irmão um conterrâneo de Jean-Pierre e Luc Dardenne: A criança (L’enfant, 2005). O vencedor da Palma de Ouro de melhor filme em Cannes também retrata uma juventude perdida e vazia, e usa a chegada de um filho para evidenciar a inabilidade de jovens protagonistas para lidar com os cuidados necessários advindos com a paternidade e a maternidade. Ozon demonstra uma filiação ao estilo da dupla de diretores ao investir em uma abordagem um tanto distante da história, focando suas lentes na vida de Mousse com uma certa isenção de julgamento, mas transfigura seu olhar em algo terno, por mais que a personagem esteja muito aquém do que se espera de uma genitora. Como os Dardenne, Ozon não se ocupa de dar lições de moral, mas apenas em contar sua história.
E a rotina pacata de Mousse se altera com a chegada de Paul (Louis-Ronan Choisy), o irmão de Louis, que é homossexual, fato que vai render um desdobramento importante à trama posteriormente. Ele quer estar perto da jovem, e os dois acabam construindo uma amizade muito bonita, já que Paul parece ver no filho que Mousse espera a continuação de seu irmão, de quem não andava tão próximo ultimamente. Inicialmente arredia à presença de outra pessoa em seu lugar seguro, ela acaba condescendendo em abrigar o rapaz por ali. E não tarda para que um sentimento maior que a amizade brote em seu coração. Desse sentimento, porém, derivam atitudes sem floreios, que apenas evidenciam a enorme carência emocional e afetiva que paira sobre aquela futura mãe.
O refúgio é um filme singelo, destituído de peripécias narrativas, que transmite uma mensagem de constante desconforto e imprime uma sombria realidade ao cotidiano angustiante de uma mulher de beleza e desamparo igualmente intensos. Com todo o enredo girando em torno da gravidez da protagonista, Ozon realizou um desejo que alimentava há alguns anos: falar sobre a gestação. É curioso saber que Isabelle Carré estava mesmo grávida quando atuou no filme. O fato representa uma interpenetração da ficção na realidade, e gera o questionamento, ainda que embrionário: até que ponto a maternidade pode significar uma mudança de horizonte na vida de uma mulher? O final chega para coroar a total falta de perspectiva de Mousse, e se afasta do que Hollywood preceituaria como happy end. Melhor assim. A realidade de Ozon é menos sublime, mas é mais plausível.

26 de jan. de 2011

“Caos calmo” e a necessidade de reinvenção diante da perda

Considerado como combalido, o cinema italiano contemporâneo ainda pode dar grandes mostras de vitalidade, como demonstra Caos calmo (idem, 2008), filme de estreia de Antonio Luigi Grimaldi, que conta com roteiro de Nanni Moretti. A simples menção do nome do segundo na ficha técnica do longa-metragem já é um chamariz para quem já ouviu falar de O quarto do filho (La stanza del figlio, 2001), trabalho que rendeu a Palma de Ouro a Moretti em Cannes. De fato, há muita competência na realização desse filme, que, como aquele dirigido por Moretti, trata mormente da questão da perda.

Se em O quarto do filho o protagonista Giovanni (o próprio Moretti) mergulhava na dor e no arrependimento ao experimentar a dura realidade de conviver com a morte do filho que se estava revelando problemático, em Caos calmo ele dá vida a Pietro Paladini, que tem de lidar com a terrível perda de sua esposa. O filme começa com uma sequência em que o personagem passa uma manhã na praia acompanhado de seu cunhado, lazer que é interrompido quando Pietro percebe que há uma mulher prestes a se afogar. Ele se lança nas águas para salvá-la, e consegue o feito. Enquanto isso, a câmera visita a casa do protagonista, e o espectador percebe que a mulher dele está morrendo e, ao que parece, o fato é inevitável. Essa é a grande ironia da história: enquanto ele salva uma mulher desconhecida, sua companheira de anos falece, de certa forma, escapando de suas mãos.
Ao chegar a casa, Pietro é informado do que aconteceu, e assim se inicia seu processo lento e silencioso de entendimento de sua sorte e de conformidade com a perda. O luto do personagem norteia toda a narrativa que se alinhava no filme, que é uma adaptação do romance homônimo de Sandro Veronesi. Trata-se de um drama comovente para espectadores afeitos a reflexões densas sobre os mistérios da vida, e encará-lo pode ser como estar diante de um espelho para quem já precisou se habituar à ausência de um ente querido. Um aspecto que logo chama a atenção é a reação plácida de Pietro à morte de Lara. De certa forma, é uma maneira de esclarecer um lugar-comum acerca dos italianos, que sempre são tidos como histriônicos e expansivos. Em vez de lacrimejar e vociferar, o personagem começa a buscar modos de compreender porque ele não estava em casa quando o fato trágico ocorreu e, somado a isso, ele tem de cuidar de sua filha única de dez anos, fruto de seu casamento.
Para ser honesto com o espectador em potencial de Caos calmo, fica registrado aqui que esse não é um filme que se pauta pela ação. A câmera de Grimaldi espia o sofrimento mudo de Pietro, que não parece capaz de verbalizar a dor que sente, e encontra refúgio para sua chaga psicológica na observação lenta e paciente de pessoas que vêm e vão. Como tem de levar sua filha à escola todos os dias, ele aproveita os intervalos longos entre o início e o fim das aulas da menina para contemplar o cotidiano de gente simples que passa por ali. Logo, ele vai acabar reencontrando Eleonora Simoncini (Isabella Ferrari, de Um dia perfeito), a mulher que resgatou das águas, e dar início a um romance de contornos desalentadores com ela. A cunhada de Pietro, Marta (Valeria Golino, de Respiro) é outra mulher que passa a rondar sua vida, mas o personagem é daqueles que cosem pra dentro, como disse Clarice Lispector certa vez.
O sofrimento de Pietro é tão interiorizado que nem parece existir, mas ele está ali: lento, latente, lancinante. E o envolvimento de Pietro com Eleonora se concretiza em uma cena de sexo entre eles de duração relativamente longa, com dose de violência e paixão. No fundo, nota-se que aquela atitude é apenas uma forma do protagonista de se realizar com o êxtase erótico. Em vez de excitar, a cena gera comoção e desconforto emocional.
A carreira de executivo é colocada em enésimo plano por Pietro, que só se interessa por encontrar as raízes de sua amargura e tentar extirpá-la. Por seu caminho, passam pessoas que tenham encorajá-lo a recomeçar, mas é mais simples falar que fazer. Caos calmo ensina que a dor não deve ser cultivada, mas precisa ser vivida dia após dia, até que seja absorvida e eliminada. O grande mérito do filme é apostar nesse ciclo lento e silencioso de reinvenção afetiva de Pietro, resultando em um conto moderno e sincero sobre o valor que passamos a dar a quem já se foi. A morte, ano após ano, continua sendo um assunto delicado, e Grimaldi coloca o dedo na ferida ao entregar um filme que sonda os escombros resultantes a viuvez inesperada de seu protagonista. A música é outro detalhe no qual o filme ganha pontos. Ela ficou a cargo de Paolo Buonvino, que fez um trabalho notável, privilegiando as composições incidentais, que assinalam brilhantemente a tragédia particular de Pietro.
Nanni Moretti também merece ser elogiado por seu trabalho de ator. Na pele de Pietro, ele não acumula a função de diretor, e tem tempo de sobra para reinar em cena, aparecendo quase o tempo todo na história. Afinal, o filme é dele, e cada minuto de sua presença na tela evidencia sua capacidade de mimetismo na introdução na realidade de um homem comum, que cria um mecanismo estranho para aceitar a morte da esposa: da observação de pessoas levando suas vidas banais ele extrai forças para dar novos passos, e reavaliar sua trajetória. Em que pese alguns instantes claudicantes do filme, um resultado que pode ser atribuído ao fato de o cineasta ser um iniciante, o ritmo de Caos calmo é, no geral, incomodamente melancólico. Grimaldi repete com esse filme sua parceria com Moretti, já que ele fora dois anos antes o diretor de produção de O crocodilo (Il caimano, 2006), último filme de Moretti até o momento. Agora, o italiano tem a oportunidade de dirigir a faceta ator do veterano, e extrai uma interpretação memorável dele.
Em linhas gerais, a experiência de se assistir ao filme pode ser bastante enriquecedora do ponto de vista do contato com uma realidade nefasta que assola o cotidiano de alguém que tinha a quem mais amava. Em nenhuma passagem da história aparecem cenas de flashback apresentando momentos felizes do casal quando Lara era viva. Com isso, a abordagem do diretor, decalcada do romance, torna-se, ao mesmo tempo, asséptica e terna. Asséptica por não se converter jamais em torrente de lágrimas – o que também seria absolutamente legítimo, pois cada um sabe a dor que sente – e terna por humanizar a figura de Pietro a cada fotograma, apoiado em um elenco de coadjuvantes que cumpre com louvor a missão de servir de ponto de apoio ao personagem na sua jornada rumo ao entendimento de seu mal. Ao fim da projeção, fica no coração o sentimento de que, com a perda, vem a necessidade de reinvenção. E da reinvenção, surge o mimetismo, repelente da falta de vontade de viver.

25 de jan. de 2011

Uma investigação sobre os limites da apatia ou “Luzes na escuridão”

O olhar sul-americano frequentemente associa tudo que vem da parte setentrional da Europa como sendo dotado de frieza e distância. No caso da Escandinávia, essa máxima parece ganhar força, já que seus habitantes exalam um certo ar de desapego. Como qualquer mito, esse também é passível de ser derrubado. E pode sê-lo feito de uma maneira não muito convencional, como nos atesta Luzes na escuridão (Laitakaupungin valot, 2006). O filme de Aki Kaurismäki chegou às telas cariocas com um atraso fenomenal de 4 anos, o que é quase um crime, tendo em vista a sua qualidade discreta. Felizmente, porém, ele ganhou uma chance no cinema, ainda que em uma passagem relâmpago.

Kostinen é o seu protagonista, um homem taciturno e de pouquíssimos amigos, bem como de pouquíssimas falas. Sua caracterização física e psicológica fazem-no o arquétipo do loser, termo eminentemente estadunidense que já se estendeu há muito para outras culturas. Ele não é popular, não parece muito disposto a travar diálogos com ninguém à sua volta, e a única pessoa com quem fala nos primeiros minutos de projeção é a dona de um trailer que vende salsichas de vitela das quais ele se alimenta. Ainda assim, são ocasiões praticamente semi-monologais. No trabalho, constantemente é vítima de chacotas, o que parece não contribuir em nada para acender nele um desejo de desforra. Pelo contrário, ele mantém intacto seu comportamento passivo, que beira o afásico.
O trabalho de Kostinen é ser guarda-noturno de um complexo de lojas no centro de Helsinque (que, diferentemente do que muitos pensam, é um proparoxítono no original), e a profissão que executa não lhe desperta qualquer entusiasmo. Aliás, ele é o exemplo de pessoa que acaba sendo uma péssima companhia para gente efusiva, que está sempre disposta a fazer mil coisas ao mesmo tempo. Kostinen vai sempre na contramão desse espírito, e isso chega a gerar uma discussão acirrada com um colega de trabalho, entretanto, nem nessa hora ele chega às vias de fato. A verdade é que Kaurismäki demonstra uma capacidade de incomodar o tempo inteiro com esse filme por meio da inércia em que seu protagonista está embebido. O espectador que acompanhar sua história à espera de uma grande reviravolta talvez não tenha seu desejo atendido pelo diretor.
Aqui, Kaurismäki abre mão de qualquer centelha de grandiloquência para narrar um conto moderno de desalento e autonegação de apenas 78 minutos, que mais parecem 30 devido à sua fluidez, malgrado os índices prototípicos do contrário, como a economia na ação e nos diálogos. Antes de prosseguir com os comentários sinóticos, vale comentar um pouco sobre a carreira do cineasta que levou o filme a cabo. Aki Kaurismäki é irmão mais novo de Mika Kaurismäki, com quem trabalhou como co-diretor no início de sua carreira. Os finlandeses são um exemplo de irmãos cineastas que seguem com suas produções em paralelo, diferentemente do que ocorre com os Coen e os Dardenne, para citar dois exemplos.

O cinema praticado por Aki sofreu algumas influências perceptíveis de nomes como Jean-Pierre Melville e Robert Bresson, e sua filmografia inclui uma versão para Crime e castigo, obra clássica de Fiódor Dostoiévski que foi adaptada para a capital finlandesa atual no ano de 1983 (já não mais tão atual assim...). De lá para cá, ele só vem somando trabalhos premiados pelos festivais mundo afora. Um de seus filmes mais elogiados é A garota da fábrica de caixas de fósforos (Tulitikkutehtaan tyttö , 1990), um filme que já apresenta elementos de um forte pessimismo encabeçando a história do romance malfadado entre uma operária e um homem bem apessoado que a ilude. Alguns anos depois, Aki iniciou sua chamada trilogia “Finlândia” com Nuvens passageiras (Kauas Pilvet Karkaavat , 1996), a história de um casal que perde o emprego e tenta, em vão, obter uma nova colocação no mercado de trabalho. O filme seguinte foi O homem sem passado (Mies Vailla Menneisyyttä, 2002), um de seus trabalhos mais elogiados, que tem como protagonista um homem amnésico depois de apanhar durante um assalto, e que levou o Grande Prêmio do Júri no Festival de Cannes do mesmo ano.
Luzes na escuridão encerra a trilogia, e assinala novamente o que parece ser uma característica das mais marcantes de seus filmes: a fotografia em tons algo expressionistas, coloridas e às vezes berrantes, que são uma espécie de antítese da personalidade fugidia de seus protagonistas, também sempre com uma aura acinzentada sobre suas cabeças desorientadas. Esse aspecto parece ser um elo que confere unidade à sua obra, e chama a atenção de olhos atentos às singularidades imagéticas que podem ser associadas a cada realizador. No caso de Kaurismäki, essa parece ser a peculiaridade que ele ostenta como flâmula, e que ajuda a dimensionar sua narrativa para um cruzamento bem-sucedido entre drama intermitente e fios de alegria dissonante. Voltando à sinopse da terceira parte da trilogia, o cotidiano ordinário de Kostinen aparenta ganhar movimento com a aproximação de Aila (Maria Heiskanen), uma linda loura que o aborda no refeitório de seu trabalho.
Na verdade, Aila é a isca de um grupo de gângsters interessados em roubar a joalheria que se situa no complexo vigiado por Kostinen, e ele parece ser uma presa fácil para os encantos dessa mulher, que não faz muito esforço para ganhar sua confiança. Mas o envolvimento deles não tem nada de arrebatador. Pelo contrário. Como ele, ela parece tomada por um conformismo com a vida que a leva a ter como comparsas homens tão reles. E saber se o encontro de Kostinen com Aila será favorecedor de uma reviravolta interior por parte do personagem é descoberta cabível para quem for assistir ao filme. No fundo, como os demais filmes de Kaurismäki, Luzes na escuridão é um filme bastante simples, em que o diretor optou por uma composição de planos minimalista, bem como nas atuações e nos acontecimentos. Cativar o espectador não é uma de suas metas, e sim introduzi-lo em um universo lento e lasso, que se configura em uma investigação sobre os limites da apatia.

17 de jan. de 2011

“Valsa com Bashir” e o uso da memória para autoconhecimento

Existem filmes que simplesmente ultrapassam o rótulo de mero entretenimento, por sua capacidade de abrir portas e janelas que podem incomodar, e muito, a quem assiste a eles. Valsa com Bashir (Waltz with Bashir, 2008), é desses filmes que merecem atenção especial por sua maneira fantástica de lidar com a dor. E fantástico, aqui, refere-se muito mais a uma possibilidade de despertamento de interesse que à qualidade daquilo que desperta a fantasia, ainda que essa segunda acepção também seja apreciavelmente encaixável ao longa de Ari Folman.

A narrativa dessa animação israelense falada em hebraico está voltada para o cotidiano do próprio Folman, que participou da Guerra do Líbano, ocorrida nos anos 80, e que não consegue se recordar do quanto aqueles dias foram um pesadelo em sua vida. Com isso, ele passa a procurar alguns de seus amigos próximos, na tentativa de reconstitui aquilo que viveu e que, em algum aspecto, lhe foi tão cruel. Na sequência inicial, fica muito claro que o filme é uma mescla de lembranças e de realidade que tomam a vida do diretor, também protagonista. Aliás, esse detalhe da história já merece destaque: Folman se recriou em uma versão animada, e assumiu o posto de personagem principal para colocar na tela seus dilemas e seus questionamentos. Ao mesmo tempo que esse personagem é sua própria computadorização, também é uma espécie de alter ego seu. Nesse sentido, torna-se possível acreditar que o cineasta, além de expor suas feridas abertas de uma forma original, permitiu-se utilizar como a representação icônica do desespero do ser humano pela memória.
O início do filme já apresenta a duplicidade sonho / verdade, com uma sequência em que um personagem é perseguido por 26 cães raivosos. Os animais são corpulentos, e correm atrás de um homem desesperado. Logo, descobre-se que se trata de um sonho do amigo de Folman, que o conta para o diretor, e esse acontecimento é a mola propulsora da ação do filme. Depois de contar suas imagens oníricas, ambos concluem que o sonho pode ter relação com a experiência vivida por eles na guerra. Mas a grande questão é que Folman não se lembra de nada do que aconteceu nesse período, e sua necessidade de recordações leva-o a confrontar vários amigos do passado, para quem faz perguntas insistentes.
A partir das conversas do diretor com uma série de personalidades, o espectador nota que Valsa com Bashir é um filme híbrido de animação com documentário, pois, de um lado, as imagens forma criadas pelo computador e, do outro, as discussões e os personagens que aparecem na tela são realíssimos. O resultado final acaba por caracterizar a produção como um devaneio multicolorido com espasmos de realidade que fascina, espanta e incomoda em certos momentos. Folman aborda uma temática cruenta, que requer um tratamento delicado ou não, a depender da escolha do diretor. No caso de Valsa com Bashir, a opção dele pela animação parece ser pelo fato de os desenhos funcionarem como atenuantes da visão aterradora de cenas reais de guerra, bem como permite uma liberdade maior na exposição dos cenários de que este celuloide (afetivamente falando) é composto.

Folman navega pelas águas profundas do depositário de vivências de que é feita a memória, num trajeto distinto de um contemporâneo seu: Horas de verão (L’heur d’été, 2008), que retrata os conflitos entre memória e novidade sob o prisma da família. O documentário animado traz para o cinema discussões interessantes a esse respeito, e brinda o público com algumas imagens estranhamente belas, que repousam sobre os olhos do espectador com uma intensidade quase acintosa. Há uma certa sequência que é repetida várias vezes no filme: a que mostra garotos nadando em uma praia, que não é situada nem no tempo nem no espaço, e que leva a crer que seja uma reminiscência intermitente que acomete o diretor-personagem. Aqueles adolescentes que aparentam ter seus 15 ou 16 anos são seres humanos que talvez não tenham a exata noção do peso de responsabilidade que está sobre seus ombros. Aqueles jovens talvez sejam Ari Folman e seus amigos.
Tamanho apuro visual e cuidado na direção e na montagem, entre outras qualidades notáveis, fizeram o filme ser um dos cinco finalistas entre os indicados ao Oscar de melhor filme estrangeiro em 2009, concorrendo com títulos como Entre os muros da escola (Entre les murs, 2008) e A partida (Okuribito, 2008), e perdendo para este último, que também era digno tanto da indicação quanto da vitória. O realizador executou uma edição bastante adequada, que permite ao espectador entrar em uma ambiência de pura incerteza, que é como o próprio Folman se sente. Ao longo da projeção vão sendo feitas entrevistas que colocam o grande tema do filme em relevo, e uma das mais interessantes é a que relata um processo de indução de lembranças feito por pesquisadores. Eles apresentaram imagens quaisquer a alguns voluntários, sendo que nenhuma delas fazia parte de suas vidas. Mas, devido a um mecanismo empregado na pesquisa – que quem assiste ao filme descobre qual é, pois ele é explicado – passaram a acreditar que aquelas lembranças eram suas. Esse trecho do filme, bem como outros, demonstram que as convicções de Folman são delineadas de forma subliminar, e cabe ao espectador acreditar ou não nelas.
Como na vida, nada do que é capturado pelo olhar é subjetivo, e em Valsa com Bashir essa tese é reforçada pela bela composição imagética orquestrada pelo diretor. O filme serve ora de acalento, ora de fonte de angústia, bem como nossas memórias nos servem. Para quem não sabe, o título do filme é uma referência a Bashir Gemayel, um líder miliciano e político do Líbano, falecido em 1982, que foi eleito presidente do país, mas sequer chegou a assumir o mandato, pois foi assassinado antes disso, durante a Guerra Civil Libanesa. Na animação / documentário, ele é apenas a ponta de um iceberg metafórico que se traduz em uma deambulação constante e inevitável de um esteta da imagem por sua identidade, usando a memória como diapasão do autoconhecimento.

12 de jan. de 2011

Os dois lados da mesma moeda em “Vicky Cristina Barcelona”

Gostem ou não, Woody Allen continua lançando um filme por ano. E esse ritmo invejável para muitos realizadores se mantém há mais de duas décadas, confirmando o quanto o novaiorquino é pródigo em construir e entregar retratos precisos de seu tempo e das pessoas. Nos últimos anos, o diretor tem migrado para diferentes locais a fim de se reinventar. Após filmar três vezes seguidas em Londres, de onde saíram Ponto final (Match point, 2005), Scoop – O grande furo (Scoop, 2006) e O sonho de Cassandra (Cassandra’s dream, 2007), Allen recebeu um convite do governo espanhol para rodar um filme em Barcelona, e o resultado é o filme cujo título já resume boa parte de sua sinopse.

Vicky Cristina Barcelona (idem, 2008) é mais um atestado do quanto Allen pode ser competente e nos surpreender. O longa é uma declaração de amor à cidade de Antonio Gaudí, arquiteto da Sagrada Família, obra inacabada que se ergue imponente por lá, e que também serve de cenário para a história do filme. Vicky (Rebecca Hall) e Cristina (Scarlett Johansson) são duas amigas de temperamentos contrastantes que decidem passar suas férias em Barcelona. Logo que o filme se inicia, após os clássicos créditos de abertura de quase todos filmes de Woody Allen, um narrador, outra figura recorrente na filmografia do diretor, ambienta o público no cotidiano e na personalidade das amigas. Entendemos que elas se dão muito bem e têm opiniões semelhantes em vários assuntos, mas divergem radicalmente no plano dos relacionamentos amorosos.
Vicky preza a estabilidade no amor antes de mais nada, e não consegue conceber a ideia de um romance fugaz, com prazo de validade. Sua segurança é seu maior bem. Ela está em Barcelona para concluir sua tese sobre a cultura hispânica, e está de casamento marcado com um noivo bastante sem graça que compartilha de sua maneira totalmente convencional de encarar a vida. Cristina, por outro lado, não sabe o que quer, mas sabe o que não quer, como bem nos informa o narrador. Ela vem tentando a carreira de atriz – e, mais uma vez, uma pitada de metalinguagem aparece no enredo de um filme de Allen - , mas ainda não conseguiu a chance que tanto espera. No amor, é capaz de viver as maiores loucuras possíveis, sem medo de se lançar ao abismo mais profundo. Durante essa breve descrição do narrador, que toma uns 5 minutos do filme, Allen usa o recurso comum de dividir a tela em dois para acentuar as disparidades existentes entre as personagens.
Então, o espectador é transportado para a atmosfera quente e atordoante de Barcelona, uma cidade que exerce o papel de coadjuvante de luxo, suplantando Nova York, amada do diretor, com talento indiscutível. Uma vez no lugar, as amigas logo se envolverão com Juan Antonio, um famoso pintor espanhol que tem tanto talento com suas telas quanto para arrumar confusões. Seu ar galanteador chama imediatamente a atenção de Cristina, que está louca para viver uma aventura excitante na cidade. Vicky, por sua vez, não quer nem sonhar em ser infiel a seu noivo, e também trata de desencorajar sua amiga a ceder a qualquer investida daquele desconhecido. Elas acabam descobrindo que Juan Antonio vem de um processo de separação traumático e escandaloso de Maria Helena (Penélope Cruz), uma mulher tão sedutora quanto desequilibrada. E saber disso só aumenta o interesse de Cristina por Juan Antonio.

O pintor acaba abordando as duas em um restaurante pouco depois da visita delas à sua nova exposição, e causa diferentes reações nas amigas com suas cantadas nada veladas. Ele lhes convida para passar um fim de semana em Oviedo, pequena cidade próxima, para comer, beber e amar, basicamente. A oferta soa ultrajante para Vicky, que declina dela imediatamente, mas encanta Cristina com tamanha objetividade. Ali, ela já está convencida a dizer sim, mas ainda precisa persuadir Vicky. Na sequência em que Juan Antonio tenta convencê-la, surge uma das tiradas mais geniais do filme. Vicky diz que não pretende comprar a ideia de fazer sexo vazio com um desconhecido, ao que Antonio replica: “Sexo vazio? Você se deprecia tanto assim?”, demonstrando a incisividade do pintor para arrebatar a amiga resistente. Não demora muito mais para que ela seja convencida, mesmo que diga que está indo apenas para acompanhar Cristina.

É interessante notar que Allen oferece mais um denso estudo de personagens por meio de uma roupagem cômica. Para quem acredita que as comédias não podem servir de reduto para a reflexão crítica, Vicky Cristina Barcelona está aí para provar exatamente o contrário. As duas amigas se apresentam como dissonantes no quesito paixões, mas não são fruto de uma caracterização esquemática. Na verdade, elas podem ser encaradas como dois lados de uma mesma moeda. À maneira alleniana, Vicky e Cristina encarnam a dualidade do ser humano, que a maior parte do tempo opta por ostentar somente um determinado aspecto de sua personalidade, o que não anula sua capacidade de ser e/ou parecer o oposto ou apenas o discrepante daquilo que é ou aparenta. Durante a aventura das amigas em Oviedo, Cristina cai nos braços de Juan Antonio, que não tem a mesma facilidade para arrastar Vicky para a cama. De alguma maneira, o comportamento evasivo e arredio de Vicky incita Juan Antonio.
Até aqui, o filme já ganhou o espectador com a forma leve e descontraída com que a sua trama é contada. Mas as neuroses nossas de cada dia têm espaço garantido na obra de Allen, e aqui ela atende pelo nome de Maria Helena. Até certa altura, a personagem é apenas citada, até que ela entra em cena e chama toda a atenção para si. A ex-mulher de Juan Antonio é vivida pela talentosa Penélope Cruz, que vem se firmando como uma das grandes intérpretes de sua geração, ao lado de nomes como o de Kate Winslet, Julia Roberts e Juliette Binoche. Sua Maria Helena transpira loucura, uma loucura deliciosa de se ver e ouvir. Inconformada com o fim de seu casamento com Juan Antonio, ela quer de qualquer maneira voltar a viver com ele. E, logo, instaura-se um relacionamento a três: ela, Juan Antonio e Cristina passam a viver juntos, o que choca Vicky. A estada das amigas acaba se estendendo, e cada uma delas trata de lutar para manter suas vidas nos eixos. Mas no fundo, sabem que estão correndo para a desestabilidade com passadas compridas.
Depois da entrada de Maria Helena em cena, Vicky Cristina Barcelona ganha definitivamente ares alomodovarianos. Assim, a homenagem de Allen a gêneros e a diretores se faz concreta novamente. O realizador esquadrinha a cidade espanhola com minúcia, e evidencia em sua paleta de cores múltipla as inúmeras possibilidades de desdobramento do desejo de seus personagens. Fica nítido para o público que todos ali buscam uma identidade que os faça se sentir em seu próprio centro, mas, no fundo todos estão completamente perdidos. Barcelona serviu perfeitamente como pano de fundo para uma história que mexe com os sentidos, e é libidinosa como poucos trabalhos produzidos por Woody Allen. Nesse filme, ele dirige Scarlett Johansson pela terceira vez, fato que fez muitos apontarem a atriz como sua nova musa, e até mesmo como sua Mia Farrow do século XXI. Talvez seja exagero dizer isso. Não que Johansson não seja ótima atriz e não se enquadre com precisão no universo alleniano – o que dizer da ótima dobradinha entre eles em Scoop – O grande furo? Mas Allen rodaria seus dois filmes seguintes sem a presença de Johansson: Tudo pode dar certo (Wheathewer works, 2009) e Você vai conhecer o homem dos seus sonhos (You will meet a tall dark stranger, 2010), elegendo outra loura para um dos papeis principais neste último: Naomi Watts.

Um comentário que se faz necessário sobre a interpretação de Scarlett Johansson é que sua Cristina é facilmente perceptível como o alter ego feminino de Woody Allen. Cada atitude da personagem remete ao trabalho de Allen como ator, o que também se reflete em seu gestual. Cristina representa um sopro de vivacidade naquele personagem que está sempre à volta com fracassos amorosos, com pílulas para dormir e seus ataques psicológicos, pois é mais jovem. Por outro lado, por ser uma mulher, seus problemas parecem ser em quantidade ainda maior. Diferentemente de Vicky, sua maior virtude talvez seja a exposição clara de seus ímpetos, bem como a consumação quase imediata de todos eles. Mas este talvez seja também o seu maior defeito. Lá pelas tantas, quando o filme já passou de sua primeira hora de duração, é Vicky quem começa a questionar sua vida tão regrada e, ao mesmo tempo, tão insossa. E esse questionamento acabará lançando a moça em um envolvimento amoroso com Juan Antonio, quase ao mesmo tempo em que se dá seu desenlace com Cristina, que sente, mais uma vez, que uma relação triádica com ele e Maria Helena não é o que ela quer realmente. Por conta dessa aproximação entre Vicky e Juan Antonio, seu noivado fica ameaçado, perdendo completamente o sentido.
Em sua essência, Vicky Cristina Barcelona pode ser entendido como um filme sobre pessoas com suas vidas vazias em busca de um preenchimento interior que não conseguem encontrar. É possível até mesmo dizer que se trata de um drama disfarçado de comédia. Allen optou novamente por dar uma condução cômica à trajetória de duas amigas que começam como diametralmente opostas, mas que, com o avançar da narrativa, têm novas possibilidades de lidar com a vida sendo aventadas pelo roteiro esperto do cineasta. O filme é um brinde à vida e às inúmeras propostas que ela pode oferecer, mas também é um novo encontro de Allen com suas obsessões, como a inevitabilidade da morte, a frustração do sexo e ao clamor pela arte como tábua de salvação que, aqui, vem encarnada na figura do artista Juan Antonio. A ida do diretor para uma cidade tão solar e, por isso mesmo, mais quente, só lhe fez bem. Cada minuto desse filme é impregnado de um lógica simples, apesar de envolta em um certo pessimismo: tudo o que nos resta é, cientes da impossibilidade de burlar a morte, viver bem pelo tempo que temos.

10 de jan. de 2011

“Um homem sério” e a visão da vida com agudeza irônica

Os irmãos Ethan e Joel Coen colecionam filmes com tipos extravagantes, que demonstram toda a sua anticonvencionalidade basicamente de duas maneiras, a princípio, antagônicas: comica ou dramaticamente. A vertente cômica, decerto, predomina entre os títulos que compõem a sua carreira, como provam longas como Arizona nunca mais (Raising Arizona, 1987), Na roda da fortuna (The hudsucker proxy, 1990), E aí, meu irmão, cadê você? (O brother, where Art thou?, 2000) e Matadores de velhinhas(Ladykillers, 2004). O drama se manifesta em filmes como Gosto de sangue (Blood simple, 1984), Barton Fink – Delírios de Hollywood (Barton Fink, 1991) e O homem que não estava lá (The man who wasn’t there, 2001).

Independente de nomenclaturas e classificações, entretanto, a filmografia dos Coen traz como característica fundamental um olhar obtuso e inusitado sobre diferentes aspectos da vida. Em Um homem sério (A serious man, 2009) essa particularidade fica evidente mais uma vez. Larry Gopnik (Michael Stuhlbarg), o protagonista do longa, é o retrato nada caricatural de uma agonia silenciosa revestida de comicidade. Neste filme, os diretores optaram novamente por dar um tratamento cômico à história de um homem que está vendo seu mundo desmoronar pouco a pouco. Para que tudo venha a ruir definitivamente, resta pouco tempo.
O primeiro dos grandes problemas de Larry é a sua mulher, que lhe diz, à queima-roupa, que está decidida a se separar. Judith (Sari Lennick) o está deixando, e não há nada que ele possa fazer para evitar o fato. Além disso, Larry tem de enfrentar a presença incômoda de seu irmão Arthur (Richard Kind) em sua casa, já que ele não parece nem um pouco inclinado a sair dali, e seus filhos também não parecem colaborar para sua vida ser mais simples. O garoto Danny (Aaron Wolff) é problemático e só traz dor de cabeça da escola, ao passo que a menina Sarah (Jessica McManus) só se interessa em fazer uma plástica, para a qual rouba constantemente o dinheiro do pai.
Esse cenário cataclismático em pleno lar é o ponto de partida para que os Coen fazem de melhor: tecer comentários subliminares sobre o quanto a vida é bizarra. A conduta de todos os personagens de Um homem sério reforça o tempo todo essa afirmação, já que cada um deles mete os pés pelas mãos em alguma instância. A começar por Larry, que demonstra não ser capaz de lidar bem com seus vários problemas, e busca conselhos com um rabino que parece bem pouco indicado para a função. Um adendo: Larry também vem enfrentando ameaças anônimas que vêm chegando por meio de cartas. Por meio desse protagonista, Ethan e Joel parecem gritar o tempo todo: a vida não faz sentido algum!

O pano de fundo de Um homem sério é Minneapolis, onde os irmãos nasceram e passaram sua infância, e o ano é 1967. Com isso, fica claro que eles fizeram seu filme mais pessoal até aqui. E esse aspecto pode ser analisado tanto positiva quanto negativamente. Afinal, para espectadores pouco familiarizados ou afeitos ao estilo da dupla de cineastas, assistir ao filme pode ser um tanto entediante. O ritmo da história é lento, à semelhança do faroeste intimista Onde os fracos não têm vez (No country for old men, 2007), em que, apesar de muita ação correndo em cada fotograma, transcorria em uma cadência suficientemente vagarosa para não ser classificado como vertiginoso. Um homem sério é permeado por lembranças e referência particulares da vida dos irmãos, que recorreram a um elenco desconhecido para dar vida aos personagens que habitam seu imaginário. Stuhlbarg, intérprete de Larry, tem uma carreira pregressa, mas de poucos filmes. Um de seus trabalhos anteriores foi em Cinzas da guerra (The grey zone, 2001), em que deu vida a Cohen, numa trama que, coicidentemente, também envolvia judeus, tal qual ocorre nos filmes dos Coen. E seu personagem é quase xará de sobrenome dos diretores.
Desde os primeiros minutos de projeção, o filme apresenta uma atmosfera de insolidez, que o envolve até o final. Aliás, o começo de Um homem sério é bastante estranho, tendo a aparência de um trailer de outro filme. Quando menos se espera, a trama já começou, com a sequência em que, numa espécie de lembrança remota, no tempo pré-histórico, uma visita inesperada está para chegar na casa de um casal. A cena, capaz de provocar risos canhestros por sua mordácia dissimulada, funciona como uma espécie de prólogo para a tragédia particular de contornos risíveis vivenciada por Larry Gopnik. Por conta dessa ambientação de estilo surreal, o filme se aproxima de Barton Fink – Delírios de Hollywood, mas tem personalidade própria o bastante para não soar como um decalque deste.
A grande questão do trabalho recente dos Coen, que foi um dos dez indicados ao Oscar em 2010, é mostrar que a vida suscita inúmeras perguntas, o que não significa que todas elas tenham uma resposta, ou que essa resposta seja plausível. No fundo, cada personagem de Um homem sério está deslocado e desolado, inquieto por uma necessidade de encontro consigo mesmo que nenhuma atitude mais ou menos extremada pode mitigar. O filme está além de um depósito de memórias, e também não se encaixa no rótulo de relicário para as várias lembranças da trajetória dos Coen. Para além disso, aqui está um reflexo das agruras que os homens e as mulheres têm, e do comportamento escapista que muitos adotam diante da impossibilidade de lidar maduramente com suas próprias questões. E os Coen expõem essa fragilidade com doses fartas de uma realidade quase paralela, encobridora de certos rifões que mais parecem tiradas de autoajuda.

8 de jan. de 2011

“Mademoiselle Chambon” ou o lento desabrochar de um sentimento

As palavras são muito caras aos franceses, e isso sempre fica evidente em filmes que se lançam no trato de relações humanas. Na verdade, elas são quase uma unanimidade, seja entre os franceses, seja entre os dramas, de um modo geral. Mas Mademoiselle Chambon (idem, 2009)abre mão dessa prerrogativa básica para nos narrar a história de amor entre duas pessoas que, aparentemente, estão em universos antagônicos, ou simplesmente imiscíveis. Em vez de longos diálogos pautados na tentativa de desdobramento dos insterstícios do amor e de suas consequências positivas ou negativas, o diretor Stéphane Brizé oferece ao público um olhar de comoção sobre a trajetória de dois amantes quase silenciosos.

O começo da trama nos traz Jean (Vincent Lindon), um homem simplório e simpático que trabalha como pedreiro. Ele vive, ao que tudo indica, em um bairro parisiense de classe média, é casado e tem um pequeno filho. Seu cotidiano pacato é alterado sutilmente depois que ele vai buscar o menino na escola em um dia em que a esposa sente uma indisposição passageira e não pode fazê-lo. É quando Jean conhece a mademoiselle Chambon (Sandrine Kiberlain) do título, que vem a ser a professora de seu filho. O primeiro encontro dos dois ainda não é suficiente para que surja nada além de um contato cordial entre pai e professora. Na verdade, eles ainda não sabem, mas um intenso sentimento os cobrirá com mais um ou dois encontros.
Brizé conduz o desenvolvimento do amor entre a professora e o pai do aluno de maneira muito suave, e nos encontros dos dois ocorrem muito mais olhares contidos que longas conversas. Depois de ter o primeiro contato com Jean, a professora, cujo primeiro nome é Véronique, convida-o para retornar à escola para falar de sua profissão para os alunos. A ideia dela é que as crianças saibam como funciona a rotina de profissionais de ramos diversos, para pensar naquilo que desejam ser quando forem adultos. Ali, nos olhares discretos de Véronique para Jean, o sentimento já começa a nascer, e o espectador vai começando a ser arrebatado pela doçura que caracteriza o quase romance dos protagonistas.
Por mais que a senhorita Chambon esteja no título do filme, a história é muito mais sobre Jean, que passa a ser corroído pelo impasse de deixar ou não que a paixão pela professora tome conta de sua vida. O diretor acertou ao investir na dor aguda e surda de um homem banal, que poderia esbarrar ou estar próximo da convivência de qualquer um de nós, chegando mesmo ao ponto de passar incógnito. E sua personalidade nos leva à admiração por demonstrar em atitudes e falas uma pessoa diferente do que sua aparência pode fazer supor. Se sua estampa é de um homem rude, no trato ele é gentil e refinado, e amante de composições eruditas. No fundo, parece um homem ideal para Véronique. Mas numa história que se mostra simples, nada se resolve com simplicidade. Brizé tem nas mãos, aqui, um argumento extremamente usual, explorado à exaustão no cinema de vários países, mas consegue fazer o espectador atentar para a magia de uma pequena história, que tem a seu favor intérpretes absolutamente inspirados, dignos de menção elogiosa.

Ambos os atores não são muito conhecidos, tanto no âmbito da cinematografia francesa quanto para além de seus domínios. Porém, já estiveram no elenco de outros filmes, e têm uma carreira consolidada. Kiberlain atuou em O pequeno Nicolau (Le petit Nicolas, 2009), que é contemporâneo de Mademoiselle Chambon e ficou seis meses em cartaz no circuito carioca, e já foi personagem título de outro filme: Betty Fisher e outras histórias (Betty Fisher et autres histoires, 2001), em que foi dirigida por Claude Miller. Sua aparência frágil e seu corpo esquálido são perfeitamente adequados ao drama de uma mulher que corresponde ao amor de um homem que está tão perto e, ao mesmo tempo, tão fora de alcance. E essa consciência lhe é totalmente atordoante, como um dardo lançado sem piedade por um acaso inexorável. Por sua vez, Vincent Lindon acumula trabalhos variados, como o recente Bem-vindo (Welcome, 2009), em que interpretou um homem desalentado decidido a fazer de sua vida algo menos ordinário, além de ter atuado em Tudo por ela (Pour elle, 2008), filme quase desconhecido em solo brasileiro. Em Mademoiselle Chambon, seu Jean oferece um oposto do que seu biótipo traz, pois é um homem sensível, como já se comentou, e essa é uma das maiores qualidades oferecidas através de seu personagem.
Como se pode inferir, o investimento de Stéphane Brizé é na dor individual. Com esse filme, o diretor oferece a narrativa de uma história de amor lenta e silenciosa, em que as palavras dão lugar a pequenos gestos e a olhares, resultando em uma espécie de romance transcedental. A cada novo encontro, eles estão mais dependentes da companhia um do outro, mas sempre permanecem em sua incapacidade de avançar naquilo que realmente os move: o desejo mútuo. Para um mundo chamado pós-moderno, de relações voláteis, um conflito dessa natureza pode soar estapafúrdio, mas há que se considerar o quão onerosas ainda podem ser as convenções de uma sociedade hipócrita, que ignora a visão periférica e comete deslizes em secreto. No filme, Jean não tem forças para romper com seu casamento. Véronique, por ser professora substituta na escola do filho de Jean, está por ali de passagem, ciente de que não pode se apegar às pessoas e aos lugares por que passa. Mesmo uma tentativa desesperada de viver esse amor, lá pelas tantas da narrativa, fracassa. E Mademoiselle Chambon se reafirma como um filme sobre uma paixão obliterada, fadada à sublimação.
Curioso é saber que, na vida real, Lindon e Kiberlain estavam vivendo um processo de separação quando estavam rodando o filme e, na tela, tiveram que encarnar um homem e uma mulher em processo de apaixonamento. Na arte, trilharam ironicamente um caminho oposto ao de suas vidas particulares, e isso vitamina ainda mais seus desempenhos, pois, em cada cena dos dois, que representam mais de 80% de todo o filme, seus olhos se transfiguram em fontes refulgentes de afeto e paixão que não deixam dúvidas sobre a veracidade daquele sentimento no campo do “tudo é possível” do pacto ficcional. Nas últimas sequências do quase casal, a câmera filma os espaços abertos, em longos planos que induzem à sensação de liberdade plena e calmaria, altamente contrastantes com a prisão interior e a devastação dos personagens. A crítica chegou a definir o filme como silencioso e arrebatador. De fato, são dois adjetivos perfeitos para se encaixar no primeiro filme de Brizé, que nos brinda com um oásis de sensibilidade ímpar.

5 de jan. de 2011

O caminho soturno percorrido por um homem em “O escritor fantasma”

Antes de voltar à ativa com O escritor fantasma, Roman Polanski passou por um hiato de cinco anos em sua carreira de diretor. O último longa-metragem dirigido por ele havia sido Oliver Twist (idem, 2005), mais uma versão para o mais que conhecido clássico do escritor Charles Dickens, que contava com Ben Kingsley no elenco. Natural que seu trabalho seguinte despertasse interesse do público, ainda mais pelo fato de ele ter sido divulgado e lançado em meio ao escândalo da prisão de Polanski, por conta da acusação de estupro contra ele, que havia sido engavetada e que voltou a pesar sobre o realizador. É muito bom poder dizer que seu novo trabalho é digno de aplausos, pois demonstra a competência do diretor em contar uma boa história e em extrair interpretações preciosas de seus atores.

A trama de O escritor fantasma gira em torno do personagem de Ewan McGregor. Ele é o escritor do título, um homem contratado para redigir livros que não terão sua autoria creditada. O personagem é o que se chama de “ghost writter” em bom inglês: fatura alto pelo seu trabalho, mas jamais terá o reconhecimento de seus leitores, que pensam que suas obras foram escritas por terceiros. Pois bem. Ele, que tem sua condição “fantasmagórica” reforçada pelo diretor até mesmo pelo fato de nunca ser nomeado, é contratado para terminar de escrever a autobiografia do ex-primeiro- ministro britânico, Adam Lang, encarnado por Pierce Brosnan (que mostra render em outros papeis diferentes do agente 007). O escritor contratado originalmente para a tarefa apareceu morto em circunstâncias sombrias, que deverão ser elucidadas pelas investigações policiais.
Uma vez tendo assumido a compromisso de seguir com a escritas das memórias de Lang, para as quais receberá dividendos generosos, o “Fantasma” percebe que está mexendo em um vespeiro que esconde interesses escusos, negociatas e outros tipos de demonstrações de ausência de escrúpulos. Mas seu papel é apenas escrever, e ele não deve ultrapassar os limites que lhes são impostos. Para dar conta de produzir o texto do livro com mais velocidade, ele é levado para uma ilha bastante deserta da costa inglesa, na qual passa a conviver com todas pessoas de quem Lang está ladeado diariamente. Polanski aproveita para lançar mão de um recurso notável em tramas de suspense, como é o caso deste filme: nenhuma das pessoas daquele lugar é o que parece ser. E essa aura de desconhecimento sobre quem está por perto desperta um misto de curiosidade com receio no “Fantasma”.

Logo ele se interessa por descobrir como se deu a morte de ghost writter que substituiu, e percebe o quanto Ruth (Olivia Williams), esposa de Adam, gostava desse seu antecessor, o que pode ser um indício ou não de que a sua morte não tenha sido acidental. No início do filme, o agente do protagonista afirma que aceitar a incumbência de terminar essas memórias é agarrar a oportunidade de uma vida, e o “Fantasma” aceita a proposta convencido por esse argumento. Mas, pouco a pouco, vai percebendo que ganhar tanto pela conclusão da obra pode custar o fim da sua tranqüilidade. Desde os primeiros fotogramas, fica claro que a história desse homem é envolta em mistérios, e atmosfera soturna construída pelo realizador polonês contribui decisivamente para que essa opinião se instaure. O filme é uma adaptação do romance de Robert Harris, e se apoia em uma fotografia de tons acinzentados, pela qual Pawel Edelman é o responsável. Ele é conterrâneo de Polanski e, aos 52 anos de idade, já fotografou dezenas de filmes em sua Polônia natal, além de já ter trabalhado em vários outros nos EUA, como Ray (idem, 2004) e no segmento dirigido por Brett Ratner em Nova York, eu te amo (New York, I Love you, 2009). Aliás, O escritor fantasma é a segunda parceria consecutiva entre Edelman e Polanski, e nesse segundo filme os planos fotografados por ele são um deslumbre em sua capacidade de hipnose. Os personagens são envolvidos por um ambiente fechado, e a clausura é acentuada pelo esquema de proteção que envolve o ex-primeiro-ministro.
Essa arquitetura de segurança reforçada em torno de Adam Lang se justifica pelo fato de ele ter sido duramente criticado pela imprensa e pela opinião pública desde que autorizou a prisão e a tortura de suspeitos de terrorismo. A ilha na qual ele e Ruth se encontram em estado de semi-exílio está localizada no estado de Maine. O escritor tem de aprontar o livro através das entrevistas que vem fazendo com Adam, que faz questão de ressaltar que aquela autobiografia é a chance que ele tem de limpar sua imagem arranhada. Não faltam avisos para o “Fantasma” para que seu trabalho não ultrapasse as fronteiras do relacionamento profissional, e a própria Ruth o faz. Na verdade, todos os personagens têm um caráter ambíguo, o que inclui o escritor interpretado por McGregor, do qual não se sabe absolutamente nada anterior ao momento em que ele aceita a tarefa de terminar de escrever as memórias de Adam Lang. A não ser que sua situação financeira não era das melhores. Não adiantam os avisos, porém. Na tentativa de escrever o mais perto da realidade possível, o “Fantasma” vai conhecendo gente que tem algum envolvimento com a trajetória de Lang.
Cabe ressaltar que a trama roteirizada pelo próprio Polanski se alinhava de maneira indefectível, já que todas as pontas que vão se soltando ao longo da caminhada do protagonista começam a se juntar lá para a meia hora final da narrativa, que se concentra em delinear as consequências da curiosidade exacerbada do “Fantasma” pela vida profissional e pessoal do seu “autobiografado”. É a partir desse momento que o filme ganha muito em ritmo e em surpresas, que deixam o espectador preso na poltrona para descobrir até que ponto pode chegar o personagem em seus descaminhos. Muito do que acontece no enredo de O escritor fantasma foi obliterado nessa pequena resenha, diferentemente do que se possa supor. Há uma infinidade de pequenos e grandes acontecimentos que desencadeiam a ação do longa, que permitem classificá-lo com várias palavras que são atestadoras de sua qualidade como cinema: tenso, sombrio, inquietante, sobressaltante, surpreendente, poliédrico, espamódico.