14 de jun. de 2011

Turnê, o percurso de um artista por seu labirinto particular


A nova incursão de Mathieu Amalric na direção de longas-metragens é auspiciosa, e o filme que responde por essa nova decisão de ir para atrás das câmeras é Turnê (Tournée, 2010), que rendeu ao novo cineasta o prêmio de Melhor Direção no festival de Cannes de 2010. A láurea foi merecida, como se pode comprovar assistindo ao trabalho de Amalric, que entra para um rol seleto de atores que decidiram se aventurar do outro lado das lentes e entregaram obras preciosas. Ele vem se somar a nomes como George Clooney, responsável por títulos como Confissões de uma mente perigosa (Confessions of a dangerous mind, 2002) e Boa noite e boa sorte (Good night and good luck, 2005), e Sarah Polley, que outorgou ao público a beleza triste de Longe dela (Away from her, 2007). Com isso, a tese de que atores que se propõem a dirigir o fazem muito melhor que vários diretores de prestígio é corroborada, o que pode ser explicado, em parte, pela dupla visão a respeito do trabalho de um artista, seja em termos de atuação, seja em termos de observador da imagem.
Em Turnê, Amalric assume para si a persona de Joachim, um ex-produtor de televisão que abandonou sua carreira na França natal para buscar o sucesso nos Estados Unidos. Depois de anos fora, ele retorna ao seu país com uma trupe de atrizes especializadas em performances teatrais burlescas, disposto a reaver certas contas com seu passado, tingido por cores não muito agradáveis. Trata-se de uma série de shows cujo encerramento foi planejado para acontecer na capital francesa. Mas uma série de contratempos, um deles ocasionado pela trapaça de um antigo parceiro de Joachim, deflagrará uma sucessão de pequenos infortúnios que, por sua vez, levá-lo-ão a repensar sua condição de artista difusor de uma arte específica. O que se nota em Turnê é um percurso tanto literal quanto metafórico e afetivo de um artista pelas veredas que compõem sua trajetória, cheia de contornos parabólicos, sinuosos e hiperbólicos, aqui usados em suas acepções matemáticas. Amalric lança mão de uma farta dose de sensibilidade, às vezes camuflada de rusticidade, para traçar um painel doloroso das vivências de um homem, antes de mais nada. E sua caminhada agora tem a companhia de mulheres cujo biótipo avantajado são a grande atração para espectadores ávidos de uma arte que se avizinha muito mais de uma concepção popular que, por si só, não lhe é fator deslegitimador.
Antes de prosseguir, cabe uma rápida consideração sobre o conceito de burlesco. Este se refere a espetáculos de cunho teatral e teor satírico, em que, frequentemente, ocorrer números de striptease, protagonizados por mulheres de formas volumosas, como aquelas que são conduzidas por Joachim. Sua origem remonta ao final do século XIX, e até hoje o burlesco goza de certo prestígio, apesar de ter passado a ser visto em um sentido mais alargado. Dentre as várias mulheres que acompanham o protagonista em sua jornada, destaca-se Mimi Le Meaux, interpretada pela cantora Miranda Colclasure. Ela é uma espécie de líder daquele clube de atrizes que vivem de sua arte, e trava diálogos importantes e memoráveis com o produtor. Sua beleza de traços exóticos, em uma sociedade de estetização do corpo doa a quem doer, soa como um alento para quem elege como preferência outro tipo de configuração física, além de seu talento comprovável a cada sequência com sua presença. Muitas vezes triste, o filme oferece uma fotografia com cores quentes, por vezes pálidas, uma responsabilidade de Christophe Beaucarne, que assinou filmes como Paris (idem, 2008), Coco antes de Chanel (Coco avant Chanel, 2009) e O escritor fantasma (The ghost writter, 2010). Seu trabalho quase artesanal torna Turnê um filme denso e de iluminação parca, assinalando a obscurescência da caminhada a esmo vivida por Joachim, que se encontra consigo mesmo a cada vez em que tem de rever uma figura do tempo em que habitava Paris. A câmera de Amalric perscruta os espaços percorridos pelos personagens de modo intimista, evitando, entretanto, uma aproximação maior com seu objeto de observação. O protagonista é introspectivo, e deixa transparecer esse aspecto de sua personalidade ao se ver obrigado a encarar as pessoas, algo que requer comedimento na atuação de Amalric, seguro e talentoso também como intérprete. Aliás, atualmente ele é um dos atores mais requisitados pelo cinema de seu país, tendo trabalhado com nomes legendários da França, como Julian Schnabel em O escafandro e a borboleta (Le scaphandre e Le papillon, 2007) e Alain Resnais em Ervas daninhas (Les herbes folles, 2009). Além disso, ele já carimbou seu passaporte para Hollywood quando filmou com o alemão Marc Forster 007 – Quantum of solace (idem, 2008), e encarnou o vilão do momento.


É preciso apenas um pouco de sensibilidade para embarcar na trama de Turnê, que centrifuga os espasmos narrativos e visuais para se concentrar numa jornada que, em última instância, é um modo de autoconhecimento. O diretor filma a decadência, e mostra o entusiasmo daquelas mulheres em apresentar o que sabem fazer de melhor, mesmo que estejam passando as noites em hotéis vagabundos e lidando com a escassez pecuniária. As armadilhas do perfeccionismo, materializadas na postura algo autoritária de Joachim, são um elemento que contribui para o mimetismo proposto pelo diretor, que não se coloca como protagonista de uma autobiografia. Mas é inegável que seu percurso como produtor de teatro guarde semelhanças com seu ofício de ator na vida real. O filme é um labirinto de memórias, que são compartilhadas pelo personagem e mediadas pela sua percepção particular do estado das coisas. Não é o seu primeiro trabalho como realizador, como já se disse. Ele também é responsável por Mange ta soupe (1997), Le stade de Wimbledon (2001) e La chose publique (2003), todos sem títulos em português. No caso de Turnê, Amalric é fiel a uma gramática sensorial e a um teor agridoce em suas reminiscências, que tornam o filme ao mesmo tempo agradável e difícil, na medida em que representa o compartilhamento com um público das mazelas de um homem.
O drama de Turnê é a constatação de que Joachim - cuja inspiração vem da vida real, o produtor de TV Paulo Branco – está empreendendo uma jornada cada vez mais quixotesca em busca de espaço para sua arte. É curioso pensar que o filme seja contemporâneo de O mágico (L’illusioniste, 2010), que trata também das barreiras a um tipo mai específico de arte, cada vez menos encontradiça no grandes centros urbanos. Amalric espia a decadência, a desglamourização e a inevitabilidade da mudança sobre toda e qualquer estrutura que se propõe a atravessar um longo período. Nas cenas finais, o filme acentua seu caráter melancólico, oferecendo momentos de reflexão sobre os rumos que se pode tomar na vida, a depender do peso que se dá a determinadas escolhas. Ali também estão o caos cotidiano, oriundo das cansativas viagens de idas e voltas feitas pela equipe, e a constante necessidade de autorreinvenção, reclamada na mudança de postura que Joachim vai sendo obrigado a realizar a cada novo revés que se lhe apresenta. Ele pede silêncio por onde passa, como tentativa desesperada e inconsciente de pedir atenção para si, bem como uma demonstração de que a verdade não faz barulho, e está cada vez mais soterrada por um mundo de incontáveis reverberações sonoras.

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