13 de jul. de 2010

As chagas da passagem do tempo expostas em "Longe dela"

A crueldade com que o tempo trata a maioria dos seres humanos é a grande temática por trás da estreia de Sarah Polley na direção em "Longe dela" (Away from her). Sua debutação do outro lado das câmeras é alvissareira, já que se utiliza de uma matéria-prima simples para gerar um efeito de forte comoção com a história de Grant (Gordon Pinsent) e Fiona (Julie Christie). Eles são um casal de longa data que se vê ameaçado pela doença dela. A distância, que é mencionada logo no título, é muito mais emocional do que física.

Polley vem de uma carreira de filmes pouco vistos, que não foram arrasa-quarteirões. Em seu currículo está o terror "Madrugada dos mortos" (2004), experiência de Zack Snyder na direção anterior a "300" (2006), além do sensível e subestimado "Minha vida sem mim" (2004), primeira colaboração entre a atriz e a diretora catalã Isabel Coixet, que se repetiria dois anos depois com "A vida secreta das palavras" (2006), obra igualmente bela. Se na carreira de atriz a maioria de suas escolhas foi acertada, como diretora Polley também faz bonito, apostando numa história forte e emocionante, mas sem traços de pieguice, uma armadilha evitável quando um realizador se propõe a abordar a temática do amor.
Em "Longe dela", o amor é a força motriz para as ações de Grant, que não mede esforços para deixar a vida mais palatável para Fiona, mesmo que isso lhe custe um afastamento involuntário da realidade na qual sua esposa passa a viver. Não há vilões de carne e osso para se intercalar entre o casal. O grande mal que assola os dois é o diagonóstico de mal de Alzheimer dado a Fiona. É a partir do surgimento desse mal que a relação de tantas décadas vivida por ambos começa a desmoronar. Um desmoronamento silencioso, lento e gradativo que vai cavando suas marcas e deixando resquícios praticamente intransponíveis entre os dois.
Muito da força do filme reside na direção segura de Polley, também autora do roteiro. A cineasta opta por uma condução minimalista, em que a economia dos diálogos funciona como um elemento de apoio para o retrato das angústias interiores dos personagens. Christie brilha permanentemente em cena, no papel que lhe rendeu uma indicação ao Oscar de melhor atriz, perdido em favor de Marion Cotillard, vencedora por "Piaf - Um hino ao amor" (2007). A Academia tem uma queda notável por cinebiografias, o que é um dos motivos para ter dado a estatueta a Cotillard - merecida, diga-se de passagem. Talvez se a história de Fiona fosse inspirada em um caso real, suas chances de ser premiada aumentassem substancialmente. O Sindicato de Atores dos EUA, porém, garantiram-lhe uma láurea. Mas nem só de prêmios oficiais vivem os bons atores. Independente de qualquer vitória em competições, o fato é que a interpretação da atriz é irretocável.

Polley faz uma radiografia dolorida dos sintomas que vão acometendo Fiona, sendo a perda de memória recente o principal deles. Ela não consegue mais absorver novos acontecimentos como antes, ficando presa somente a um passado mais distante. Nesse sentido, surge mais uma distância entre ela e Grant: a distância temporal, metafórica, mas quase palpável quando se observam as conversas que eles passam a ter. Discretamente, Grant tenta fazer com que tudo pareça absolutamente normal para a esposa, num esforço comovente. Quando se vê sem alternativa, interna a mulher em uma clínica, disposto a lutar pela sua cura.
É quando o casamento passa por sua fase mais conturbada, já que, uma vez internada naquele lugar que se esforça para não parecer um ambiente de tratamento de doentes, Fiona se distancia de vez de Grant. E essa distância chega ao seu apogeu exatamente por causa de uma terceira pessoa. Diante de seus olhos apopléticos e de suas mãos impotentes, ele vê Fiona dedicar um sentimento intenso e admirável por um paciente que conhece na clínica. A amizade sincera entre Fiona e seu compannheiro de tratamento é uma bela relação de carinho. Ele está num estágio ainda mais avançado da doença, o que parece despertar (ou manter avivado) o instinto de proteção dela. Mesmo diante da constatação cruel de que o amor de Fiona por ele está agonizando, Grant se mantém firme em sua vontade de ajudar a esposa, visitando-a regularmente. Quando seu estado se agrava, Fiona tem de passar para o andar superior da clínica, para o qual o médico garantira a Grant que ela não passaria.
Em sua essência, "Longe dela" é um filme que retrata os efeitos devastadores da passagem do tempo. A conclusão a que se chega é inevitável. O tempo não se apieda de nada nem de ninguém, e lutar contra ele é levantar a bandeira de uma causa quase perdida. Sua força descomunal não escolhe a quem, e Fiona e Grant são exemplos claros dessa insdiscriminação. A cada passo dado pelo casal, ele demonstra que a inexorabilidade é uma de suas características mais marcantes. E, curiosamente, um filme que trata da perda progressiva da memória, como o é este, sobrevive na cabeça muito tempo depois da subida de seus créditos finais.

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