A segunda incursão de Heitor Dhalia como diretor resulta em uma obra instigante e sem meios termos. A câmera de "O cheiro do ralo" observa com contumácia o cotidiano sórdido de Lourenço (um inspirado Selton Mello), homem de vida vazia, que trabalha comprando objetos usados de pessoas que precisam de alguma quantia em dinheiro. Sabendo que quem aparece em seu escritório está ali por uma real necessidade, ele se utiliza, na maior parte das vezes, de seu sadismo para pagar pouco pelas quinquilharias que lhe são levadas. Para Lourenço, o próprio ser humano se transformou em objeto de negociação, o que fica explícito em suas atitudes, desprovidas de compaixão por quem se aproxima dele.
Por isso, quando começa a se interessar por uma bela garçonete, seu foco é apenas no traseiro dela, que ele acompanha avidamente com seus olhos incansáveis. Pensa que pode tê-la, como se fosse um troféu que decora a estante, mas não é o caso. A jovem é uma pessoa comum, que não está à venda ou é passível de troca, o que perturba Lourenço, que não sabe como lidar com essa nova situação.
A obsessão do personagem passa a ser a bunda dessa mulher, e isso é perceptível logo na primeira sequência do filme, que mostra a câmera acompnhando o andar da moça até seu local de trabalho, como se fosse o olhar de Lourenço. Embevecido, ele a segue como um cão, e não se refere à garçonete como uma pessoa inteira, mas fala apenas "a bunda". Para se aproximar dela, tomará atitudes equivocadas e algo bizarras, que não lhe permitirão logo o que deseja.
Esse é o mote principal de "O cheiro do ralo", que foi vendido como uma obra que se orgulha de ser "suja", por assim dizer. No trailer de lançamento do filme, ao final, vinha a seguinte inscrição: "Em março empesteando os cinemas". Daí já se pode concluir que esta não é uma história em que o diretor está preocupado em ser agradável, e nem em apregoar lições moralistas sobre o caráter do homem. Dhalia somente espia, sem fazer julgamentos, e joga na tela uma atmosfera lúgubre, que envolve os personagens como uma névoa espessa e indissolúvel. Ninguém é totalmente bom, o que lança por terra qualquer centelha de maniqueísmo. No momento do desespero, justificam-se atos extremos de loucura de alguns frequentadores do escritório de Lourenço. É o caso da viciada interpretada por Silvia Lourenço, que chegou a ficar esquelética, de tanto que emagreceu para o papel. Seu pudor se esvai diante da crueldade do negociante, que lhe pede para tirar a roupa, em troca de um bom pagamento para mais uma bugiganga que ela leva até ele.
A referência feita pelo título é ao ralo do escritório onde Lourenço trabalha, que exala um odor fétido, que somente ele é capaz de suportar. De certa forma, pode-se até dizer que ele se apaixonou por aquele cheiro, que é uma espécie de tradução de sua natureza: podre, perdida, irreconciliável. Até mesmo quando um encanador aparece paa tentar solucionar o problema, ele parece não querer se livrar daquilo, de fato. Sente que aquele ralo é parte de si.
"O cheiro do ralo" é baseado no romance de Lourenço Mutarelli, que é homenageado no filme através do nome do protagonista vivido por Selton Mello. Ele também aparece numa participação afetiva, atuando como um dos funcionários do escritório de Lourenço. Em sua literatura, Mutarelli expõe o que há de mais abjeto no ser humano, incomodando com sua visão pessimista do que é o homem. O mais importante é que seu retrato não resvala para a caricatura, e o roteiro, tambéma cargo do diretor Dhalia, é um recorte preciso da realidade de quem nós somos. Estão presentes no filme o instintivo, o que desperta asco, e que sempre se procura sublimar para que se haja uma convivência pacífica em sociedade. Se um filme provocativo não o afugenta, assistir a "O cheiro do ralo" pode ser muito mais que um mero passatempo.
11 de fev. de 2010
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