7 de jun. de 2011

Ricky e a metáfora da esperança alada

Nos filmes de François Ozon, existe a recorrência de um tema simples sendo tratado com profundidade ou com um traço de inusitado. Suas análises sobre aspectos pontuais da existência se pautam, portanto, por inserções de elementos que, inicialmente, podem soar estranhos, ou minimamente deslocados. Entretanto, até Ricky (idem, 2009), o diretor ainda não havia lançado mão do realismo fantástico propriamente dito. Se em Oito mulheres (Huit femmes, 2002) ele confinou algumas divas do cinema francês em uma mansão onde se dá um crime, em Swimmimg pool – À beira da piscina (Swimming pool, 2003) ele analisou mistérios que podem se desdobrar na relação entre duas mulheres. Se em Amor em cinco tempos (5 x 2, 2004) ele se ocupou de esquadrinhar os passos que podem levar um casal ao infortúnio, em O tempo que resta (Le temps qui reste, 2005) ele partiu da situação “banal” de doença terminal para refletir, a seu modo, sobre a urgência de viver. No caso de Ricky, filmado quase simultaneamente a O refúgio (Le refuge, 2009) e lançado posteriormente a este, Ozon se vale da estratégia de um acontecimento impossível no mundo palpável para discorrer sobre coerção e desalento.



Katie (Alexandra Lamy) e Paco (Sergi López) são colegas de trabalho em uma fábrica. Eles se envolvem casualmente um com o outro e, dali a pouco tempo, estarão morando juntos. Katie tem uma filha que é fruto de um relacionamento anterior, algo que Paco admite e, num primeiro momento, eles não cogitam a ideia de mais um filho. Posteriormente, contudo, ela engravida, e o lindo bebê do casal recebe o nome de Ricky. Trata-se de uma criança adorável, que inunda a casa da família de alegria. Até esse momento, a narrativa do filme corre sem sobressaltos, e Ozon apenas lança seu olhar imparcial sobre o cotidiano de um casal comum da periferia parisiense. Sua câmera selecionou áreas pouco vistas de Paris nos filmes que lá são ambientados, promovendo um percurso menos óbvio ao público. São espaços que permitem que se atente muito mais aos personagens que a si mesmos, e sublinham o trabalho de composição acertado de Alexandra Lamy e de Sergi López, muito à vontade no francês, que não é sua língua materna. Quem assistiu a O labirinto do fauno (El laberinto del fauno, 2006) talvez não associe o tenebroso capitão Vidal a esse Paco de agora, mas se trata da mesma pessoa, o que prova a versatilidade do ator para papéis tão dissonantes entre si.
O grande insight de surrealismo proporcionado por Ricky acontece quando, pouco a pouco, o personagem-título começa a desenvolver estranhas protuberâncias nas costas, que culminarão com o desenvolvimento de asas, literalmente falando. Sim, Ricky é um bebê alado, como já mais se viu ou ouviu falar antes. E o uso desse expediente inadmissível como real, dentro do filme funciona metaforicamente de modo bastante eficiente. A aquisição de asas de Ricky pode ser lida duplamente, o que atesta sua ambiguidade. Colocar uma trama com um bebê com asas que não se prende a nada que está ao seu redor leva à interpretação de que há pais que sufocam a individualidade de seus filhos, bem como suscita a ideia de que a esperança não pode viver aprisionada, e de que é preciso adotar uma postura ativa para sua manutenção. À primeira vista, Ricky pode parecer um filme ingênuo ou simplório, por falar de um tema trivial com uma abordagem afastada, até certo ponto, da realidade esperada. Mas Ozon é extremamente habilidoso no trato da trama, roteirizada por ele mesmo, fazendo do inusitado algo completamente aceitável. Guardadas as devidas proporções, sua obra se assemelha a Tio Boonmee, que pode recordar suas vidas passadas (Loong Boonmee raleuk chat, 2010), por sua capacidade de inserir o insólito na narrativa como se fosse a coisa mais normal do mundo, sem fazer concessões ao “juízo perfeito” do espectador. No fundo, Ricky é mesmo um filme simples, mas que trata de questões complexas e alicerça sua discussão na concretização de uma metáfora antiga. O realizador também fala do sufocamento dos afetos, manifesto na imposição dos desejos particulares de alguém sobre o outro, comportamento que mina muitas relações interpessoais, seja no amor, seja na amizade. Pode-se dizer, portanto, que Ricky se presta a uma leitura inferencial muito apropriada e atual.



O filme competiu pelo Urso de Ouro em Berlim, mas não obteve a láurea, que, naquele ano, foi entregue para A teta assustada (La teta asustada, 2008), produção peruana que recebeu muitos elogios por onde passou. Independentemente de premiações, contudo, Ricky é um filme para ser visto e acompanhado com atenção. É uma obra enxuta em sua hora e meia de duração, que dialoga com os trabalhos pregressos do diretor na medida em que demonstra exatamente essa concisão e essa simplicidade. Ozon não é um diretor dado a extravagâncias narrativas, e introduzir um bebê que adquire asas no contexto de um filme seu talvez tenha sido seu ato mais arrojado até aqui. Seu longa-metragem é permeado por um senso de humanidade tocante, mesmo que ela venha por meio da aposta em um subtema já tão batido. Há ainda um contraponto entre o olhar da menina, filha de Katie, e o olhar da mãe para o desenrolar dos fatos, especialmente no que concerne à maneira conturbada com que ela se relaciona com Paco, num movimento de idas e vindas que prejudica claramente a estabilidade desse seio familiar forjado em circunstâncias fracas. Nesse ponto, a abordagem de Ozon guarda similaridade com a de Julie Gavras em A culpa é do Fidel! (La faute à Fidel!, 2007): o mecanismo de narrar sob uma ótica infantil acurada, de uma criança que entende perfeitamente o que está acontecendo ao seu redor.
Como foi assinalado por um crítico que analisou o filme, há vários elementos díspares reunidos em Ricky, que poderiam se anular e levar o filme ao fiasco. Mas aquilo que talvez pudesse desabonar mais a obra acaba sendo o toque de Midas do diretor para alçar um voo mais alto – com o perdão do trocadilho – rumo à eficiência, tomada aqui no sentido mais isento de imediatismo burro possível. O cineasta parte de um material surrado para abrir-lhe novas possibilidades de leitura e identificação, bem como para gerar o espectro de comoção que é tão caro aos espectadores de uma obra cinematográfica. Ricky nos fala de uma esperança alada, que está em todos os lugares, e não pode ser apropriada exclusivamente ou “privatizada”. Por outro lado, fundamentado no segundo ponto de vista proposto, um dia os filhos se vão, e as asas que um dia lhes nasceram simplesmente não podem ser cortadas. Uma vez nascidas, acompanhá-los-ão definitivamente. Ozon traz essa constatação através da simplicidade. Ao se furtar de ser portentoso e ao se permitir extrair reflexão do que é corriqueiro, ele nos entregou uma pequena joia.

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