Exibido no Festival de Cannes de 2011, Beleza adormecida (Sleeping beauty, 2011) é um daqueles casos de filmes que caminham pelo ambiente cinematográfico sem grande resplendor. O longa de estreia de Julia Leigh, também escrito por ela com base em seu próprio romance, começa e termina sem que haja um aviso prévio, por assim dizer. Na primeira sequência, Lucy (Emily Browning) está em uma sala alva, passando por um procedimento realizado por um jovem assistente do que logo se percebe ser um hospital. Ali, assepticamente, como cabe à praxe medicinal, ele introduz na garganta da jovem um túbulo que vai até o estômago, com um propósito que não fica muito claro em momento algum. Ela ainda voltarà àquele local outras vezes, bem como passará por outros, tencionando, com esses pequenos trabalhos, obter o seu próprio sustento.
Desde esse início, a passividade excessiva da protagonista incomoda. O que se sabe é que ela tem poucas pessoas com quem contar, e que, por isso, corre atrás de dinheiro, venha de onde vier. Todavia, a sua sanha por ganhar grana é o único índice de obstinação que ela apresenta. No mais, é como se Lucy levasse a vida no piloto automático, contrastando sua ambição financeira com sua total ausência de entusiasmo por qualquer outra atividade. Seu único interlocutor constante é um rapaz com quem ela mantém uma espécie de amizade colorida, interpretado por um ator cujos traços lembram vagamente o grande Bruno Ganz quando era mais jovem. É por causa dessa mescla de necessidade com ambição que ela atende ao anúncio de uma empresa que contrata belas jovens para alegrar distintos clientes em reuniões seriíssimas desfilando em trajes exíguos, e servindo aos seus paladares refinados com garbo e elegância.
Diante da beleza fulgurante de Lucy, a dona do lugar lhe oferece algo mais. Sob o efeito de um chá entorpecente, ela adormece e fica totalmente à disposição de clientes que paguem (caro) para admirar sua linda anatomia – em especial as suas zonas calipígias – mas não é permitido todo tipo de ação – penetrá-la é totalmente vetado. A insolidez do “emprego” não assusta Lucy, que compra a ideia rapidamente, e a aceitação da personagem abre espaço para muitas e muitas cenas de nudez de Emily Browning, diáfana e florescente pelo passar dos anos que separam este papel do que ela interpretou em Desventuras em série (Lemony Snicket's a series of unfortunate events, 2004), quando era ainda era recém-ingressa na puberdade. Se o filme de Julia Leigh flerta o tempo todo com o vazio, é legítimo eleger como a sua razão de ser os closes generosos da câmera na linda personagem.
O tal vazio mencionado no parágrafo anterior é o grande problema que acomete Beleza adormecida. De certa forma, o filme parte do nada e chega a lugar algum, sendo entremeado de cenas com um quê de pitoresco. Ao mesmo tempo que deseja o dinheiro que lhe traga uma posição social de elevação, Lucy é uma garota desmotivada, sem grande brilho. E há algo que torna o filme um tanto irritante no que tange ao tal serviço desenvolvido por ela: a impressão claríssima de que se trata de uma citação a De olhos bem fechados (Eyes ide shut, 1999). Aquele desfile de mulheres com os seios à mostra lembra quase imediatamente as sequências do clube em que Will (Tom Cruise) descobre um mundo de lascívia e grande hipocrisia no filme de Stanley Kubrick. À parte o fator “desejo” envolto nas cenas, a intertextualidade com uma obra tão fraca e permeada de pretensão só depõe a favor de Beleza adormecida. E Lucy é uma personagem rasa, de quem se conhece tão pouco que é praticamente impossível adquirir alguma empatia com ela até o fim da narrativa.
Entretanto, o filme não chega a naufragar: apenas encalha próximo à costa. O insight de interesse despertado (sem trocadilhos) por ele é a decisão de Lucy de colocar uma microcâmera no quarto onde ela dorme enquanto é alvo das investidas dos clientes. A sua curiosidade é compreensível. Durante as horas que passa inconsciente, todo o tipo de movimento em seu corpo é praticado pelos homens que pagam para estar com ela. Esses homens são sempre idosos, de aspecto execrável, como a violar a garota. A descoberta de Lucy sobre o que acontece nessas longas horas de sono gera uma reação desagradável nela, que o espectador pode entender quando chega a essa altura do filme. Essas sequências finais valem mais do que o filme todo, por pontuarem o início de uma interessante discussão sobre a evanescência das riquezas materiais e sobre o alto preço da ganância. No mais, Beleza adormecida é um filme um tanto excêntrico, que suscita um fio de interesse pelo estranhamento.
16 de jan. de 2012
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