5 de fev. de 2012

2 coelhos: uma trama de contornos mirabolantes


A estratégia de se narrar uma história de maneira não-linear sempre oferece muitas armadilhas, e é preciso ter um grande domínio da linguagem e dos tempos para não cair nelas. Do contrário, o enredo resulta em algo truncado e, por vezes, incompreensível. Oriundo da publicidade, o estreante Afonso Poyart aposta no recurso em 2 coelhos (idem, 2011), aventura político-lisérgica em que os rumos dos acontecimentos são totalmente embaralhados, possibilitando ao espectador da obra rever a sua lógica a cada nova sequência apresentada. Com muita ironia, explosões, tiros, bomba e fusões com gêneros diversos, o diretor elabora uma trama criativa e muito próxima da realidade, colocando no centro de tudo o dúbio Edgar (Fernando Alves Pinto), de quem o público se torna confidente, por assim dizer. Ele também é a voz em off que pontua os fatos da história, e ajuda a situar, até certo ponto, a plateia que o acompanha.

Sabe-se através dele que existe um plano mirabolante, pensado, julga-se, por ele mesmo, e que envolve esquemas de corrupção no poder judiciário, bandidos casca-grossa e um político que não hesita em ajudar delinquentes, se isso lhe representar a obtenção de altas divisas, que engordem a sua já obesa conta bancária. Desde o princípio, é necessário manter atenção plena a cada cena, pois há pistas espalhadas por todos os lados, inclusive algumas falsas, que podem desviar o espectador do foco correto. Poyart soube dosar muito bem sua própria criatividade com um punhado de referências que transbordam durante o filme, e nos fazem lembrar de obras como Pulp fiction (idem, 1994), apontada pela crítica e pelo público como a referência mais explícita do diretor. Pode-se dizer que ele tenha concebido uma espécie de assemblage (termo francês para colagem ou reunião) de signos presentes em filmes com histórias de violência e planos malucos, temperando-a com seu toque particular.

O resultado obtido passa longe da mera imitação, e comprova que o cinema nacional sabe dar provas francas de versatilidade, seja por meio de tramas totalmente inéditas e inesperadas, seja pela via da releitura de tramas que já têm atestada a sua capacidade de prender o público pagante, a mina de ouro das distribuidoras, vale lembrar. A jornada de Edgar consiste em articular esquemas que desafiam o poder público, de quem ele, como muitos brasileiros, sente-se na condição de refém. O que o personagem quer, antes de mais nada, é uma chance de reviravolta na sua própria vida, e não se importa mais se ela tiver de vir através de uma dose de desonestidade. É então que passam pela trama vários outros personagens que dialogam de perto com a ganância e a esperteza, como o ladrão vivido pelo rapper Thaíde, que rouba o celular de Edgar e que, pouco depois, será o seu principal aliado na busca pela alta quantia de dinheiro em que o protagonista está de olho. A relação entre eles é tipicamente a de ladrão que rouba ladrão. Quando um tenta ser mais audaz, o outro oferece uma intensidade ainda maior de malandragem para se dar bem na história.



Para um público habituado a torcer por mocinhos e ir contra os vilões, 2 coelhos trará uma séria dificuldade. Nenhum dos personagens é totalmente ilibado e, ao menor sinal de desconfiança dessa afirmativa, cada um deles dá conta de comprovar sua veracidade. Junto a Edgar, a pessoa mais importante da história é Julia, uma promotora pública que também polariza as ações da trama, e é o elo entre os dois mundos que parecem desconectados no começo (?) do filme. Logo nas primeiras cenas, aliás, começa a expectativa para saber como os caminhos de Edgar e Julia se cruzarão, enquanto ainda não se sabe que a correlação entre eles é mais antiga do que se pensa. O tempo todo é assim: mudanças de rumo e puxadas de tapete dão o tom dos acontecimentos, embora alguns, para espectadores mais perspicazes, possam ser previstos com uma antecedência considerável. Principalmente aqueles habituados a acompanhar tramas cheias de surpresas. Não se trata, nem de longe, de um demérito. Até porque, em nenhum momento o roteiro zomba do espectador duvidando de sua inteligência.

O grande mérito de 2 coelhos é trazer um sopro de novidade na seara do cinema nacional, sendo muito benvindo por isso. Como já se disse, a mescla de referências responde pelo tônus dramático do filme, engendrado cuidadosa e pacientemente pela porção roteirista de Poyart em parceria com Izaías Almada. A influência da estética publicitária também é notável, especialmente em algumas sequências que se assemelham a spots de propaganda que, porém, não chegam a soar gratuitas. E, voltando a Alessandra Negrini, sua presença em cena é sempre revigorante. A atriz costuma ser bastante seletiva na escolha de seus papéis, algo que acarreta uma certa demora entre um e outro trabalho seu. Aqui, sua Julia é uma gata de sete vidas que transita com folga por diferentes espaços e traduz uma conduta circunstancial, de quem aprende a se safar de acordo com o que aparece pela frente (as tais circunstâncias, afinal). Ela ainda se sai muito bem nas cenas que divide com Alves Pinto, demonstrando uma química explosiva entre seus personagens, cujo relacionamento tem sempre uma surpresa na manga. Louvável escolha de Poyart tê-la no elenco do filme.

O elenco secundário também é de grande peso. Caco Ciocler é um outro ator de talento comprovado, cuja carreira televisiva segue há tempos em paralelo com a cinematográfica. Por muito tempo, Walter, personagem do ator, é um enigma na história, cuja relação com Edgar é desvendada pouco a pouco e responde pela maior reviravolta de todo filme. Vale destacar também o excelente trabalho de Marat Descartes na pele de Maicom, um bandido com um senso de humor que oscila entre o grotesco e o mordaz. O ator vem sendo celebrado pela crítica por conta de seus desempenhos notáveis em produções recentes e elogiadas como um todo, como Os inquilinos (idem, 2009) e Trabalhar cansa (idem, 2011). Portanto, o diretor foi muito feliz em sua estreia no celuloide, abarcando um elenco afiado em uma narrativa que se abre em vários tentáculos e que caminha para um desfecho crível e que soa surpreendente. Some-se a essa aparente sessão pipoca uma boa dose de crítica social, com as mazelas mais graves dos brasileiros estampadas em cada personagem e 2 coelhos se configura com um grande êxito.

Um comentário:

Julia Mathias disse...

Também gostei muito desse filme, espero ver mais coisas do tipo no futuro do cinema brasileiro.