23 de fev. de 2010

"O sétimo selo" e a crise da fé

O cinema de Ingmar Bergman é feito de questionamentos. A principal fonte das histórias filmadas pelo sueco são os interiores dos seres humanos, que geraram pérolas de valor inenarrável ao longo de sua profícua carreira nesse importante veículo artístico de comunicação. "O sétimo selo" não deixa mentir, já que também está fundamentado nessa tentativa de se entender os meandros da natureza do homem, pela via da imagem simbólica.

Na trama do filme de 1957, um cavaleiro volta à sua vila de origem depois de lutar nas Cruzadas com ferocidade. Seu nome é Antonius Block (Max Von Sydow), e o cenário por ele encontrado é de profunda desolação. A época é o século XIV, e parte da devastação é por conta da peste negra, doença mortal que dizimou milhões de vidas em várias partes do mundo conhecido até então. Do contato com essa realidade tão perversa, surge em Antonius um sentimento de enorme dúvida sobre a existência de Deus em meio a tamanho desalento. É essa busca incessante por desvendar o que, para ele, é um mistério, que norteia seus passos e palavras.
Nesse aspecto, o filme se apresenta com um teor realista muito forte. Mas também ganha tintas mais fantásticas quando surge para o protagonista uma estranha figura: a Morte, que lhe diz que sua hora é chegada. A imagem desse ser sinistro é acachapante para Antonius, mas ele desafia aquela entidade com uma proposta ousada. Por meio de um jogo de xadrez, ele pode ganhar uma sobrevida no caso de vencer, e é a partir desse encontro com a mais temida das horas que a trama ganha contornos existencialistas. Como em vários outros filmes de sua carreira, Bergman se utiliza do cinema para mergulhar nos fantasmas que o atormentam desde sua infância, entregando um verdadeiro tratado sobre a inquietude do homem diante do que o destino lhe impõe através de "O sétimo selo". Antonius é uma pessoa que não tem medo de questionar, e vai a fundo para se entender e entender a humanidade e o mundo. Isso o leva a um patamar de reflexão elevado, o que não significa, necessariamente, que ele encontre todas as respostas que procura.
Bergman lança as sementes da dúvida o tempo todo, sem se preocupar em dar explicações para tudo o que se vê na tela. Em certa medida, "O sétimo selo" pode ser entendido como uma parábola sobre a condição humana. Estamos sempre fadados a um destino, mas dificilmente o aceitamos resignados. Na verdade, não sabemos exatamente qual ele é, mas quando nos damos conta do que pode estar se tornando nossa vida, a eterna insatisfação que nos move clama por uma mudança de direção. Trata-se do mesmo sentimento que dilacera as expectativas de Antonius Bolock, e que alimenta sua angústia por não entender a realidade que o cerca, e muito menos o plano abstrato que o acompanha. Qual a razão daquela mortandade toda? Revolta divina? Castigo para os homens? Se Deus não existe, então estamos abandonados à própria sorte? Se Ele é real, somos peças de um tabuleiro de xadrez que ele move a seu gosto? São muitas as incertezas que assomam no coração de Antonius, todas derivadas de sua visão da morte e da desesperança que gritaram aos seus olhos no início do filme, e que perduram pelo resto da narrativa.

Em dado momento, diante de tantas perguntas que Antonius faz, um dos personagens lhe diz: "Você nunca para de questionar?", e ouve a resposta negativa dele. Na sua trajetória errante, Antonius ainda encontra um casal de artistas de circo com um filho pequeno, e é nas aparições quase fugidias desse núcleo que o filme, mesmo continuando em preto e branco, parece ganhar mais cor e luz. É como se Bergman quisesse nos dizer que a salvação do mundo estivesse na arte, em sua expressão mais bela e simples. As mazelas desse mundo já são tantas que é preciso encontrar uma maneira de deixá-lo mais palatável. É através da arte que o ser humano busca entender e compreender o mundo, e o cineasta parece ir ao encontro dessa afirmativa em "O sétimo selo". E faz isso com um talento incontestável, justificando o prêmio que o filme recebeu: o Urso de Ouro em Berlim no ano de 1957. Mesmo tão distante no tempo, afinal, já são mais de cinco décadas, o longa não ficou datado. Pelo contrário: permanece atual e inquietante, como uma autêntica e atemporal obra de arte.
O realizador não faz seu discurso pela via da gradiloquência, mas sim por meio da investigação do íntimo da fragilidade humana, detectando as pequenas agruras que nos consomem internamente, e nos levam muitas vezes a ter a existência por dolorida. Não à toa, o filme conquistou um lugar de honra na ribalta dos melhores do todos os tempos. É praticamente impossível elaborar uma lista de clássicos ou de filmes indispensáveis sem incluir "O sétimo selo". Para sempre, ele será lembrado como um poderoso instrumento de reflexão e de imersão na alma. Sua visão é voltada para a tentativa de entendimento do desconcerto do mundo, tão evidente quanto inquietante.

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