27 de jan. de 2012

O cavalo de Turim e os quadros estáticos do marasmo


Talvez seja um tanto impróprio restringir o que Béla Tarr faz ao rótulo de filme. O termo soa impreciso diante de suas obras portentosas, que impactam pelo peso do silêncio que as recobre, assim como acontece em O cavalo de Turim (A torinói ló, 2011). Mais do que um filme, aqui se tem uma intensa e profunda meditação sobre o tédio, a desesperança e o desalento em forma de quadros estáticos que remetem a pinturas e fotografias. E essa meditação é um grande exercício de paciência, uma qualidade que boa parte das plateias contemporâneas perdeu ou mantém escondidas sabe se lá onde. Quem vencer a resistência a obras de lentidão lancinante será confrontado com uma família em estado de suspensão e descrença no que será o amanhã. A base para esse olhar dolorido do diretor húngaro é um episódio real envolvendo Friedrich Nietzsche, que teria defendido um cavalo de maus tratos quando vivia na cidade italiana que está presente no título do filme.

Essa tal defesa teria se dado quando o filósofo já não se encontrava mais pleno de suas faculdades mentais, e, provavelmente em decorrência do fato, ele disse apenas algumas palavras desconexas e, em seguida, emudeceu até a morte. Tarr decidiu investigar o que teria acontecido ao cavalo dirigindo esse filme, e trouxe a existência mais um petardo dramático que incomoda e entontece pelas repetições dos acontecimentos. Não é mera força de expressão quando se comenta que quase nada acontece em O cavalo de Turim. Verdadeiramente, são pouquíssimas as ações que transcorrem na história, sublinhando que a proposta do realizador é investir na contemplação. Assim, como um nativo de um país europeu que está mais para o hemisfério oriental, ele hipnotiza a plateia. A propósito, lembremo-nos de que a palavra “hipnotizar” deve sua origem à mitologia grega, por fazer referência a Hipnos, o deus do sono na tradição clássica daquele país. É exatamente essa a sensação que se tem diante do filme: a de que estamos em um sono pesado, do qual não podemos sair facilmente.

E essa constatação, diferentemente do que pode levar a crer, coroa O cavalo de Turim de um força e uma qualidade cuja descrição por quaisquer palavras se revela sempre insuficiente. Palavras são, antes de mais nada, maneiras que se têm para expressar e designar ideias, sentimentos e tantos outros elementos (o termo mais hiperonímico que me surgiu além de “coisa”), mas elas são quase sempre apenas tentativas. Mais do que um ponto de vista, essa é uma verdade que existe por si só, concordando-se ou não com ela. Ciente disso, Tarr praticamente abdica delas para se concentrar nos passos, nos olhares e nas respirações de Ohlsdorfer (János Derszi) e sua filha (Erika Bók). A quase ausência de diálogo entre os dois é angustiante. O espectador deseja ouvir palavras de um lançadas ao outro, mas elas vêm pouquíssimas vezes, amplificando o desespero silencioso que vivem e viemos também. Um desespero que se alastra por 146 minutos de mescla de poema visual com canto de resignação. Aqueles dois têm apenas um ao outro. E ao cavalo. O cavalo tem apenas àqueles dois. E nada mais. A fria paisagem castigada por um inverno severo forma também o inverno daquelas almas.



O cavalo de Turim foi exibido no Festival de Berlim de 2011 e deixou boa parte do público e da crítica apopléticos. A exemplo de outros de seus trabalhos, os planos duram muito tempo. Especificamente aqui, são 30 planos que se distribuem nas mais de 2 horas de filme, e contribuem decisivamente para deixar o espectador atônito. Em Palm Springs, onde também foi exibido, o filme saiu vencedor do prêmio de melhor filme, uma escolha, no mínimo, interessante. Para não dizer corajosa. Pelos temas que aborda e pela característica com a qual fala deles, uma sessão sua pode ser daquelas que começa cheia e se vai esvaziando ou que já em seu início é vazia. Para quem não foge ao confronto com seu próprio interior, todavia, o filme exerce uma grande força centrípeta, impregnando a cabeça por horas a fio depois de seu final. O início, por sua vez, chega a apresentar uma narração em off que seria a contextualização dos acontecimentos que se seguem a ela, mas essa voz se cala pelo resto da projeção, e então teremos apenas uma ou outra fala de dois dos três personagens principais: o pai, a filha e o cavalo.

Muitos podem acusar Tarr de excessivamente hermético. De certa forma, a acusação soa legítima, mas não é imprescindível atribuir um significado objetivo à obra para que ela valha a pena. A exegese do marasmo e da lenta agonia feita pelo diretor vai além de definições pré-estabelecidas. Ao filme, basta o seu usufruto. Mas é possível ir além disso e ir ao encontro (ou ir de encontro, se a ideia for de choque) com o estudo diligente das nossas mazelas interiores. Discreto, o direto sentencia através de seus personagens que a impiedade dos homens está deteriorando o mundo, e isso se traduz mais claramente, ainda que também com certos simbolismos e metáforas sutis, na figura de um homem que se atreve a emitir vaticínios sobre a proximidade do fim dos tempos. As suas falas emulam a concepção de que existe um castigo eterno iminente, queiramos nós ou não, fato do qual o velho dono do cavalo discorda silenciosa e veementemente. Sua filha, totalmente resignada, limita-se a preparar batatas cozidas para ambos comerem. É tudo que lhes resta. “Comamos o que ainda temos e então morramos”, é o que parece ressoar da garganta semifechada da jovem. Sem perspectivas, eles nada mais fazem além de viver um dia após o outro, e se entregar ao destino, ao fado, à sorte, seja lá o nome que se queira dar ao que lhes sobrevém. O cavalo, por sua vez, adoece dia após dia e, em sua condição simbólica dentro do filme (rótulo limitador usado aqui novamente por força de expressão), sintetiza a imprecisão da vida e dos próximos acontecimentos que ela pode trazer.

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