27 de jun. de 2011

Expurgando o luto diário em Reencontrando a felicidade


Para a superação da dor, não existem fórmulas mágicas, tampouco receitas milagrosas. É preciso viver cada instante da tristeza, dar-se o direito de passar por ela, não há como ser diferente. Reencontrando a felicidade (Rabbit hole, 2010) demonstra essa crença por meio da história de vida de um casal de classe média-alta que está sendo devorado pelo luto de perder um filho pequeno em um acidente. Becca (Nicole Kidman) e Howie (Aaron Eckhart) têm modos distintos de lidar com as consequências emocionais pesadas que tal fato têm sobre eles. O que já se coloca como um dado curioso desde o início da projeção é contemplar o nome de John Cameron Mitchell nos créditos como diretor. Para quem não tem a menor noção de seu currículo pregresso, basta saber que ele é responsável por Hedwig – Rock, amor e traição (Hedwig and the angry inch, 2001), no qual também vive personagem-título, e o polêmico Shortbus (idem, 2006), que causou furor com sua temática despudorada. Aqui, o enredo é muito mais comedido, e seria impensável associar seu nome ao filme.
Felizmente, ele demonstra versatilidade ao conduzira a trama, que não se furta de ser densa e reflexiva em sua duração. O caminho de reencontro da tal felicidade do título em português é acidentado, e não se permite ser percorrido por atalhos. À medida que os dias se passam, afastando o fato cronologicamente, o casal vai encontrando sua própria maneira de enfrentar o luto. Enquanto Becca repisa a cada instante o sofrimento e a dor da perda, Howie procura sublimar seu sentimento de tristeza por meio da omissão do fato, algo que logo gerará incômodo na esposa. Na verdade, Becca assume uma postura de ataque ao mundo ao seu redor, sendo incapaz de permitir a si mesma a vivência de pequenas alegrias cotidianas, como se estivesse traindo a memória do filho. Qualquer um que tenta lhe dizer palavras de consolo é tratado de modo arredio, o que inclui sua mãe, vivida por uma talentosa Dianne Wiest. A exemplo da filha, ela também perdeu um filho, e foi aprendendo a superar a devastação emocional com o passar do tempo. Em uma das passagens do filme, Becca pergunta a mãe se a dor um dia passa, e ouve dela a resposta de que não, mas que se torna diferente. Uma constatação dolorida, que serve para demonstrar que se faz necessário o aprendizado da convivência com a perda.
Muitos filmes já discorreram acerca dessa temática, mas Reencontrando a felicidade se destaca de tantos outros pelo fato de trazer à tona o processo posterior da perda de um ente querido. Como fazer para retomar a vida, passado o baque inicial? E investir nesse terreno é dar a cara a tapa e flertar com a pieguice ou com a autoajuda, que, inclusive, é retratada no filme através do casal amigo dos protagonistas. Eles fazem terapia de grupo há anos, e aqueles encontros já se tornaram uma rotina para os dois, algo que apavora Becca. Logo em um dos primeiros encontros ao qual ela vai com o marido, demonstra que não tem o menor desejo de continuar frequentando aquele espaço. Quando ouve uma das mães que está ali dizer que entende que sua filha partiu porque Deus precisava de mais um anjo no céu, Becca inquire: Se ele precisava de mais um anjo, por que simplesmente não criou um? O questionamento constrange a todos, e expõe a fragilidade daquelas reuniões aos olhos da personagem. Esse é apenas um dos trechos que apontam para o texto inspirado que os atores têm nas mãos para embelezar a narrativa ou impactar o público. O filme, portanto, não esconde sua origem teatral.O autor é David Lindsay-Abaire, e ele transpõe para o cinema seu estilo algo cru de abordar o luto, colaborando para que se tenham as atuações admiráveis de Kidman e Eckhart, que se saem muito bem como um casal de classe média alta que recorre a diferentes estratégias de superação. Fazia tempo, aliás, que não se via a atriz em um papel tão bem escrito e com uma gana de atuar tão forte. Nos últimos anos, ela vinha acumulando escolhas equivocadas, em títulos como A feiticeira (Be witched, 2005), e seu papel no filme de Mitchell nos faz lembrar de quando ela acertava consecutivamente – vide As horas (The hours, 2002) e Dogville (idem, 2004). Como Becca, ela sai de uma espécie de zona de conforto, e oferece humanidade à mulher perdida e desacreditada que encarna. Sua Becca rendeu uma nova indicação ao Oscar, perdido em favor da abissal interpretação de Natalie Portman em Cisne negro (Black swan, 2010).



Kidman, aliás, também produziu o filme, e sequer havia assistido a uma das apresentações da peça quando pediu ao seu produtor da Blossom Films para fazê-lo. Ele gostou do que viu e, posteriormente, a atriz se reuniu com o autor do espetáculo para tratar do processo de adaptação para o cinema. Felizmente, a produção chegou às telas, assinalando a competência de um diretor ainda novo em idade para conduzir uma trama madura e profunda. Seu parceiro de cena também apresenta um desempenho memorável, com uma conduta contida e pacificadora que cabe ao personagem. Seu Howie, em determinada altura, não mais abre mão de relembrar todos os dias o filho, revendo imagens e repisando o choro e a dor. É uma pena que o ator ainda seja pouco conhecido do grande público. Eckhart vem de parcerias com Neil LaBute, seu diretor em títulos como A enfermeira Betty (The nurse Betty, 2000) e Possessão (Possession, 2002), e em Reencontrando a felicidade capta as nuances de seu papel trazendo sopros de vitalidade a um homem que não quer se entregar. É de cortar o coração a sequência em que ele se dá conta de que Becca se desfez de uma importante lembrança do menino, e vocifera com intensidade para aplacar a sensação de ausência ainda mais forte que o invade.
O filme tem um significado ainda mais intenso para John Cameron Mitchell, e isso se explica por questões pessoais. Quando tinha 14 anos, o diretor perdeu um irmão de 10, em decorrência de problemas cardíacos. O fato foi totalmente repentino, e causou uma comoção em toda a família, da qual os membros, incluindo ele mesmo, não se refizeram até hoje do trauma. O retrato do drama de Becca e Howie é, portanto, também um retrato da dor particular de Mitchell, que encontrou no cinema uma ponte para mitigar parte de sua agonia, ao menos compartilhando-a com outros espectadores. Infelizmente, seu título original tem um quê de otimismo que não se encontra na trama. A tradução do original seria algo como “A toca do coelho”, que tem pouco apelo comercial. Resta ás platéias brasileiras conviver com tal desencontro de perspectivas. Entretanto, o que se sustenta até o fim é que Reencontrando a felicidade trafega pelas estradas curvilíneas do sofrimento, e assinala que cada um só é capaz de compreender a própria dor. Nas entrelinhas, reverbera um discurso pungente e necessário: A maior dor é a que eu sinto.

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