28 de out. de 2010

“Conto de inverno”, um filme sobre as complicações do amor e o desencanto

Em sua carreira como crítico de cinema, Eric Rohmer logrou um prestígio notável, que o fez figurar entre os fundadores da lendária Cahiers du cinéma, revista que ajudou a formar uma geração de amantes da sétima arte. Depois, decidiu enveredar pela senda maravilhosa da direção de filmes, iniciada com O signo do leão (Le signe du lion, 1959), para o qual elegeu como seu protagonista o talentoso Bruno Ganz, no papel de um homem que descobre que seu meio-irmão herdou toda a fortuna deixada por sua tia rica. O filme, entretanto, não obteve sucesso entre o público. Esse foi apenas o primeiro exemplar de uma filmografia longa, cujos títulos estão distribuídos por cinco décadas, comprovando a força do diretor para se manter na ativa.
Rohmer se tornou bastante conhecido por conta de certas particularidades como cineasta. Em seus filmes, a palavra tem lugar de honra, reinando absoluta sobre qualquer possibilidade de ação contínua dos personagens ou de reviravoltas do roteiro. O realizador francês se debruça sobre os diálogos, acima de tudo, e essa marca o fez ganhar alguns detratores, e outros tantos entusiastas. Suas tramas são geralmente simples, e fáceis de se acompanhar, mas costumam fugir de uma previsibilidade que levaria a assistir a um filme seu como “pacote pronto para se despachado”. São filmes curtos, que raramente ultrapassam os 100 minutos de duração, mas que podem ser apreciados como o lento derreter de uma geleira: absorventemente, dando a impressão de que levam muito mais tempo para chegar ao fim. Ele também compôs o time de diretores que construiu a chamada Nouvelle Vague, de que também foram expoentes François Truffaut, Jean-Luc Godard e Claude Chabrol, que também tiveram um passado de críticos.
Essas peculiaridades apontadas anteriormente se somam a outra que torna sua obra singular: ao longo de sua carreira, Rohmer (nascido Jean-Marie Maurice Schérer, em 1920) construiu séries de filmes que formam um conjunto de reflexões sobre a instabilidade da natureza humana. Os principais deles são a série “Comédias e Provérbios”, de que fazem parte A mulher do aviador (La femme de l’aviateur, 1980), Um casamento perfeito (Le beau mariage, 1982), Pauline na praia (Pauline à la plage, 1983), Noites de lua cheia (Les nuits de la pleine lune, 1984), O raio verde (Le rayon vert, 1986) e O amigo da minha amiga (L’ami de ma amie, 1987). Em comum, os filmes tem a característica de versar sobre a volubilidade dos sentimentos, especialmente o amor, que faz com que as pessoas se mostrem frequentemente entediadas com suas rotinas, e pensem em alternativas para modificá-las. No caso de Pauline na protagonista é insegura e indecisa, mas se mostra firme quanto a saber como quer viver o amor. E, desde o seu início, o filme é marcado por muitos dálogos. Já no início da década de 90, Rohmer decidiu investir em uma outra série de filmes, intitulada “Contos das quatro estações”. Trata-se de um quarteto de longas cujos títulos apontam, cada um, para uma das estações do ano, filmados, aparentemente, em ordem aleatória, tanto se considerarmos a ordem natural das estações no Hemisfério Norte quanto no Hemisfério Sul. Ei-la: Conto da primavera (Conte de printemps, 1990), Conto de inverno (Conte d’hiver, 1992), Conto de verão (Conte d’èté, 1996) e Conto de outono (Conte de automne, 1998). Em cada um dos filmes, uma estação do ano é o pano de fundo para uma história de encontro de um protagonista consigo mesmo, tentando rever passos de sua trajetória. Em Conto de inverno, essa protagonista é Félicie (Charlotte Véry), uma mulher linda e romântica que vive uma história de amor tão intensa quanto fugaz com Charles (Frédéric van den Driessche), um homem charmoso que mexe com sua cabeça. Mas a relação entre eles é suplantada pelo fim das férias de verão, fazendo cada um ir para o seu lado. O principal motivo dessa separação é uma confusão no momento em que eles trocam seus endereços. É a partir daí que começa o inverno de Félicie, que se vê em um período de desolação, à procura de novas companhias que a façam esquecer aquele homem que tanto a encantou. Não tarda para que ela tenha um caso com um homem mais velho, o que nos é mostrado depois de uma passagem de tempo de cinco anos. Ao mesmo tempo, ela mantém uma relação amorosa com um intelectual chamdo Löic. A incompletude que sente, porém, é perene, o que a deixa sempre com a cabeça em Charles. Além disso, há um fruto do amor entre os dois, que é o filho que Félicie carrega consigo.
A grande questão que atravessa a trajetória da personagem é: o que poderia ter acontecido caso ela não tivesse se perdido de Charles? É essa dúvida mortal que a consome, e a faz buscar alternativas que a levem ao esquecimento de seu passado idílico. O espectador que já passou por uma fase de dor de cotovelo certamente será capaz de compreender o inverno atravessado por Félicie, em maior ou menos grau. Ao longo desse período por que a personagem passa, Rohmer destila fartas doses de verborragia, bem ao gosto francês. Essa particularidade desse país é exponenciada para muito além do que se vê em outros filmes, e faz com que grande parte do público se afaste do seu cinema. Trata-se de uma tremenda injustiça, pois o diretor sabe nos envolver com suas palavras, levando à reflexão sobre as relações humanas, seja o amor, seja a amizade.
Como curiosidade, vale ressaltar que Rohmer foi professor de Letras, e chegou a escrever um livro chamado Elizabeth. Esse detalhe de sua biografia corrobora seu amor pelas palavras, que nos é tão visível a cada filme seu. O realizador faz com seus longas o que, na concepção clássica de cinema, é inconcebível: seus diálogos quase nunca são colocados com a função de dar prosseguimento à narrativa, mas funcionam como um eixo de exposição de ideias sobre temas universais. A serviço de Conto de inverno também está uma fotografia excelente, que embevece os olhos. O filme se passa na época do Natal, quando o espírito de hipocrisia brota nas pessoas. Rohmer também examina esse detalhe, e o conjunto da obra faz com que Conto de inverno seja mais de um de seus filme memoráveis.

25 de out. de 2010

Rotinas insossas quebradas por um visitante em “Whisky”

O cinema latino-americano é frequentemente associado a pequenas histórias narradas de formas simples, sem grandes arroubos visuais ou viradas mirabolantes em seus roteiros. Para alguns, é demérito. Para outros, é uma qualidade preciosa. Seja como for, Whisky, longa-metragem rodado em 2004, merece ser conferido, para que as conclusões de cada um possam ser tiradas. Não há nada de extraordinário no filme de Juan Pablo Rebella e Pablo Stoll. Pelo contrário. Whisky é sobre a vida de Jacobo (Andrés Pazos), um pacato dono de uma pequena fábrica de meias que mora em Montevidéu, capital do Uruguai, e leva a vida de maneira estranhamente repetitiva.
Essa característica de sua personalidade é assinalada o tempo todo pelos diretores, que compõem quadros semiestáticos, bastante rígidos, de seu cotidiano insosso. Por várias vezes, vemos a sua chegada à fábrica, sempre com a câmera um pouco afastada da cena, até que o protagonista surge em cena. Ele abre as portas de seu estabelecimento, e é sempre esperado por Marta (Mirella Pascual), sua leal funcionária. É com ela que ele troca as poucas palavras que pronuncia, numa relação marcada pela distância, e que é muito mais profissional que de amizade, apesar de estarem juntos há tantos anos naquele negócio. Fica claro para o espectador que eles não têm nada de surpreendente a apresentar, e que podem ser equiparados a qualquer um de nós. Mas é exatamente nessa observação discreta de fatos banais que reside o triunfo de Whisky, cujo título, a propósito, desperta interpretações equivocadas a respeito de seu conteúdo.
A explicação para ele vem de forma sutil, bem depois da metade da história, como o público atento poderá perceber. Assim como perceberá a solidão de Jacobo, que vive em uma pequena casa, sem qualquer companhia, desde a morte de sua mãe. Ele já é um sexagenário, e tem na fábrica de meias a sua única fonte de alegria. Tudo se modifica em sua vida comum quando ele recebe a notícia de que seu irmão Herman (Jorge Bolani) irá visitá-lo. Assim como Jacobo, ele tem uma fábrica de meias, e vive há anos no Brasil. Saber que seu irmão está prestes a voltar faz que o sentimento de competição de Jacobo aflore novamente, e lhe dá uma ideia algo inusitada. Ele propõe a Marta que se passe por sua esposa durante o período em que Herman estiver na cidade, para mostrar ao irmão que está muito bem, obrigado, com direito a uma dedicada companheira. Marta aceita a proposta, de maneira bastante resignada, diga-se de passagem, como se fosse mais uma de sua obrigações como funcionária.
O impulso dado pela chegada de Herman é um dos maiores rebuliços da narrativa, que caminha a passos curtos, sem sobressaltos. Herman parece ser a única fonte de calor em meio a personagens tão apáticos, e sua rivalidade com Jacobo é apresentada de maneira discreta, muito mais perceptível nos diálogos frios e nos olhares atravessados que, vez por outra, eles travam um com o outro. Marta, por sua candura e suas poucas palavras, é uma espécie de troféu ostentado por Jacobo, que inventa para si até mesmo uma lua de mel com a “esposa”. Tudo para evitar que Herman descubra a farsa que os dois armaram. Na tentativa de serem o mais convincentes possível, Jacobo e Marta vão a um fotógrafo, e tiram uma foto para demonstrar que são uma casal feliz e estável. É durante essa sessão de fotos que o título do filme é pronunciado, e eles dizem “whisky” para que passem a impressão de estar sorrindo. Essa mesma palavra voltará a ser dita por eles, quando estiverem em companhia de Herman, que também fotografa com o suposto casal.
Whisky tem o mérito de se mostrar como um drama intimista, cujo foco é na estrutura profunda de cada um de seus personagens. A trama segue um fluxo lento e cativante e, mesmo que a plateia não se veja como capaz de agir tal qual os protagonistas, é possível compreender o porquê de eles adotarem suas respectivas condutas. Em meio à aparente frieza de Jacobo, Marta e Herman é perceptível uma fagulha de humanidade, que faz cada um deles ser extremamente verossímel. À sua maneira, cada qual está em uma zona de conforto, da qual é forçado a sair. A aproximação de Marta e Jacobo, com vistas a enganar Herman, não é suficiente para que eles consigam esboçar uma relação mais empolgada. Rebella e Stoll flagram essas aparências sufocantes, e a força das conveniências que impedem de ir além. O trio de personagens acaba sendo enredado por uma mentira que, para se sustentar, precisa de mais e mais mentira sucessivas. E o roteiro simples, também escrito pelos diretores e por Gonzalo Delgado, valoriza as interpretações naturalistas de Andrés Pazos, Mirella Pascual e Jorge Bolani, capazes de matizar com propriedade os estágios de percepção da realidade que vão atravessando seus respectivos personagens.
Em resumo, Whisky é um filme que fala da artificialidade das relações humanas na contemporaneidade. Muitas palavras não ditas, bloqueios sentimentais, impessoalidade e a distância mesmo quando parece que se está tão próximo. Os três protagonistas são a encarnação dessa dificuldade de se chegar ao outro, que tanto aflige as pessoas nos dias hodiernos. Fala-se muito em liberdade, mas o homem não deixou totalmente de lado a sua essência conservadora. E esse conservadorismo se manifesta quando se está diante de situações novas, como é o caso de Jacobo, Marta e Herman. A alternativa para tal situação talvez possa ser espargir nossos medos ao lidar com o outro.

19 de out. de 2010

Gargalhadas mescladas com sobressaltos de surpresa em “Um misterioso assassinato em Manhattan”

Para olhares minimamente atentos, é notável que, durante sua longa carreira, Woody Allen vem fazendo constantes homenagens a gêneros e diretores com diferentes com uma habilidade verdadeiramente notável. Em vários filmes, é possível flagrar essas homenagens e/ou diálogos travados pelo realizador novaiorquino. Logo no início de sua carreira atrás das câmeras, ele dirigiu uma série de longas que faziam alusão à comédia física, a um tipo de humor muito voltado para as gags (piadas), num ritmo
rápido e rasteiro. Esse lado é bem representado por Um assaltante bem trapalhão (Take the money and run, 1969) e Bananas (idem, 1971). Allen também se aventurou, de maneira bastante peculiar, no terreno da ficção científica, quando dirigiu O dorminhoco (Sleeper, 1973), e fugiu do lugar-comum ao dialogar com a comédia romântica no legendário Noivo neurótico, noiva nervosa (Annie Hall, 1977), cujo título é português é repudiado pelos fãs da obra, e que, realmente, não faz muito sentido.
Já na década de 80, encontra-se sua menção aos filmes à moda antiga, representada pelo terno A era do rádio (Radio days, 1987), em que sua infância nos anos 40 parece ser o motor principal da narrativa. É um filme bastante afetivo, em que reinam as lembranças de um tempo que não volta mais. Allen também sempre buscou um diálogo com a obra de Ingmar Bergman, que se verifica em uma série de seus filmes, como é o caso de A última noite de Boris Gruschenko (Love and death, 1975), Interiores (Interiors, 1978), Setembro (1987) e A outra (Another woman, 1988). Nesses longas, com exceção do primeiro, as tramas centrais são dramáticas, e o cineasta fala sobre a dificuldade de comunicação entre as pessoas, numa clara alusão à filmografia do realizador sueco. E, de alguma maneira, Allen acaba dialogando também com a Trilogia da Incomunicabilidade de Michelangelo Antonioni.
Nos anos 90, o diretor prestou uma divertida homenagem aos musicais ao lançar Todos dizem eu te amo (Everyone says I love you, 1996), um filme desengonçado e simpático que inverte a fórmula tradicional aplicada ao gênero ao apresentar, entre outras coisas, uma família rica como protagonista, e uma mocinha extremamente volúvel no que diz respeito ao amor. Foi também nos anos 80 que Woody Allen decidiu dirigir uma outra homenagem. Dessa vez, ele se propôs a lançar um olhar diferente sobre os filmes de suspense, e o resultado dessa empreitada é Um misterioso assassinato em Manhattan (Manhattan murder mistery, 1993), em que sua cidade amada está presente no título de uma obra sua, como ocorrera 24 anos antes com Manhattan (idem, 1979). Aqui, ele assume o papel do protagonista Larry Lipton, que é enredado por sua mulher, Carol (Diane Keaton) numa trama de mistério e obscurantismo.
Ela é uma dona de casa entediada que cisma que o vizinho deles cometeu um assassinato, e decide ir até às últimas consequências para provar que está com a razão Para isso, empreende uma louca jornada em busca de evidências que comprovem sua teoria. O vizinho do casal é um simpático idoso, de aparência bastante inofensiva, mas que não convence Carol. Com esse argumento, Allen desenvolve mais uma de suas deliciosas comédias, em que a verborragia dá o tom da ação, que não é, necessariamente, impulsionada pelos diálogos. Os espectadores mais atentos poderão observar que o cineasta cita Alfred Hitchcock, especialmente o de Psicose (Psycho, 1960), o que fica evidente em algumas sequências. Carol é tão incisiva em sua desconfiança que acaba por trazer Larry para seu lado, já que ele também passa a acreditar que o vizinho tem culpa no cartório. A cena que mostra a visita do casal ao apartamento do homem é simplesmente hilariante, pois Carol começa a procurar loucamente qualquer prova material de que ele assassinou a própria esposa. Enquanto isso, Larry tenta manter uma conversa minimamente fluente com o vizinho, falando de assuntos estranhos, com um visível desconforto. Aliás, o riso, nos filmes de Allen, é derivada de situações corriqueiras, nas quais o público consegue facilmente se projetar. De uma maneira ou de outra, há um componente muito humano nos personagens que ele escreve, e Carol e Larry não fogem à regra.
Além de buscarem pistas que deem conta de incriminar o vizinho, eles se aliam a Ted (Alan Alda) e Márcia (Anjelica Houston), uma dupla que tem faro de investigadores e fomenta o desejo de descobrir a “verdade” do casal. Em conversas pelo telefone, Ted dá algumas dicas para que eles consigam capturar o criminoso(?), de forma a se certificar de que estavam pensando o que era certo. Um misterioso assassinato em Manhattan está construído em torno dessa briga de gato de rato entre o casal e o vizinho. Eles perseguem a verdade para fazer uma suposta justiça, mas Allen não está preocupado em esclarecer a mistério tão rápido. Na verdade, a narrativa da história demonstra que isso não é o mais importante, e que há muitas discussões de teor existencialista para se fazer que somente descobrir se alguém é ou não culpado de um crime. O impedimento moral, uma temática recorrente na obra de Allen, está presente aqui novamente, revestida de uma aura de riso.
Mas o riso em seus filmes não tem somente a tarefa de trazer leveza e diminuir a importância de uma boa trama. Os roteiros que ele escreve se encaminham para muito além disso. Em meio à busca desenfreada de Larry e Carol por desvendar o mistério, há tempo para se refletir sobre a instituição casamento. Sempre com uma dose de humor bastante peculiar, é bom que se diga. Um misterioso assassinato em Manhattan é o primeiro filme de Allen depois de sua separação traumática da atriz Mia Farrow, com quem vinha trabalhando sistematicamente há 13 filmes. O último, Maridos e esposas (Husbands and wives, 1992), é um tratado algo perturbador sobre a dissolução de dois casais que se veem questionando o ideal de felicidade imposto pelas convenções sociais. Com o fim de seu próprio casamento, o diretor voltou a se encontrar com sua parceira de cena de outrora, Keaton, com quem faz uma nova dobradinha, irresistível como as de Noivo neurótico, noiva nervosa e Manhattan.
Com a argúcia de quem entende exatamente do que está falando, mas sem soar pretensioso ou pedante, Allen revisita seus tema preferidos: a morte como realidade patente, da qual não se pode escapar, a instabilidade do amor, que pode se revelar uma armadilha quando menos se espera, as pequenas neuroses que consomem e desgastam qualquer relacionamento humano, seja o casamento, seja a amizade. Lá para a o último terço do filme, quando as loucuras de Larry e Carol chegam ao seu ápice, Allen aproveita para citar diretamente Hitchcock, fazendo menção da cena em que ocorre a perseguição a Norman Bates (Anthony Perkins), dessa vez representada pelo casal protagonista, que faz de tudo para alcançar o vizinho sob suspeita. No final das contas, o que se observa é mais um grande exercício de estilo de um cineasta que já comprovou seu talento para compor quadros verossímeis sobre as vilezas nossas de cada dia.

18 de out. de 2010

Solidão e vazio existencial filtrados por um narrador em “Viajo porque preciso, volto porque te amo”

Não há qualquer dúvida sobre o tema de Viajo porque preciso, volto porque te amo: o vazio provocado pela sensação de abandono. Um abandono perpetrado pela pessoa amada, que se vai levando consigo parte da pessoa que abandonou. Sim, é um filme sobre distâncias e ausências. Distâncias entre os seres humanos que, mesmo vivendo lado a lado, estão separados por um terrível abismo invisível mantido pela incapacidade latente de se comunicar. Ausências que se manifestam quando cada um descobre que o seu interlocutor não é um mero reflexo seu.

Narrado por um protagonista que jamais mostra seu rosto, cujo intérprete é creditado ao final da exibição como Irandhir Santos, o filme acompanha a trajetória de um homem – que também jamais é nomeado – pelas estradas nordestinas. Ele é um geólogo que, à medida que adentra pelo sertão brasileiro, luta para intensificar seu processo de esquecimento da mulher que o deixou, ao que parece, sem grandes explicações. Essa é a deixa para um longo percurso que, mais do que a execução de um trabalho, é uma viagem que ele faz em busca de si mesmo. Tudo o que é apresentado na tela é filtrado pelo olhar lacrimejante do protagonista.
O longa é uma parceria acertada entre Marcelo Gomes e Karim Ainöuz. Dois cineastas que se tornaram responsáveis por retratos contundentes e, ao mesmo tempo, afetuosos do Nordeste brasileiro: Cinema, aspirinas e urubus (2005) e O céu de Suely (2006), respectivamente. Nessa união dos dois, ele novamente lançam um olhar comovido e comovente sobre uma região tida como problemática em todo o país. E se propõem a refinar essa abordagem usando o minimalismo, traduzido em uma narrativa econômica, concêntrica no que tange ao drama pessoal de um homem que se desloca por se sentir deslocado. Dirigindo um caminhão que leva o material destinado à procura de lugares para a instalação de poços, esse geólogo vê um Brasil de mil cores e caras, de mil gentes e misturas. Um país que está muito longe da pasteurização que se faz habitualmente por estrangeiros, e até mesmo por cidadãos nativos. A frase que serve de título ao filme aparece também dentro da história, e é vista pelo protagonista escrita no para-choque de um caminhão, sendo repetida por ele em voz alta algumas vezes. Para o personagem, aquelas palavras são a síntese de sua condição naquele momento.

Fica perceptível a maneira talentosa com que Gomes e Ainöuz matizam o sofrimento daquele homem, que se vê em todos os lugares, bem com vê a mulher que o deixou. A câmera são seus olhos, que perscrutam o que há de essência naquilo que se vê. A viagem, nesse sentido, se estende para além do óbvio, e afasta a produção da dupla de realizadores do esquema previsível proporcionado pelo circuito descaradamente comercial. Não há, contudo, nada de errado com os filme ditos pipoca. Clarice Lispector afirma, em A via crucis do corpo, que existe hora para tudo, e que isso inclui também a hora do lixo. Mas Viajo porque preciso, volto porque te amo não se enquadra, definitivamente, nessa “categoria”.
Os diretores apresentam outros aspectos que engrandecem o filme. Eles casam uma trilha sonora recheada de músicas bregas (ao menos na concepção centro-sulista) com o estado de desalento em que seu protagonista está imerso. As canções falam de corações partidos, de amores que se foram deixando marcas profundas, e ele se identifica com aquilo tudo. Ao mesmo tempo, o personagem é atravessado por um sentimento de negação ao que se passa com ele, chegando a desqualificar a mulher que o deixou. É como se, assim, ele conseguisse expurgar a falta que ela lhe faz. Além de comover o espectador com um brilho inesperado, por assim dizer, do sertão, Gomes e Ainöuz construíram um longa no qual a ênfase está na palavra. Mais uma vez citando Clarice Lispector, em seu famoso conto O ovo e a galinha, ela trata dessa questão de falar longamente: "Falai, falai, estou cansada". E falar é exatamente o que o protagonista mais faz ao longo de todo o filme. A maior parte do tempo, inclusive, fala sozinho. Aos mais taxativos, pode ser um sinal franco de loucura, mas é a sua maneira de desabafar, fazendo quem asiste ao filme de interlocutor.
Dessa maneira, os realizadores aproximam quem está assistindo ao filme, fazendo que o público seja cúmplice daquela dolorida cruzada rumo à aceitação do fim. Na verdade, essa acaba sendo a grande inquietação do ser humano: saber que todas as coisas, ou pelo menos, a maioria delas, tem um fim. E que, muitas vezes, não está ao nosso alcance modificar essa realidade. A estrada, bem como nós, é testemunha fiel desse percurso, e deixa perceber que, dessa vez, os diretores praticamente abriram mão de um eixo narrativo ou mesmo de um enredo. Interessa muito mais flagrar as estratégias de autoconvencimento de homem sobre uma verdade que lhe é aterradora. E, ao se deidicar somente a isso, Gomez e Ainöuz extraem poesia da banalidade.

15 de out. de 2010

“As invasões bárbaras” ou quando antigos sonhos e ideais se tornam pó

Filmado no ano de 2003, As invasões bárbaras é um exemplar precioso de bom cinema originário de um país do qual poucas produções no chegam: o Canadá. Felizmente, os espectadores brasileiros puderam ter acesso à obra, realizada em conjunto com a França, e que dá continuidade à história que o cineasta Denys Arcand havia começado a narrar em 1986, quando lançou O declínio do império americano. Nesse longa, um grupo de amigos se dividia entre homens e mulheres, reunindo-se em lugares diferentes, para discutir sobre os mais variados temas, mas privilegiando sempre o aspecto político em suas conversas. Enquanto os homens
preparavam um jantar numa casa de campo, as mulheres se refestelavam em uma academia de ginástica, onde podiam falar à vontade sobre homens, e eles sobre elas. Como o próprio título evidenciava, a questão central desse diálogos era a falência de um domínio que já não comportava em si todos os anseios e necessidades de uma geração, a mesma que havia, duas décadas antes, mostrado sua faceta mais incendiária num certo mês de maio.
Em As invasões bárbaras, Arcand prossegue esquadrinhando os medos, dilemas, alegrias e mazelas de que é composto o ser humano, mas, dessa vez, com uma fagulha ínfima de esperança, que já vinha entrando em estado de decomposição no filme anterior. Diferentemente de O declínio..., entretanto, em que todos os personagens tinha igual peso na narrativa, o centro da trama desse filme está em Rémy (Rémy Girard), que é o grande responsável pela nova reunião dos amigos. Se antes eles eram mais jovens, e não abriam mão de expor suas aspirações com a certeza de que as alcançariam, agora o discurso de cada um é bastante marcado pela modalização em cada frase. A grande temática do longa é a implosão de sonhos que vinham sendo alimentados ao longo do tempo, mas que foram sendo apagados pela força das circunstâncias contrárias. Todos eles se reencontram depois de serem informados por Sébastien (Stéphane Rouseau), o filho de Rémy, sobre o estado grave do amigo, que está na fase terminal de um câncer.
Nem é preciso dizer que o novo encontro entre eles é marcado pela melancolia, já que, de uma maneira patente, o tempo se mostra implacável e cruel com cada um, que não apresenta mais aquele doce brilho da juventude. E o que move esses amigos é, novamente, a verborragia. O roteiro, a cargo do próprio Arcand, parece ter sido
escrito para ser dito em uma curva melódica descendente, reafirmando a certeza de que nada é mais como antes, nem voltará a ser jamais. Fica evidente a tese de que todos mudamos o tempo todo, e que não podemos evitar a passagem do tempo. O ataque às Torres Gêmeas do World Trade Center, ocorrido em setembro de 2001, apenas dois anos antes das filmagens do longa, também entram em pauta, e justificam o título utilizado na produção, também entrando em pauta como um índice de que o fim de todas as coisas acaba chegando, inevitavelmente. Ao contrário do que possa parecer, no entanto, Arcand repele qualquer traço de sentimentalismo barato no reencontro de Rémy com seus amigos. Os diálogos travados entre os personagens são de uma atualidade incrível, e refletem exatamente a condição humana de nossos dias. Não há personagens planos em As invasões bárbaras, pois cada um apresenta suas várias facetas a cada instante da trama.
Desde o início do filme, percebe-se que a relação entre Rémy e Sébastien é bastante tumultuada, e isso é exteriorizado na forma como eles se tratam. Tal dissonância entre pai e filho se deve principalmente ao fato de Sébastien ter se transformado exatamente naquilo que Rémy mais detesta: um alto executivo de uma multinacional, a verdadeira encarnação do “american way of life”, tão repudiado por ele em suas aulas de história. É daí que surgem os embates homéricos que vão permeando a complicada relação deles. Vale ressaltar que as conversas entre os amigos é sempre bastante despudorada, já que eles não se privam de falar sobre assunto algum, tendo sempre um teorização a respeito daquilo sobre o que estão falando. Desse modo, o texto flui como água de nascente, sem qualquer freio ou obstáculo à naturalidade. No ano de 2004, o filme eleito o representante franco-canadense na corrida pelo Oscar de melhor filme estrangeiro, e acabou faturando o prêmio, uma láurea importante que acentuou o interesse do público pela obra.
Mas, independentemente do fato de ter sido premiado, As invasões bárbaras é um filme de valor inestimável, pois toca em temas graves, sem medo de expor feridas que cicatrizam com dificuldade, e que todos procuramos manter escondidas. Para quem assistiu a O declínio do império americano - pré-requisito para esse filme, aliás, fica nítido que o avanço dos anos trouxe muitas dessas feridas ao grupo de amigos. Se antes os sonhos eram tidos como praticamente certos de se realizar, agora todos estão cientes de que não foram plenamente capazes de mudar o mundo com suas concepções inovadoras. Nas entrelinhas de suas conversas, eles exalam um forte conformismo, que se agrava com a evolução da doença de Rémy. É por ele e para ele que todos estão novamente unidos, e é a sua condição física que acaba deflagrando um série de conflitos e reconciliações, inclusive com Sébastien. Com isso, vem a certeza de que, no fim da vida, a constatação da impotência humana parece ser remediada apenas pela proximidade daqueles que amamos.

14 de out. de 2010

"Soul kitchen”, uma comédia rasgada com atestado de qualidade

Quando se pensa em filmes cômicos, é frequente a associação com temas banais sendo tratados com superficialidade, interpretados por elencos com uma baixa capacidade de desvencilhamento do personagem que encarnam. A sinonímia, de fato, muita vezes se revela verdadeira, como quando “pérolas” como Não é mais um besteirol americano ou A hora do rango chegam às salas de exibição. Mas nem tudo está perdido nesse nicho onde a sede de divisas parece ser a única força motriz de produtores e ditos cineastas.

Soul kitchen existe, entre outras coisas, para contrariar esse pensamento pessimista, por assim dizer, do senso comum. O mais recente filme de Fatih Akin é uma jogada de mestre em termos de roteiro, atuações, cenários, trilha sonora e andamento, só para citar os aspectos que mais saltam aos olhos do espectador que decidir assistir a ele. Trata-se de uma comédia, mas uma comédia muito mais benfeita que a maior parte dos filmes que entopem os cinemas toda semana. E as qualidades de “Soul kitchen” se mostram logo em seus primeiros minutos de exibição. Na tela, acompanha-se a história de Zinos Kazantsakis (Adam Bousdoukos), um jovem dono de um restaurante que anda mal das pernas, e que dá nome ao longa. Aparentemente fadado ao fracasso, ele pensa em estratégias que visem à arrecadação de dinheiro para tirar o estabelecimento de sua situação precária.
Mas este é apenas um dos vários problemas que vão surgindo, em sucessão, na vida de Zinos. E é a partir daí que começam as sacadas geniais do roteiro do próprio Akin, que se debruça sobre uma conjunção de pequenos acidentes que transtornam a vida do protagonista. São acontecimentos simples, se considerados isoladamente, mas que, juntos, deixam Zinos sem saber que rumo dar às coisas. O roteiro do filme, a propósito, foi premiado no festival de Veneza de 2009, coroando o esforço do realizador teuto-turco em escrever uma trama que navegasse pelas águas do riso. Ele confessou, à época do lançamento do filme na cidade italiana, que teve muitas dificuldades para conduzir a história em que havia pensado, e que percebeu que a comédia é muito mais difícil de ser construída do que o drama.
E Akin vem de dramas pesados antes de Soul kitchen. Ele é responsável por um dos filmes alemães mais catárticos dos últimos anos, o também premiado Contra a parede (2003), exibido com louvor em Berlim, de onde saiu ganhador do Urso de Ouro. Em seguida, entregou um ensaio amargo sobre colapsos civilizatórios chamado Do outro lado (2007), em que aprofundou seus temas favoritos: a dificuldade de comunicação entre as pessoas, o apego às tradições como tentativa de autoconhecimento e a multiculturalidade como aspecto patente dos dias atuais. Por isso, uma incursão do iretor no âmbito cômico poderia ser, no mínimo, escorregadia, já que nem sempre os realizadores são felizes no que tange à versatilidade. Para o deleite dos fãs de um bom cinema, Akin se sai muito bem em sua mudança de rumo, já que, mais do se prestar a um entretenimento e arrancar boas risadas, Soul kitchen é um filme sobre a procura de um lugar num mundo em que a pasteurização de ideias, ações e gostos parece ter atingidos níveis altíssimos. Nas suas entrelinhas, filme tem sempre muito a dizer, e essa é a qualidade de cineastas que, por trás de assuntos triviais, conseguem apresentar visões interessantes sobre a realidade.

Não se trata, porém, de se fazer uma análise preciosista de um filme que, para além de qualquer coisa, não se propõe um ensaio sobre as contradições humanas, como quem quer encontrar algo de subjetivo até mesmo em Todo mundo em pânico, mas de enxergar que, sob uma superfície, pode se esconder um oásis de criatividade. Esse é o caso de Soul kitchen. Na história de Zinos, a cada nova surpresa que se lhe apresenta, ele é confrontado com a necessidade de encontrar um saída plausível para a resolução de seu problema. Além das dificuldades em lidar com os prejuízos que seu restaurante vem causando, Zinos tem de lidar com seu irmão Illias (Moritz Bleibtreu, de O grupo Baader Meinhof), que acabou de obter liberdade condicional. Ele quer um emprego de fachada para se manter livre nas ruas, e pede ajuda ao irmão para d
conseguir arquitetar sua farsa. Some-se a isso o cozinheiro contratado por Zinos para modernizar o cardápio do restaurante, um tipo iracundo e que não admite qualquer opinião sobre sua maneira de trabalhar. O personagem é interpretado por Birol Ünel, que já havia trabalhado com o diretor em Contra a parede, e que repete a parceria com Akin de maneira brilhante. Sua postura de enraivecimento a cada palpite dado por Zinos ou por um de seus funcionários é sempre hilária, e ele acaba sendo, em parte, responsável pela quase falência do restaurante.
A namorada de Zinos se transforma em outro de seus problemas, já que ela decide se mudar para Xangai por conta de um emprego, e o abandona sem a menor cerimônia na Alemanha. Tudo colabora para que ele decida vender o restaurante, antes que sua situação fique ainda mais complicada. Mas um conjunto de pequenas mudanças vai fazer com que os rumos de seu negócio se modifiquem, em mais um virada inventiva de Akin no roteiro do filme. Depois de muita insistência de Zinos, o chef do restaurante decide cozinhar aquilo que ele sempre sugeriu, e um DJ começa a tocar no estabelecimento, animando as noites dali e atraindo a curiosidade de pessoas que ouvem falar do Soul Kitchen. Artistas também ficam interessados pelo lugar, passando a exibir suas obras para os freqüentadores. Todos esses acontecimentos são mostrados de maneira rápida no filme, em uma seqüência embalada pela maravilhosa trilha sonora, um detalhe que sempre chama a atenção na obra de Fatih Akin, reforçando o clima de tudo-ao-mesmo-tempo-agora injetado na trajetória do protagonista. Como na vida real, ele vai do inferno ao paraíso quase sem escalas, dando uma guinada importante.
No que concerne à música, vale lembrar que Akin dirigiu um documentário em que caminhava pelo cenário musical turco, apresentando a produção de um país que ainda é visto por aqui com estereótipos. O filme se chama Atravessando a ponte – O som de Istambul (2006), e comprova a maturidade do realizador em traçar retratos da mescla de influências que rege os contatos interpessoais nos dias em que vivemos. E a música desempenha um papel importante também em Soul kitchen, podendo ser considerada como quase um personagem da narrativa. Akin impõe ao filme um ritmo bastante acelerado, entregando diálogos ágeis e inteligentes, que são capazes de deixar o público com um sorriso de satisfação no rosto a cada novo fotograma, já que ele sabe como trabalhar a palavra exatamente a favor da reação que deseja causar em sua platéia. Em sua duração, o filme traz um pouco de drama, mas a preponderância é da comédia, que se mostra muitas vezes rasgada, mas sem um laivo sequer de mediocridade.

2 de out. de 2010

"A fonte da donzela", uma teia soturna de coincidências

A cada novo olhar lançado por Ingmar Bergman sobre aspectos vários da natureza de homem, sua perspectiva se mostrava ainda mais acurada. Com um cinema do qual uma série de diretores é tributário declarado, não há como se manter impassível ante os seus retratos contundentes das vicissitudes moldando o ser humano. Em A fonte da donzela, o realizador sueco se deebruça novamente sobre a temática da Idade Medieval, que já rendera poucos anos antes uma obra-prima chamada O sétimo selo. Filmada em 1959, a trama gira em torno de uma família tipicamente medieval, com sua crença na vontade soberana de Deus para explicar todos os fenômenos da natureza.

Nesse contexto, já é possível vislumbrar que Bergman se propõe, mais uma vez, a tratar de um tema que é recorrente em sua filmografia: a crise da fé. É ela que vai permear toda a história, de duração inferior a uma hora e meia. Os pais são católicos fervorosos, convencidos de que a filha adolescente deve ser criada segundo os mais rígidos preceitos da religião cristã. Töre (Max Von Sydow), o pai da jovem, é casado com Märeta (Birgitta Valberg), a mãe, e eles incumbem a menina de levar velas para acender em homenagem à Virgem Maria, em uma igreja que fica na região. Essa família vive na Suécia do século XIV, um período em que a população estava dividida entre o cristianismo e o paganismo, tendo sido o segundo incorporado pelo primeiro paulatinamente. Para chegar ao seu destino, a menina tem um longo caminho a
percorrer, e o faz montada em um cavalo pertencente à família, já que o casal é dono de uma propriedade rural.
Karin (Birgitta Pettersson), a filha adolescente do casal, é uma jovem bastante arquetípica, em se tratando do ambiente em que está inserida: sonha em se entregar para um único homem, que será aquele que ela amar verdadeiramente, e com quem poderá se casar e ter filhos. Como se percebe, é a emergência de um velho dogma do catolicismo, que apregoa o sexo apenas depois do casamento. A menina é a imagem clara da pureza, reforçada o tempo todo por sua postura de devoção a Maria e por sua obediência sem questionametos aos pais. Bergman fez uma escolha feliz ao escalar a jovem atriz para dar vida a personagem, e soube expor a fragilidade de que necessitava para fazer com que o público se torne seu cúmplice e se choque com a tragédia que se lhe abate.

Antes que o fato cruel suceda, no entanto, Bergman se preocupa em dissecar os meandros da fé que nutre aquela pequena família, expondo seu cotidiano de muito trabalho e de um temor no invisível que quase beira a alienação. Diferentemente do que se possa supor, contudo, o diretor não dá à Idade Média a antonomásia clássica de "Idade das Trevas". Não em seu sentido mais corriqueiro, pelo menos. E, com a progressão da narrativa, chega-se à conclusão de que não é mesmo essa a abordagem do cineasta. Se há trevas naquele período, não significa que elas sejam exclusivas dele. A condução do filme faz perceber que, onde houver o homem, sempre haverá espaço para sentimentos e atitudes negativas, como a violência, a crueldade, a lascívia e o sadismo, ainda que em estado latente. Tal consideração permite que se faça um paralelo entre a situação verificada na tela e a conjuntura atual.
É importante salientar que Bergman refuta qualquer traço de maniqueísmo com A fonte da donzela, preferindo lançar suas observações sobre o caráter dual do homem. Voltando ao enredo do filme, é no caminho para a igreja que Karin sofre com a tragédia. Ela é abordada por dois pastores de cabras, que a estupram sem qualquer piedade e, em seguida, ela é assassinada por eles. A sequência é apresentada por Bergman pacientemente, e mistura uma certa dose de crueza com um quê de poesia, caracterizando o cineasta como um exemplar raro entre os seus, já que não está interessado em simplesmente filmar a violência por si só. Como em um filme posterior, Da vida das marionetes, em que analisa exaustivamente o episódio do assassinato de uma prostituta, aqui ele dedica alguns bons minutos a assinalar até onde um homem pode avançar em seu instinto de mais baixa vileza. Como um verdadeiro esteta da imagem, Bergman compõe um quadro de pura angústia e desolação ao apresentar ao espectador a morte dolorosa daquela personagem tão angélica.
O questionamento às instituições religiosars atravessa todo o filme, e reforça o apreço do realizador pelo tratamento das dúvidas a respeito da existência: por que estamos aqui?, qual o sentido de viver e morrer?, se Deus existe, por que não se comunica?, entre outras questões geradoras de inquietude. Seguindo-se à morte de Karin, vem uma grande e terrível coincidência sobre a família, que não entende porque a menina demora tanto a voltar para casa. Os mesmos pastores que foram responsáveis pelo assassinato da adolescente de 15 anos vão prosseguindo em sua caminhada, até que chegam à casa de Töre e Märeta para pedir-lhes comida e água. A mãe já se encontra aflita, pois não tem notícias da filha e quer que ela volte, o que faz com que o marido procure tranquilizá-la, lembrando-lhe que a garota já dormiu na cidade em outras ocasiões em que fora à igreja.
Não tarda, porém, para que os pais de Karin constatem que a menina está morta, o que se traduz na percepção de que os pastores estão com a roupa que a filha vestia quando de sua partida. Ao relatar o fato a sós para o marido, instaura nele um forte desejo de vingança, do qual ela também se torna imediatamente partidária. A partir daí, o filme ganha contornos ainda mais obscuros, acentuada pela fotografia de Sven
Nykvist, seu habitual colaborador, o diretor captura com sua câmera observadora o desenrolar da fúria de Töre contra os homens que desonraram e tiraram a vida de sua filha. No fim das contas, A fonte da donzela se estabelece como um inteligente debate sobre o valor da fé cega, e até que ponto a bondade pode resistir ao ataque do mal, mostrado sob a forma de uma alegoria, com a família que tem sua felicidade destruída por obra de malfeitores. Assistir ao filme atiça a necessidade de se discutir a respeito do tema, e é mais uma prova concreta de que Bergman sempre foi talentoso em espiar as agruras da condição humana, dessa vez, por meio de uma teia soturna de coincidências.