26 de jul. de 2011

Manderlay e o prosseguimento da desconstrução de um mito


Depois de dar início a uma provocativa reflexão sobre os aspectos negativos da cultura dos cidadãos estadunidenses e sobre o componente de vileza inerente à natureza humana com Dogville (idem, 2003), Lars Von Trier prosseguiu com sua trilogia “EUA – Terra das Oportunidades”. O resultado é Manderlay (idem, 2005), uma nova ocasião para que o cultuado realizador dinamarquês exponha feridas abertas e desagradáveis com seu cinema. Esse trabalho é mais um exemplar de sua inquietude como cineasta, e de como essa arte pode manifestar, através de diferentes dispositivos de representação, abominações cometidas pelo lado negro do homem. Com certas semelhanças estruturais e narrativas com seu trabalho anterior, Manderlay também traz características próprias, fortes o suficiente para que o filme não seja classificado como apenas mais do mesmo. Entre as mudanças, entretanto, está a substituição de Nicole Kidman por Bryce Dallas Howard para o papel de Grace. Nesse segundo filme, a atriz ruiva assume o posto de protagonista, como se assim tivesse sido desde sempre. Nos bastidores, sabe-se que o fato se deve ao modo extenuante com que o diretor trabalha, que teria enfadado Kidman. Mas há também a versão que dá conta de que a atriz não teria encontrado espaço em sua agenda para estar na produção.
Seja como for, a segunda parte da trilogia – até hoje ainda não concluída, diga-se de passagem – começa exatamente de onde a anterior havia parado. Depois de deixar a cidade de Dogville, Grace chega, acompanhada de seu pai, vivido por Willem Dafoe, a uma nova localidade, que dá nome a esse filme. Ali, ela descobre o funcionamento de um regime escravocrata em franca expansão, ainda que esse modo de produção nefasto tenha sido abolido há muitos anos. Ali também estão alguns personagens remanescentes do primeiro filme, que aparecem em novas funções, como a Madame (Lauren Bacall). Em pouco tempo, Grace tentará tomar as rédeas da situação, mas novamente será confrontada com pequenas e grandes crueldades naquele ambiente que não é o dela. Novamente, os cenários são apenas sugeridos, signo de uma proposta radical de diluição entre as fronteiras entre a encenação cinematográfica e a teatral. Na verdade, Manderlay é o nome de uma fazenda, e o ano em que se passa a história é 1933, pouco tempo depois da Grande Depressão. E ao buscar interferir nas relações entre patrões e empregados da fazenda, Grace depara com uma estrutura muito maior do que ela imagina.
Em 139 minutos, Von Trier oferece o que faz de melhor: instigar e provocar, com um enredo que vai se revelando muito mais intrincado do que parece. Por mais que tenha aprendido a dar vazão ao seu lado mais violento, Grace ainda precisa lidar novamente com a hostilidade dos outros, e se afirmar como mulher em um ambiente declaradamente machista. Por ela, passam homens como o asqueroso Wilhelm (Danny Glover) e o dúbio Timothy (Isaach de Bankolé), que forçá-la-ão a adotar uma conduta mais ofensiva. Todos, de alguma forma, contribuem para a continuação do processo de embrutecimento de Grace, que já teve a chance de conhecer o quanto seus semelhantes podem ser terríveis. O diretor demonstra novamente que toda obra de arte é, em última instância, um retrato do ser humano, e não faz filmes com a intenção de entreter. Sua filmografia pregressa, da qual constam títulos como Os idiotas (Idioterne, 1998) e Dançando no escuro (Dancer in the dark, 2000), não envereda pelo caminho da simplicidade, mas sim pelo esquadrinhamento da complexidade do ser humano, que não é facilmente classificável. Pelo contrário, qualquer julgamento sobre uma pessoa é mormente circunstancial, como também acontece com os personagens.



Os bastidores do filme estão envoltos em polêmicas. E a maior delas talvez seja a cena que mostra a morte de um burro, o provável motivo da saída de John C. Reilly do elenco. O ator jamais se pronunciou a respeito do fato, deixando incógnita a verdade sobre o que realmente o tirou da produção. Além disso, nove dos doze atores que interpretam escravos no filme são ingleses, já que os estadunidenses se recusaram a participar, inconformados com o conteúdo da obra. É mais uma prova do quanto Lars Von Trier pode gerar desafetos na tal Terra das Oportunidades que tanto critica e alfineta aqui. O diretor também vai contra seus próprios princípios artísticos ao eleger um cenário para sua narrativa, diferentemente do que propunha no Dogma 95, manifesto lançado em meados da década retrasada em que apregoava, junto a Thomas Vinterberg, a abolição de construções de cenários e o uso de trilha sonora que não fosse do próprio ambiente. Pois Manderlay é quase inteiramente filmado em um galpão na Suécia, como o foi Dogville, além de se passar em vários outros países, como Dinamarca, Holanda e Alemanha. A decisão do diretor demonstra sua capacidade de autorreinvenção como realizador, capaz de ultrapassar os limites a que ele mesmo se impôs de forma brilhante, aliando talento e maturidade crescente.
Aqui, percebem-se novamente certos recursos que o realizador já havia utilizado no primeiro filme, como a estrutura da narrativa dividida em capítulos e a narração em tom sarcástico de John Hurt. Essas similitudes, além das outras já mencionadas, auxiliam a percepção de que há uma unidade por trás da abordagem do diretor. Ao se valer novamente de vários recursos empregados antes, Von Trier assinala um viés especificamente provocativo com os dois filmes, componentes de uma trilogia que ainda permanece em aberto. Ele prometera Washington para 2007, mas os anos se passaram e o projeto ainda não se tornou realidade. De lá para cá, ele dirigiu outros filmes, Anticristo (Antichrist, 2009) e Melancolia (Melancholia, 2011), ambos apresentados para a plateia de Cannes. Mas a esperança de que essa terceira parte venha continua viva. E no caso específico de Manderlay, notabiliza-se, comentando mais uma vez a protagonista, o quanto ela abandonou a postura de servidão do primeiro filme para se valer de uma arrogância pretensamente bem intencionada. A personagem poderia ter continuado nas mãos de Nicole Kidman, que tem muito mais anos de estrada e experiência que Dallas Howard, mas é evidente o empenho da ruiva em se apropriar de um dos seus primeiros papéis de destaque. No mais, resta a certeza de que, afora certas irregularidades em doses sutis, estamos diante de um novo e grande monumento à inquirição.

24 de jul. de 2011

A família Savage, um pequeno tratado sobre flagrantes da vida humana


Com várias qualidades apresentadas ao longo de sua duração, A família Savage (The Savages, 2007), é a estreia de Tamara Jenkins na cadeira da direção. Para seu début cinematográfico, ela escolheu observar uma temática que é constantemente comentada pela sétima arte: as relações familiares. A análise da diretora se dá por meio das figuras de Wendy (Laura Linney) e Jon (Philip Seymour Hoffman), que têm um relacionamento tumultuado há tempos. A reaproximação entre eles acontece por ocasião da doença do pai, Lenny (Philip Bosco), um homem de personalidade dominadora que agora precisa da ajuda de ambos. Da troca de acusações inicial, movida pelos ressentimentos particulares de um e de outro, surge a necessidade de entendimento mútuo, para que um bem maior, nesse caso, a restituição da saúde de Lenny, seja alcançado. E assim começa a interessante discussão proposta pela diretora sobre os laços que, invariavelmente, unem pessoas que não escolheram previamente estar vinculadas umas às outras.
A força de A família Savage está em seus diálogos bem escritos, resultado do roteiro original escrito pela própria Jenkins. O texto acentua as nuances dramáticas que perpassam a convivência algo forçada que passa a existir para o trio, e é belamente interpretado pela dupla de atores principais, que fez muito bem em aceitar o convite da cineasta para atuarem juntos. Linney e Seymour Hoffman são dois dos melhores atores de sua geração, e apresentam grande sintonia em cena, sendo responsáveis pelos instantes de reflexão e também de sorrisos de canto de boca, provocados pela naturalidade com que encaram os contextos propostos pelo roteiro. Fica a impressão de que os dois já tinham uma parceria de longa data, mas toda a empatia entre ambos foi talhada ao longo das filmagens do longa-metragem. Cumpre ressaltar também o talento de Philip Bosco, que faz de seu Lenny uma figura multilateral, a quem se pode amar ou detestar com as mesmas facilidade e intensidade. O veterano não tem surgido na tela com tanta frequência, o que reafirma a validade de tê-lo no elenco do filme, na pele de um pai que serve de catalisador para o transbordar das mágoas e feridas ainda não cicatrizadas que cada irmão carrega.
À parte do drama de ter o pai necessitado de sua atenção, os irmãos vivem suas vidas particulares. Wendy é dramaturga no East Village, e está em busca de doações para a montagem de sua peça, além de ter um namorado casado que não se cansa de enganá-la, e ela também rouba materiais de escritório. Jon, por sua vez, é professor universitário em Boston, e já publicou alguns livros sobre assuntos obscuros, fato que é comentado com pitadas de sarcasmo pela sua irmã em algum momento da narrativa. Com a doença do pai, Wendy e Jon têm de aprender a equilibrar suas desventuras pessoais com a premência da proximidade do genitor, que também tem suas verdades para lançar nos seus rostos. A família Savage é essencialmente um drama, mas essa sua característica não impede que as sequências também sejam atravessadas por um quê de comicidade, como acontece nas situações triviais da vida real. A depender do ângulo sob o qual se vislumbra determinado fato, ele pode ganhar dimensões engraçadas, e Jenkins se vale dessa afirmativa em várias passagens de seu filme. Não há nada de novo ou extraordinário aqui, apenas a trama de um pai e seus dois filhos e, ao mesmo tempo, de dois irmãos, que evidencia o peso que as relações familiares têm sobre cada indivíduo.



As excentricidades de Jon e de Wendy são as grandes fontes de conflitos entre eles, que vão acompanhando, em paralelo, o avançar do processo de demência de Lenny. Há momentos de desconforto para ambos, que têm de lidar com a cada vez mais completa dependência que o pai passa a ter. As manias e singularidades de cada um também são os fatores que os tornam mais humanos e palpáveis, longe de uma aparência e um aspecto psicológico idealizantes. O filme não se furta da aura de comédia dramática (ou drama cômico) indie, e não desperdiça sua narrativa em cacoetes visuais e interpretativos, fluindo como água límpida que escorre pela nascente de um rio, até que chegue ao seu leito. Como trabalho prioritariamente dialogal, A família Savage exibe virtudes e marcas autorais, algo fundamental em uma arte que ganha tristes contornos industriais quando focaliza a arrecadação de divisas em detrimento de se apresentar como espaço de reflexão e catarse. Existe um pouco de Wendy e de Jon em cada espectador, o que comprova a possibilidade de identificação que eles podem gerar.
Conclui-se, a partir dessa breve exposição, que a estreia de Tamara Jenkins na direção habita a esfera do minimalismo: nada além do realmente necessário e imprescindível. A ação está totalmente concentrada nos dramas e dilemas morais que cada um vai enfrentando à medida que o tempo passa, e a necessidade de lidar com os problemas vai crescendo. O público não é subestimado em sua inteligência através do enredo, e pode ter sua posição de mero espectador sacudida ao longo do seu desenvolvimento. Não se trata de uma questão de escolha por um lado ou por outro. Não há um mocinho ou um vilão na história, cada um é muito humano, e pode apresentar razoabilidade e intransigência. A irregularidade da condução é discreta, incapaz de comprometer o resultado final de uma obra que se pode proclamar simples mas eficiente, algo cruel mas capaz de despertar algum calor. Aqui, por mais que haja uma quase ausência de trama, há anti-dramaticidade, como uma concepção angular em que se prefere espiar o lado convexo de um estado de coisas.

21 de jul. de 2011

Uma releitura de um tempo de aura mítica em Bravura indômita

Indômito é um termo que, em sua acepção adjetiva, refere-se a alguém ou algo que é altivo, destemido, a que ou quem não se pode vencer. A palavra aparece flexionada no feminino no título de Bravura indômita (True grit, 2010), filme recente dos irmãos Ethan e Joel Coen, que vêm experimentando diferentes dispositivos de representação de seu olhar arguto sobre os fatos da vida a cada novo trabalho. Neste aqui, entretanto, eles deixam de lado, de certa forma, a visão obtusa de momentos cotidianos, para apresentar ao público a refilmagem do clássico homônimo de 1969, cujo protagonista era ninguém menos que o legendário John Wayne. Cabe adiantar, entretanto, que os diretores imprimem sua marca ao longa-metragem, afastando o comentário de que tenham feito um mero decalque da obra pregressa. Na verdade, ainda que quisessem fazê-lo, não seriam capazes, dado o transcorrer de quatro décadas, suficientes para alterar a perspectiva sobre o gênero faroeste, minado paulatinamente, ferido de morte pelo alastramento da noção de politicamente correto.



Os Coen alçam ao posto de protagonista, posição que se vai relativizando ao longo da narrativa, o talentoso Jeff Bridges. Ele é o xerife beberrão Reuben J. Cogburn, procurado pela garotinha Mattie Ross (Haille Steinfeld) quando o pai desta é assassinato de modo impiedoso por Tom Shaney (Josh Brolin). A menina demonstra um apurado senso de justiça misturado a um intenso desejo de vingança, e quer a todo custo que Cogburn vá no encalço do malfeitor, sem abrir mão de acompanhá-lo na caçada. A essa altura, o filme já demonstrou o criterioso trabalho de reconstituição de época por trás de cada cenário, bem como a aposta em uma estética de aspecto genuinamente “Velho Oeste”. Cenas típicas de um dia a dia numa região assim, como o enforcamento de três ladrões sem qualquer protelamento, já avisam que Bravura indômita é um filme que faz jus ao seu título, também através dos personagens. Mattie se vê obrigada a lançar mão de toda sua coragem, de que nem ela mesma parecia se dar conta, para negociar com gente ardilosa os bens da família, bem como para encarar a resistência inicial oferecida por Cogburn ao seu pedido de ajuda.
Depois que a dupla embarca na longa jornada rumo à perseguição a Shaney, surge a figura imponente de LaBoeuf (Matt Damon), um policial texano que também está à procura do criminoso, mas por conta de outro assassinato. A grande maioria das cenas, a partir de então, serão desse trio, que demonstra total entrosamento nas sequências dramáticas e uma interdependência entre suas atuações que faz de suas performances um trabalho em conjunto. Os irmãos Coen saúdam os espectadores – fãs ou não do gênero – com um filme empolgante, que se soma a outros rarefeitos que vêm sendo dirigidos aqui ou acolá (lembre-se de Appaloosa - Uma cidade sem lei [Appaloosa, 2008]) e nadam contra uma tendência que parece irreversível. Aqui se verifica a leitura de uma época, atravessada inexoravelmente pelos conceitos, preceitos e preconceitos de uma modernidade em que homem e animal, que vêm se diferençando um do outro através dos tempos, parecem cada vez mais aproximados novamente. Na gramática virulenta dos campos abertos e desérticos do old west não cabem a complacência nem o retroceder, mas sim a certeza da recrudescência que se faz necessária a cada nova configuração de ameaça.
Bravura indômita respira qualidade técnica, graças a montagem frenética, na medida, já que também tem seus momentos de lancinância velada. O filme pode agradar também a quem se interessa por uma boa fotografia, que dá conta de iluminar a paisagem com uma luz discreta, que não se furta de mostrar os rostos vincados dos caubóis destemidos que atravessam rios, passam noites ao relento e defendem a própria sobrevivência com vontade férrea. Esse aspecto da obra é uma atribuição de Roger Deakins, que já trabalhou diversas vezes com os cineastas, em títulos de propósitos e resultados díspares, como O homem que não estava lá (The man Who wasn’t there, 2001) e O amor custa caro (Intolerable cruelty, 2003) e Seu trabalho é muito bem realizado, e demarca os anos de parceria que vem cultivando com os irmãos, expressos no apuro com que captura as imagens, bem ao gosto do que está assinalado no roteiro, a cargo dos irmãos, que se basearam no livro de Charles Portis.


Além disso, é indispensável comentar acerca do ótimo desempenho de Jeff Bridges, que vem experimentando nos últimos anos uma espécie de soerguimento de sua carreira, com sua participação em títulos de qualidade. A qualidade de sua interpretação de Cogburn lhe rendeu a segunda indicação consecutiva ao Oscar de melhor ator; a anterior havia sido por Coração louco (Crazy heart, 2009). De fato, seu xerife é talhado com gestos contidos e um sotaque algo interiorano fantástico. É uma figura diferente da construída por Tommy Lee Jones, que encarnou o xerife Bell em Onde os fracos não têm vez (No country for old men, 2007), mas que tem em comum com este a postura desalentada e descrente diante de uma humanidade cada vez mais feroz e indomável. Seu parceiro de cena, Matt Damon, também é um oásis de talento e qualidade, mascarado pela rusticidade de sua caracterização, que soterra sua beleza e realça sua capacidade de viver tipos distantes de sua realidade, deixando detalhes de seu porte físico na esfera do refugo. É uma pena ele não ter recebido uma indicação ao Oscar de ator coadjuvante. Juntamente com Cogburn, seu LaBeouf transpira coragem ao cavalgar sobre o ungulado que trota velozmente par conduzi-lo ao seu alvo. Some-se a eles o grande Josh Brolin, que vem se firmando como um ator de verve camaleônica, e que firma, aqui, sua terceira parceria com os Coen, a segunda em um longa-metragem.
A edição bem realizada é outro aspecto que cabem a Ethan e Joel Coen, que a assinam sob o pseudônimo de Roderick Jaynes, uma brincadeira que encobre o talento dos irmãos em mais uma área, além da escrita e da direção. Na 83ª edição do Oscar, o filme saiu de mãos abanando, malgrado suas dez indicações. O fato é uma demonstração ínfima do quanto a Academia de Artes e Ciências Cinematográficas pode cometer injustiças, o que também corrobora a afirmação de que nem tudo que seus membros deixam passar é desprovido de qualidades. Aqui, os embates cênicos entre atores de peso respondem por boa dose do interesse na projeção, além dos já comentados aspectos técnicos e da maravilhosa trilha sonora de Carter Burwell, outro colaborador recorrente dos realizadores. Ela ajudar a compor o quadro de um ambiente quase inóspito, que coopera decisivamente para tornar seus habitantes um arquétipo da luta pela sobrevivência e pela honra. Os homens de Bravura indômita juram fidelidade aos seus próprios códigos, e desferem golpes certeiros com as armas de que dispõem para assegurar sua probidade. Tanto Cogburn quanto LaBeouf e Shaney, cada qual à sua maneira, representam e intensidade dramática contida em um gênero cinematográfico sobre o qual muitos insistem em lançar uma mortalha.

19 de jul. de 2011

Inverno da alma ou a caçada pela dignidade


Entre os filmes considerados independentes a passar pelo circuito entre 2010 e 2011, um deles chamou bastante a atenção da crítica, que o elogiou e o incensou de modo a classificá-lo como imperdível. Trata-se de Inverno da alma (Winter’s bone, 2010), um trabalho que focaliza uma localidade dos EUA desprovida de glamour e, por isso mesmo, muito distante do famigerado American way of life. A trama é protagonizada por Jennifer Lawrence, que dá vida a Ree Dolly, uma jovem em estado de alerta, tomada pela necessidade de arcar com as consequências devastadoras da desagregação de sua família, que incluem o desaparecimento de seu pai e a insanidade de sua mãe. Ela tem apenas 17 anos, mas já sente o peso da grande responsabilidade sobre as costas. Em meio a esse cenário desolador, a diretora Debra Granik discorre sobre impetuosidade e desespero, mesclados e alternados na figura de sua heroína trágica, uma garota que, de improviso, vê-se diante da perda de seu esteio. Entretanto, por algumas razões, tanto de ordem essencialmente subjetiva quanto de ordem técnica, algo se perde no percurso que Granik se propôs a fazer, fato a se comentar a posteriori.
A diretora investe em um ambiente de aridez, mas uma aridez gélida, por mais paradoxal que seja essa adjetivação. Ree teve de aprender a ser impávida, destemida, para dar conta de proteger a própria dignidade, bem como a de sua família, a quem dedica cuidados em tempo integral. Verifica-se, pela sua aparência desgrenhada, o quanto ela se esquece de si mesma para zelar pela mãe doente e pelos irmãos mais novos. Tal característica da personagem encobre parte da beleza de Lawrence, e permite que seu talento seja evidenciados antes de tudo. Aliás, a grande capacidade de absorção de Inverno da alma está atrelada ao talento incontestável da jovem atriz, que conseguiu arebatar uma indicação ao Oscar da categoria, competindo com nomes como Nicole Kidman e Michelle Williams. A Academia tem uma certa inclinação para reconhecer o trabalho de atrizes que se despem de uma aura de glamour para encarnar uma personagem, como foi o caso de Charlize Theron em Monster – Desejo assassino (Monster, 2004), e com Lawrence não foi diferente.
No filme de Granik, o tema central é a cruzada de Ree pela descoberta do paradeiro de seu pai, que partiu depois de ter deixado a casa da família como garantia de sua liberdade condicional e não deixou qualquer vestígio. É nesse périplo da protagonista que a cineasta investe o tempo todo, fato que, ao mesmo em que torna a ação concêntrica e sem espaços para subtramas que desviem o foco do espectador, tornam o filme excessivamente angustiante, sufocando a percepção do público. Em toda a sua duração, Inverno da alma traz a luta de Ree pela sua dignidade e pela esperança, mas se perde em alguns momentos por se dedicar demais às situações derivadas dessa busca. Quando a personagem encontra seu tio, por exemplo, surge na tela a figura repelente de Teardrop, vivido por John Hawkes, um ator de grande capacidade de mimetismo, algo essencial aos talentosos dessa profissão. Ele assusta e arrepia com seu jogo cênico travado com Lawrence na pele de Ree. Percebe-se, no encontro entre os dois, que ele tem mais a dizer além do que diz, mas é ríspido com ela e assevera que não a ajudará em mais nada. Em muitos momentos, o roteiro, escrito pela própria diretora em colaboração com Anne Rosellini, baseado no livro de Daniel Woodrell, apresenta certa dose de crueldade, especificamente em suas sequências. Uma delas é a que mostra a surra dada em Ree, num dos episódios mais dramáticos de sua busca pela reorganização dos cacos que compõem a história do desaparecimento do pai.



Àquela altura, o público, já em posição de cúmplice da personagem, é desafiado visceralmente a expor sua revolta diante de tamanho ultraje. E há ainda a cena bastante comentada do rio, em que a jovem encontra um corpo que pode ser o do seu pai, e corta as mãos dele. Pode-se afirmar que esse seja o apogeu da aridez impressa pela diretora à narrativa, que não se furta de fartas doses de um dolorido realismo. Para alguns críticos, Inverno da alma foi classificado como uma espécie de tragédia grega, cuja protagonista ganha contornos de heroína clássica ao transgredir os próprios códigos de ética e conduta. É exatamente na fascinante interpretação da atriz, que ultrapassa os limites esperados para alguém tão jovem, que pulsa a força marcante do filme, que guarda um certo aparentamento com outra obra recente, Rio congelado (Frozen river, 2008). Como o filme de Granik, este também é dirigido por uma mulher, Courtney Hunt, e se debruça sobre o dilema moral de uma mulher que precisa correr em direção ao resgate de sua dignidade, vivida pela ótima Melissa Leo. Ambos os filmes exibem um olhar feminino ora latente, ora em estado de plenitude, capturando a nuances sempre discretas das atitudes tomadas por suas protagonistas envoltas por uma espiral de desespero. Um ponto de vista de uma mulher refina certos aspectos da trama, que poderiam ter passado despercebidos por uma direção masculina.
Entretanto, o resultado final de Inverno da alma é oscilante entre o bom e o irregular, sendo sua maior qualidade, como já se comentou, o desempenho abissal de Lawrence, que tem uma esfera de contenção muito pequena à sua interpretação, tendo que se circunscrever às possibilidades delimitadas pelo roteiro. Vale a pena conferir o filme para se dar conta de que há um outro lado dos EUA, diferente daquele a que se acostumou a admirar e desejar ao longo das décadas, difundido por anos de filmes idealizadores da imagem do país. Acompanhar a trajetória de Ree é presenciar um monólogo por vezes silencioso, por assim dizer, e que nunca se volta para seu real interlocutor. Talvez um pouco mais de esmero na composição dos planos, bem como de certas explicações para o desaparecimento do pai da jovem e a loucura de sua mãe, sem que fossem dadas pela via do didatismo, acrescentassem mais pontos ao filme, que chega ao seu epílogo com uma possível sensação de enfado e de ter ido menos longe do que parecia se propor inicialmente.

14 de jul. de 2011

Entreatos do desconcerto em Singularidades de uma rapariga loura


A extensa filmografia de Manoel de Oliveira ganhou mais um exemplar com o lançamento de Singularidades de uma rapariga loura (idem, 2009), baseado no conto homônimo de Eça de Queirós. Em apenas 60 minutos, o diretor conta uma deliciosa história de paixão recolhida e engano que seduz o espectador que se deixar levar pela obsessão de Macário (Ricardo Trêpa) pela jovem que lhe aparece todos os dias na janela. Nasce dessa observação diária uma paixão que o faz de refém, e o leva a prometer a si mesmo que será capaz do que for necessário para alcançá-la. E dessa vontade de ter a jovem decorre um desdobramento que, mais tarde, descobrir-se-á desagradável. É com essa fagulha de trama que o realizador português, o mais velho em atividade, discursa solenemente sobre a falência de certas instituições econômicas e sociais, e sobre o véu que esconde as verdadeiras intenções dos seres humanos, apropriando-se da escrita de um dos autores mais importantes do Realismo.
No transcorrer do enredo, nota-se o estilo inconfundível do diretor, que abusa dos longos planos-sequência, e de um estilo de observação de seus personagens algo hermético, gerador de uma certa inquietude na plateia. O protagonista narra sua pequena tragédia particular a uma desconhecida durante uma viagem de trem, e ela se propõe a ouvir atentamente tudo o que ele tem a dizer. Aquele movimento catártico de Macário é fundamental para ele, que se vê na grande necessidade de compartilhar seu infortúnio com o primeiro interlocutor que lhe der oportunidade. Assim, vamos acompanhando, pela sua ótica, como se deu seu envolvimento com a jovem da janela da frente, e como o relacionamento se desenvolveu dali para frente. Contudo, vale comentar que a trama aparentemente simples é apenas um pretexto para questões mais profundas sejam debatidas pelo roteiro, decalcado de uma obra que enxovalha certos códigos de conduta a que a sociedade se viu obrigada a se apagar com o passar dos anos. No começo do conto, a mulher que ouve as confissões de Macário assume o papel de narradora, detalhe que é modificado no filme, em que é o próprio protagonista quem se encarrega de principiar a narração de suas memórias.



A tal rapariga loura se chama Luísa (Catarina Wallenstein), e ele a conhece depois de começar a trabalhar como contabilista no armazém de seu tio Francisco (Diogo Dória). Uma vez instalado nos aposentos do tio, como ele vai contando à estranha que conhece no comboio, Macário se encanta pela figura enigmática da donzela que faz dele um apaixonado. Nesse momento do filme, a câmera focaliza a personagem sob uma perspectiva distante, envolvendo-a em uma atmosfera de sonho e idealização, que será desconstruída posteriormente, para dar lugar a uma outra concepção relativa à personagem. Somos cúmplice do ponto de vista de Macário, que apresenta sua amada com riqueza de detalhes, e nos leva a compartilhar com ele as impressões que tem sobre a jovem. Com relação aos atores que dão vida aos personagens, uma característica que aparece em outros filmes de Oliveira está aqui também. As atuações de todos soam propositalmente artificiais, como estivessem a denunciar a fragilidade das convenções e a deixar esvair o verniz que recobre o comportamento individual. Todos os personagens, incluindo Macário, denotam uma dificuldade em manter suas aparências, embora alguns a façam com mais êxito. E o diretor ainda aproveita para lançar mão da poesia propriamente dita, em um dos encontros de Macário com Luísa, no qual um dos frequentadores da casa da jovem declama um belo poema de um dos heterônimos de Fernando Pessoa, despertando o senso reflexivo do público para uma obra que se abre em várias possibilidades de leitura, não se confinando ao olhar de um homem em estado de paixão por uma mulher, mas sobretudo, por uma imagem que idolatrou.
No texto de Eça de Queirós, Macário se refere ao caráter da rapariga como sendo tão louro quanto seus cabelos, salientando que o louro é uma cor fraca e desbotada. Assim, o caráter daquela moça também daria mostras de desbotamento, em uma cena simples, perto do final do filme, que evidencia o componente trágico que assola a história do protagonista, e envolve a compra de uma joia. A símile é bastante eficiente, e entrega discretamente o jogo para o público, que pode começar a desconfiar dais tais singularidades da jovem a partir dessa descrição física e psicológica. Manoel de Oliveira imprime ao seu filme um ritmo lento, mas não claudicante, e incorpora a ele umas peculiaridades que são próprias dos contos: a brevidade e a concentração da narrativa em uma única trama, que tem seus desdobramentos mostrados com fluidez e destreza. Raramente, o cinema é tão econômico em duração como neste Singularidades de uma rapariga loura, um filme que brinca com o jogo cênico da luz e das sombras e produz delicados insights reflexivos com sua narrativa de aparente ingenuidade.

9 de jul. de 2011

Wall-E, uma brilhante viagem por um mundo de hipóteses


Os últimos anos cinematográficos têm testemunhado o surgimento de cada vez mais filmes de animação que não se restringem ao campo semântico da infantilidade, provando que filmar para crianças não é sinônimo de filmar para idiotas, como ainda querem alguns profissionais dessa também “indústria”. Prova disso são as animações que, a despeito de seus efeitos visuais profusos, demonstram que em seus âmagos também bate um coração. A Disney/Pixar parece entender dessa questão, e tem-no feito com regularidade em seus últimos representantes, dentre os quais se encontra Wall-E (idem, 2008). O filme, sob a batuta de Andrew Stanton, o mesmo que encantou os espectadores com Procurando Nemo (Finding Nemo, 2003) em parceria com Lee Unkrich, é um achado em termos de narrativa e de encanto imagético. Não há como não se encantar pela trajetória do pequeno robô que dá título à obra, ávido de um encontro consigo mesmo e com aquela que julga ser seu complemento.
Decorre desse detalhe apaixonante a afirmação de que o filme é uma bela animação de tintas existencialistas pensada para um futuro distante e jamais localizado temporalmente. Ao tocar nessa temática, Wall-E deixa de ser um filme apenas pensado para crianças, e consegue se aproximar também de jovens e adultos, que se veem diante de questionamentos que podem atravessar qualquer fase da vida. É claro que o público infantil está interessado nas peripécias que o enredo oferece, mas também elas vêm em uma rotação potencialmente lenta aqui. O olhar de Stanton procura a delicadeza, a poeira cósmica que parece já ter sido varrida do mapa, para quem ninguém mais atenta. A animação versa também sobre a eterna procura do ser humano pela completude, e exibe um herói pleno de humanidade, ainda que seja sempre um robô, fato do qual o espectador acaba se esquecendo com o passar do tempo. Wall-E se une a um certo ogro verde, de outro estúdio, para demonstrar que há muitos traços humanos em protagonistas ditos surreais. Com seus dilemas e conflitos, o personagem traz a quintessência da agonia de existir, que atravessa épocas e, no filme em questão, demonstra-se longe de ser mitigada.
O filme também serve a comprovar que, cada vez mais, o gênero animação não deve ser considerado como à parte, pelo que congrega em si tantos ao mesmo tempo. No caso de Wall-E, salta aos olhos sua caracterização como um drama existencial, que investiga a solidão a que todo ser humano parece estar fadado, mesmo que o diretor a discuta por meio de seres não-humanos. As possibilidades se nos abrem diante dos olhos com a animação, que lembra, em alguns lampejos, a pujança visual de Fonte da vida (The fountain, 2006), em que Darren Aronofsky também tencionou discorrer sobre as interdições impostas pela vida, especificamente no que tange ao amor. Para os meninos e meninas, a animação pode ser facilmente um entretenimento mágico, mas mesmo eles podem se cansar da lentidão que o filme apresenta. No fundo, Wall-E acaba sendo mesmo uma animação para adultos, que se veem retratados em parte de seus anseios e inquietudes na figura do protagonista e de Eva, o robô que povoa os sonhos doces do nosso herói.



A tarefa a que o diretor se impôs é dura. Depois de conferir toques de humanidade a carros no filme homônimo, como fazer de um autômato, já visto como vilão em títulos como Eu, robô (I, robot, 2004) alguém com quem se possa identificar minimamente. E mais: como prosseguir com uma narrativa e a apresentação de seus nós sem recorrer a monstros e a outras entidades maléficas e fantásticas? Wall-E se contrapõe a esses esquemas e entrega uma história com alma, sincera e verdadeiramente cativante. O adorável robozinho é o último remanescente de uma grande leva de robôs que tinha a incumbência de limpar o lixo da Terra enquanto os homens se retiravam em uma nave espacial. A proposta inicial era que eles permanecessem na tal nave durante um período curto, mas o retiro acabou se tornando ad eternum. Enquanto recolhe as sujeiras deixadas pelos antigos habitantes, Wall-E depara com objetos interessantes, que ele vai recolhendo para si, e é chegada da moderna Eva que altera sua rotina pacata de empilhador de imundícies. O componente de identificação despertado pelo personagem é semelhante àquele que Robin Williams desperta na pele de Andrew em O homem bicentenário (The bicentennial man, 1999), um robô que não se contenta com sua própria condição e alça voos mais altos rumo a uma transformação em homem. Até mesmo a paixão que Wall-E passa a sentir por Eva depois de vê-la pela primeira vez é perfeitamente plausível para um homem de verdade, com seus calfrios, reticências e aparvalhamentos. O protagonista que jamais fala, no máximo balbucia o nome de sua amada sofregamente, é a síntese do jovem descobridor do amor, esse sentimento que leva muitos a tatear em busca de uma resposta vinda do outro lado.
Esse dado do protagonista, que passa o filme inteiro apenas gesticulando e caminhando confere à trama um aspecto pantomímico, parecido com o que Sylvain Chomet fez com O mágico (L’illusioniste, 2010), um outro exemplar de animação que pode ser considerada muito mais adulta que infantil. Juntos, os dois filmes compõem uma pequena galeria de obras que versam sobre temas que atingem muito mais que já chegou à maioridade, e vale mencionar também o brilhante trabalho de Richard Linklater em Waking life (idem, 2001), que se apropriou da rotoscopia para entregar um denso estudo sobre a condição humana. Entretanto, Wall-E não chega a ser tão hermético quanto os filmes aqui citados. Sua ambição esbarra prudentemente, por assim dizer, na necessidade de levar o filme a um grande público, mas já serve como amostra de que o cinema em seu componente mais artesanal pode alcançar um número considerável de entusiastas, ao contrário do que preveem as teorias que associam qualidade artística ao quórum pífio de espectadores.
A sensação que atravessa o público durante Wall-E é a de que o mercado de animação pode apresentar exemplares surpreendentes quando quer, e também pode tratar das distâncias entre cada um de nós e o outro com a habilidade de um diretor que sabe mesclar o apuro visual com uma trama bem azeitada e um argumento que remete a antes mesmo de Toy story (idem, 1995), também dirigido por Stanton. Ele partiu de uma premissa tão simples quanto instigante: E se a humanidade fosse embora e se esquecesse de desligar o último robô? À época, havia já um roteiro, mas Pete Docter preferiu dar espaço a Monstros S.A. (Monsters, Inc. 2001), e o projeto de animação sobre o robozinho foi sendo deixado de lado, até que voltasse à tona em 2008. Empregou-se, então, um orçamento de 180 milhões para a construção irretocável do espaço, que é, antes de mais nada, o ponto de vista totalmente subjetivo do diretor, algo estilizado que chama bastante a atenção. Fica patente que todo o esforço e a insistência de Stanton valeram a pena, pois a resultante final não é nada menos do que intensa e inesquecível.