5 de jan. de 2012
Confissões de uma mente perigosa e os ônus da duplicidade
De todos os roteiros escritos por Charlie Kaufman, o de Confissões de uma mente perigosa (Confessions of a dangerous mind, 2002) é, seguramente, o mais simples. Nem por isso, é banal. O longa, primeiro de George Clooney como diretor, baseia-se na vida de Chuck Barris, espécie de Silvio Santos da televisão estadunidense, apresentador do The gong show, um programa de variedades que ficou conhecido no Brasil como Show de calouros. Interpretado por Sam Rockwell, em inspirada composição, o filme é uma bela estreia de um ator que já comprovou seu talento em diversas produções. O grande impasse da trama, baseada no livro escrito pelo próprio Barris, é a vida dupla que o apresentador passa a levar. Durante o dia, ele esbanja carisma diante da plateia de seu programa, um grande sucesso de audiência. À noite, trabalha como agente da CIA, cometendo assassinatos para o governo de seu país.
Sobre esse argumento, Clooney entregou um filme maduro e acertado, misturando um pouco do universo dos gângsters com pitadas de drama, sem se perder nesse hibridismo pouco usual. A seu favor, também está um elenco formidável, que doa o melhor de si. Sam Rokwell ainda não tem um papel de grande apelo popular em seu currículo, mas, certamente, Chuck Barris é um dos seus personagens mais importantes. Com seu biotipo um tanto franzino e comum, ele encarna com propriedade um homem que, mais cedo ou mais tarde, será atravessado pela agonia da duplicidade. Surge o questionamento que o persegue: até que ponto é possível manter duas vidas sem que uma interfira na outra? Enquanto se pergunta, uma série de pessoas com intenções diversas cruza o seu caminho.
Entre elas está Penny (Drew Barrymore), a namorada e a principal pessoa de quem ele precisa manter tudo escondido. A atriz foi uma escolha um tanto inesperada de Clooney, mas seu desempenho como uma mulher que nunca sabe exatamente quem é seu parceiro leva a entender que a escalação foi acertada. Outra que surge em cena transpirando mistério é Julia Roberts, como uma espiã que se vale de seu charme e de sua beleza para seduzir Chuck para o seu mundo. O próprio Clooney também acumula a função de ator, reservando para si um papel coadjuvante que tem a sua importância na trama. Sobra até espaço para uma rápida participação de Brad Pitt e Matt Damon, em uma cena do programa de auditório. A aparição é tão rápida que dura poucos segundos, sendo quase uma brincadeira do diretor com os espectadores mais atentos. Vale lembrar que o cineasta é amigo de longa data dos dois, já tendo trabalhado com eles três vezes sob a batuta de Steven Soderbergh, em títulos como Doze homens e outro segredo (Ocean’s twelve, 2004).
Com relação ao livro em que Confissões de uma mente perigosa se baseia, cabe o comentário de uma curiosidade: a obra é uma espécie de biografia não-autorizada do apresentador escrita por ele próprio, na qual ele inseriu também alguns contos fictícios cujo personagem principal é um tal Sunny Sixkiller. Pode-se pensar que este tenha sido um recurso para que ele pudesse contar livremente os podres que acumulou ao longo da carreira e os que viu sendo acumulados pelos seus parceiros e inimigos. Ao mesmo tempo, a estratégia reveste os eventos retratados no livro e no filme de uma névoa espessa, dificultando a certeza do que seja real ou de quem tenha sido o real autor das ações e falas mostradas. Clooney, por sua vez, não era o diretor escolhido inicialmente para o filme. Para quem pensa que este era um projeto seu, engana-se. Antes de chegarem a ele, os produtores pensaram em Brian Synger e Darren Aronofsky, posteriormente descartados.
Nos aspectos técnicos, tudo se sai muito bem. A montagem é eficiente e a fotografia, uma incumbência de Newton Thomas Sigel, contempla a tal névoa espessa que reveste os acontecimentos da trama de plena incerteza. Seja como for, não é o mais importante saber se tudo aconteceu ou não de fato, mas mergulhar na história de um homem com um grande potencial dramatúrgico e refletir sobre o peso das escolhas e sobre como arcar com as suas consequências. o mar de rosas que Chuck vive não tarda a se mostrar revolto, e ele precisa encontrar um ponto de equilíbrio para a sua dupla jornada. Com esse filme, Clooney demonstra o quanto aprecia o cinema como grande veículo para contar histórias sobre pessoas que fizeram a diferença, e não somente como fonte de espetáculo. Ele abdica da ação desenfreada para pontuar seu filme com uma rotação um tanto lenta, que distanciam a obra de uma roupagem tipicamente popular. Não se trata, portanto, de um filme para multidões.
O slogan do filme é bastante sugestivo: Existem coisas que é melhor manter em segredo. Essa é, de fato, a tentativa de Chuck ao longo do filme. Mas nem sempre é possível impedir a fusão de dois mundos, e os desdobramentos dessa tal duplicidade incluem ônus verdadeiramente pesados. Por falar em Chuck, seu intérprete foi premiado com o Urso de Prata no Festival de Berlim, coroando o esforço e o talento de um ator que ainda passa despercebido em muitos filmes que contêm seu nome nos créditos, como O guia do mochileiro das galáxias (The Hitchhiker's guide to the galaxy, 2004), de gosto um tanto duvidoso. Enfim, as fontes de Confissões de uma mente perigosa estão em seu elenco afinado, com papéis que lhes caem como luvas, mas não são necessariamente óbvios, e uma direção segura e eficaz, trazendo Clooney para uma função que viria a desempenhar outras vezes, de forma igualmente digna.
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